Diferente em tudo da esperança

Pintura de Eric Zener.

Pintura de Eric Zener.

Terapia, que terapia.  Gatafunhava e apagava, mascarrava a palma da mão e os dedos e a cara, amassava o papel, as palavras falhavam o alvo, atirava folhas ao chão, rosnava bosta de cavalo, escrita de bosta, atulhava de fanicos o quarto da cachopice, roía tampas e canetas, os dentes faziam tic-tic-tic no plástico, escrevia, aquilo não era escrever, grafava uns traços com a ponta da bota, parecia que era da ponta da bota que os rabiscos desabrochavam, e o que se lia no caderno mal abrangia um drama existencial sentido como intransferível para códigos linguísticos: «Se não te vir mais, quero que saibas que te adoro.» Se, horrorosa combinação, estafava começar frases com se. E o adoro, tão meloso. Pensava na separação. «Se um dia me deixares.» Mais uma folha a voar pela janela, pateta. Teria dado jeito aprender a escrever. Se e se. «Se me abandonares, dou um tiro na boca.» Radical, radical seria premir o gatilho sem conversas prévias, evitar teatros. «Salto da ponte.» Jerico. Saltaria da ponte e subiria a serra de bicicleta e rezaria o terço e fornicaria as beatas no fim da missa. Mastigava o papel, mandava as gavetas da escrivaninha contra o estrado da cama. Até a falar para dentro mentia. «Por ti emprego-me nas obras, carrego baldes de cimento. Ver outras mulheres é como ver nenhuma.» Frases de chachada. A cunhada. Pausa para amaciar os testículos. Amava-a e amava a namorada e a sogra e a si próprio, amava e odiava, se calhar odiava mais do que amava, não distinguia sentimentos. Amar. Odiar. Sublinhava, torcia o nariz, os vocábulos sabiam-lhe a algodão doce, a enjoo. Era impossível afastar uma fêmea de perna aberta a disparar ordinarices. Não resistia. Não fazia o esforço. A cunhada a rasgar as meias, as cuecas, a pedir uma demão de vermelho nas unhas, a encaixar nua no macho sentado na sanita. Dizer que não. Que viesse outro e recusasse o filete. «Tu és ela e ela és tu e eu sou as duas e os três somos o mesmo, a soma dos três dá um, na hora da morte seremos pó misturado num balde, e se não estivermos os três a planta seca.» Outra folha rasurada. Plantas secas em vez de peito, de tambor. Parras em vez de tum-tum-tum.  A parra murchou. Substancial alteração. O pénis murchou. O pénis murchou, deu um nó e explodiu. Escasseavam escribas de gabarito, eram tão raros que não escreviam. Dava voltas na cadeira. Não transpunha os sentimentos para o papel, ora que bela terapia. Exercitava a caneta: «Somos as estações do ano, frio, calor, nervo, tremuras.» Que fracasso, a beleza interior esquartejada no papel. Soava ridículo. Somos as estações. De modo nenhum. «A distância assusta, gostar de ti, ires para blá, blá, não te blá, blá, a distância é pânico.» Palha. O tal falhar melhor. Falhar pior. Dizes que te afastas, abres essa possibilidade. «Se não te vir mais. Perguntei se gozavas e disfarçava o pálido incómodo. Conheci-te ontem. Sofia, o meu passado, absurdo, nem tem cabimento mencionar o passado, coisinha deprimente. Não me canso de ti, não me canso da tua irmã. Não me arrependo, não sei quem sou, assalta-me esta dúvida, não sei quem sou, vocês assemelham-se a mim, respiro em ti, nela, pertenço aqui e ao universo. Não saber quem sou, nunca soube, a minha luta deveria ser descobrir-me primeiro, amar-me primeiro e depois aos outros. Ando de olhos fechados. O avião despenha-se no oceano, perde-se a vida, estou de olhos fechados, o autocarro atropela-te, definhas na calçada, não reparo, não compreendo, não fui a tempo de merecer outra coisa para além da culpa. Cercado por quilómetros de mar.» O cidadão universal compunha a gola da camisa, clareava a voz com um escarro e rescrevia cidadão universal, cidadão anão, ninguém. O que de bom acontecia, e era tão pouco, vinha com atraso. As mulheres não escapavam à regra. Duas décadas ou, mais precisamente, três décadas de virgindade atestavam a demora. Trinta anos agarrado à mão, a salivar por rabos e seios fugidios, a acenar à dama do quiosque, adeus, vais tarde, a assobiar à vizinha do cabelo caracolado, comia-te toda, comias nada. Trinta anos a cambalhotar na penumbra. Esquecer os problemas, a infância, a mamã. Renascer. Não mostraria a carta, não existia carta. Retraçava. Comia. Palitava papel. Escrevera mas escrever era transcender a parte animal, prescindir da parte bruta, talvez não tivesse escrito, aquilo não tinha relação com a escrita, gatafunhos, migalhas.

 

 

 

 

 

14 De Julho

Hoje, na varanda, enquanto engolia uns goles de sake à uma e meia
De uma noite clara do norte e olhava a bandeira orgulhosamente
Pendurada na varanda de emigrante, lembrei-me das primeiras bandeiras
Da minha vida, penduradas no posto da Guarda Fiscal e na aduaneira
Antes da ponte onde o meu pai comia as refeições quentes envolvidas
Em panos de cozinha que eu lhe levava, com os meus cinco seis anos,
Ele um herói de pistola à porta de Portugal, uma casa grande
Com cheiro a eucalipto e uma língua como a que se falava em casa,
Eu na altura era contrabandista de pastilhas elásticas e iogurtes,
Lutando contra a corrente do ribeiro para salvar os fantasmas
De plástico, brindes de um cromo premiado, caça-fantasmas,
Tinha a caixa de fósforos quase cheia de fantasmas minúsculos,
Todos corrente abaixo, menos eu, e do outro lado a senhora
Da mercearia galega uma língua igual à do Son Goku dobrado,
Nada de bandeiras nas pedras da ribeira que hoje atravessaria
Em três passos, hoje que um pontão e na ponte nem um bivaque,
Só o fóssil de um brasão de um lado e de outro, neste ano
Que ameaça tudo e mata mais os que de olhos no céu
Festejam a liberdade como se fosse algo que ainda exista,
Hoje, olhando uma bandeira, estrangeiro aqui como em todo lado,
Como a própria bandeira, a mesma daquele tempo em que
Ia ao pão com cem escudos e já era grande, e as couves cresciam
Apesar dos caracóis enormes e dos bolsos vazios de fantasmas,
Tão cheios de medo, não daquele medo da gabardina pendurada
No quarto onde dormia num divã, um medo de fogo-de-artifício,
Um medo de me distrair na felicidade num momento e ser
Engolido na loucura anónima que nos leva a erguer muros onde bandeiras.

15.07.2016

Turku

As Aventuras do Senhor Lourenço (§27 senhora inspectora)

(cont.)

A inspectora nomeada para o processo do Lourenço andava na casa dos 50, saia-casaco imaculado, camisa branca a deixar entrever a zona dos seios ("velho truque feminino", pensou Lourenço), maquiagem perfeita, sapatos fechados com salto alto, cabelo pintado de louro. Algum ouro no pescoço, uma pulseira, dois anéis e um Smartwatch da Apple completavam a toilette. Era, sem sombra de dúvidas, a mulher mais bela na escola, tinha aterrado ali, porém, para julgar e provavelmente castigar. Daí um sorriso que nunca desfazia a ambivalência, pondo os interlocutores à distância. Os inspectores, sempre achou isto, deviam ser mestres da distância.

Só falou com Lourenço 2 ou 3 dias depois de ter chegado. Foi no intervalo grande das aulas da manhã. Questão de marcarem, disse a inspectora, o “modus operandi” das audições. Ficou agendada uma sessão por dia, às 18 horas, durante  uma semana. Entretanto, ouviria alunos e pais, tendo já registado a versão, ou versões, da Direcção. Tudo muito eficiente, e isso deixava Lourenço mais descansado, a eficiência era a sua principal adição, não por qualquer impulso irracional, mas porque lhe parecia que continha sempre mais bem do que mal, preferia este critério moral do que as velhas regras que resultam sempre da cosmovisão dos grupos dominantes e, de uma ou de outra forma, impõem obediência e sectarismo.

A inspectora chamava-se Matilde, o nome fora-lhe dado muito antes de estar na moda, na altura era um nome de aldeia. Lourenço soube mais tarde que ela tinha fugido da miséria e do isolamento de uma aldeia beirã mostrando inclinação para servir a Deus num convento de freiras. Uma vocação oportunista, como aconteceu tantas vezes em Portugal. As regras espartanas e o hábito das leituras sagradas no convento tornaram-na uma excelente aluna, formou-se mais tarde em História na Universidade Clássica de Lisboa, com a média mais alta do seu ano. Foi professora durante quase duas décadas, sempre a mudar de lugar, até que concorreu para inspectora de educação, e ficou. Nunca se casou nem foi prolífica nos namoros, era demasiado rígida para seduzir os colegas. Além disso, nas escolas a desproporção entre feminino e masculino é tão grande que o melhor para as senhoras é irem pescar fora de portas. Com tanto por onde escolher, os pouco colegas interessantes apostaram noutras, mas talvez se tenham enganado, a inspectora era agora uma mulher em forma, apetitosa, quase femme-fatal, enquanto muitas das colegas que a tinham vencido há 25 anos ganharam pelo menos 3 barrigas, 20 quilos de gordura e já não se importavam com a roupa ou o penteado. Aliás, parte delas estava divorciada, e só um vibrador lhes podia dar alguma prazer sexual. É verdade que neste aspecto também a inspectora não sabia o que era um pénis há muito, mas se quisesse passar pelas chatices do engate longo, e não apenas levar com um macho apressado em cima dela depois de uma noite de copos, teria facilidade em acasalar, sexual e socialmente. Sentiu esse apelo algumas vezes, mas retraiu-se sempre, pesados os prós e contras, concluía que era melhor ficar quieta, redimindo-se com os sex-toys que tinha na mesinha de cabeceira, comprados nos últimos 10 anos, sempre durante os saldos, a maioria na Amazon. Tinha vários pénis de fantasia, dos mais realistas aos vibrantes e com câmara incorporada (gostava de ver as entranhas), objectos de alta tecnologia, com materiais amigos do ambiente, polidos até ao liso quase metafísico. A inspectora levava a masturbação a sério, encenava a peça sexual ao pormenor, onde o parceiro imaginário se portava à altura do seu desejo e caprichos. Os preliminares, feitos com um diálogo onde contava ao parceiro os seus principais fetiches (ser batida e insultada, sexo anal e oral, receber o sémen na cara), iniciavam a linha ascendente da excitação, cerca de 15 minutos depois estava húmida e começava a penetrar-se, primeiro na vagina, depois no ânus (preferia estes termos aos do jargão vulgar da pornografia). Cerca de meia-hora depois tinha o primeiro orgasmo, por vezes incontrolável. Seguiam-se mais 4 ou 5, geométricos, libertados no exacto momento em que atingia a máxima intensidade, uma espécie de explosão, ou implosão, controlada. Esta segunda leva era conseguida quer pela vagina quer pelo ânus. E pronto, um banho e atirava-se ao romance de cabeceira, ultimamente a reler os “clássicos dos clássicos” (Ulisses, Crime e Castigo, A Procura do Tempo Perdido e O Homem Sem Qualidades), à vez durante a semana, conseguindo não misturar as histórias ou os estilos. Uma leitora pós-moderna num corpo sexuado claramente moderno.

– Colega Lourenço, vamos lá então perceber o que se passou.

– Claro, senhora inspectora.

– Trate-me por Matilde, por favor.

– Com certeza.

– Comecemos pelo contexto: dia, aula e turma, pode ser?

– Claro.

Lourenço desenrolou o fio do novelo, guardado com objectividade na sua memória. Não lhe custou muito, e depois de se ouvir achou que a inspectora só poderia absolvê-lo.

Listen up Philip (2014)

Desde os nomes aos comportamentos das personagens (Jason Schwartzmann é Philip, um jovem promíscuo escritor que acaba de se tornar famoso, Jonathan Price é Ike Zimmerman, escritor jubilado que vive no campo, enterrado em frustrações e preconceitos), tudo em Listen up Philip (2014)  aponta para Philip Roth. Mas se este filme de Alex Ross Perry é uma paródia sobre o escritor, ou sobre aquilo que achamos ser parte da vida do escritor criado em Newark, vai para além disso. Philip Roth e um mundo de recalcamentos e ódios levam-nos à cabeça de alguém que sempre sonhou com a glória literária, que só sonhou com a fama e prescindiu de tudo o que era humano, começando pela empatia e pelo respeito pelo outro. Este filme começa por parecer uma comédia e transforma-se num cruel retrato de dois escritores a viverem distintas etapas da vida, mas ligados pela raiva, pela frustração e pela sensação, muito rothiana, de que as grandes lutas humanas não valem a pena, nem podem ser saboreadas, já que no fim tudo se reduz a uma patética velhice.

O animal invencível

O poema ensina o seu coração, o seu batimento, ele é muitas cidades a arderem em desejo; há no centro do poema um sol que irradia para todos os lados, uma afirmação de vida, uma múltipla fonte de luz. As palavras são centros de vibração, elas tocam-se, expandem-se em ondas, elas são estrelas em pleno nascimento, em nascimento continuo, cada olhar sobre elas as faz renascer. O poema é uma constelação que faz acender a linguagem, que a faz viver; A constelação que é o poema faz nascer a palavra a cada segundo, a cada batimento do coração a palavra é nova, ela tem novo sopro, ela é uma nova afirmação de vida, uma nova fonte, uma nova onda expansiva, a cada batimento do coração do poema surge um novo acendimento, (muitas cidades a arderem em desejo), a estação de serviço em mercúrio, o olhar da minha filha. Cada novo olhar sobre o poema, cada nova leitura, cria um novo nascimento, uma aceleração diferente: eu acelero o poema quando o olho, eu o faço nascer. O poema é um animal invencível, ele é a vitória da linguagem. Quando eu afirmo:

 

O poema ensina o seu coração

e o seu coração é um céu azul.

 

Eu digo que esse coração é um núcleo que acende tudo o que o rodeia; o poema não pergunta o que é o fogo, ele afirma, ele cria uma comunidade, ele une, ele não para nunca de unir. As constelações comunicam, acendem-se, dançam, cruzam os seus fogos, a sua dança pode ser perfeita e - por essa mesma possibilidade - ela é já perfeita. O animal invencível é a possibilidade mesma da vida, a afirmação mesma da vida. Se o poema nasce em frente a um promontório com Safo ou se ele nasce no meio da rua com Cesário Verde, o que os une é esse nascimento, o mesmo batimento que implica diferentes vibrações, o mesmo início, que implica diferentes processos. O poema ensina a cair no chão ou ensina a rir dessa queda, o poema ensina a ver o outro mas também a ser sempre outro, doutra forma diríamos: o poema faz nascer, o poema faz brotar, o poema multiplica ângulos e nisso é tão humilde como uma raiz ou um semente que leva a vida no seu interior e que só necessita um pouco de água, um pouco de terra, um pouco de luz, uma comunicação (que é também assonância e conversa) da natureza. Tudo aqui é soma, tudo aqui é mudança, acrescento, comunicação, comunhão; união enfim, é disso que falamos quando falamos de poesia, de um abraço com uma geração intemporal, de um abraço com Orfeu, de um abraço com Diógenes; este é o contacto que a poesia inaugura, um gesto que se pretende infinito, um mergulho, um abraço, nisso a poesia parece-se muito ao ato de nadar, de atravessar, de romper, quando escrevo um poema atravesso o teu peito a nada e isso é a minha comunhão, o momento de erguer a cabeça e continuar a olhar o chão, aquele momento de acendimento que se dá antes das grandes viagens. O poema antecede a viagem. Ele dá-se num mergulho de luz, num momento de celebração, de encontro (com o todo e com o mínimo), com a flor que rompe o asfalto, com um mundo que se afirma quando o afirmamos. Este é o mundo, resta celebrá-lo, bendize-lo, elevá-lo, acendê-lo, esse é o momento poético, o momento de criação de ênfase.