Àqueles românticos que fizeram templos

Àqueles românticos que fizeram templos
e depois os foram transformando em pedra,
com o olhar, nunca com os olhos,
diz-me, diz-me assim, mansa,
passa a mão sobre mim e fala-me,
assim, muito baixinho:
arruinaste-me.


Numa folha. Num espaço.
Suspira baixinho, respira sem me olhares,
faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem
apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo
a ser como feixes
e entrelaçam-se em nós.

Na ruína de uma folha,
como os românticos,
diz-lhes, diz-lhes assim:
não há lua.
Ouve-as estranhar, e repete:
não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar
desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:
este manuscrito está cheio de ruínas,
está tão morto, tão destruído,
tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,
não por respeito, como se faz aos velhos,
estava a sofrer tanto, coitado,
foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,
a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

e depois os foram transformando em pedra,

com o olhar, nunca com os olhos,

diz-me, diz-me assim, mansa,

passa a mão sobre mim e fala-me,

assim, muito baixinho:

arruinaste-me.

Numa folha. Num espaç

o.

Suspira baixinho, respira sem me olhares,

faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem

apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo

a ser como feixes

e entrelaç

am

-se em nó

s.

Na ruína de uma folha,

como os românticos,

diz-lhes, diz-lhes assim:

não há lua.

Ouve-as estranhar, e repete:

não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar

desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:

este manuscrito está cheio de ruínas,

está tão morto, tão destruído,

tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,

não por respeito, como se faz aos velhos,

estava a sofrer tanto, coitado,

foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,

a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

Àqueles românticos que fizeram templos

e depois os foram transformando em pedra,

com o olhar, nunca com os olhos,

diz-me, diz-me assim, mansa,

passa a mão sobre mim e fala-me,

assim, muito baixinho:

arruinaste-me.

Numa folha. Num espaç

o.

Suspira baixinho, respira sem me olhares,

faz como se não estivesses aqui.

Sabes, as mulheres vivem

apesar das nossas melhores intenções.

Como nós, passam o tempo

a ser como feixes

e entrelaç

am

-se em nó

s.

Na ruína de uma folha,

como os românticos,

diz-lhes, diz-lhes assim:

não há lua.

Ouve-as estranhar, e repete:

não há lua.

Nada nos excita mais do que o impossível.

Depois, senta-te, se souberes pintar

desenha um poema só de palavras.

E espera que ela diga:

este manuscrito está cheio de ruínas,

está tão morto, tão destruído,

tão fantástico como extinto.

Não lhe dês vida. Deixa-o morrer,

não por respeito, como se faz aos velhos,

estava a sofrer tanto, coitado,

foi pelo melhor, não, não lhe desejes a morte,

a não ser que seja por música.

Aí sim, deixa-o viver.

Entre poesia e filosofia

Mário Cesariny, Linha de Água, s/d

Mário Cesariny, Linha de Água, s/d

Diz-nos Filomena Molder: “Muitas vezes, as associações entre as palavras correspondem a apelos das próprias palavras, o filósofo, porém, não pode deixar-se conduzir por esses apelos como o faz o poeta, não é esse o seu ofício”. (As Nuvens e o Vaso Sagrado, 2014, p. 22)

Talvez tenha razão [claro que tem razão, a razão, segundo Descartes, é a “coisa mais bem distribuída do mundo”, já que ninguém, ao contrário do que acontece com o dinheiro e a saúde, por exemplo, pede mais do que a que tem], o filósofo usa as palavras para mostrar, ou, mais raramente, criar algo que as ultrapassa, que existe antes delas e chega mesmo a rir-se delas [cuja altivez é uma forma de camuflar as terríveis insuficiências que minam a ambição de dizer tudo e de forma clara]. Mas é ao mesmo tempo esta distância entre as palavras e os referentes e significantes (os primeiros mais empíricos, os segundos mais metafísicos, “corpo” e “belo”, por exemplo) que define o verdadeiro “ofício” do filósofo, é nesta fenda que tudo se joga, obrigando a uma vida de Janus aplicada ao sentido, em vez do tempo (que também é condição de sentido, diga-se). É por isso que é preciso amar a sobriedade e os frequentes fracassos do vaivém filosófico.

De outra forma, e noutras nuvens, o poeta sabe que as palavras, às vezes as letras, são rizomáticas, que de uma nascem outras, e depois outras e outras, mais ou menos ligadas, levando o poema a colonizar (talvez cultivar) a folha, grafema a grafema, sem saber onde pode, ou deve, parar. Há uma força incontrolável em cada palavra do poeta, a força que arrebata os leitores (também os inquieta, é verdade), desarranja a gramática, curto-circuita os sentidos gastos..., mas igualmente uma força vital que num superior hermafroditismo faz nascer palavras de palavras, com a calma de uma gestação responsável ou na vertigem frenética de variações e prolongamentos explosivos. É por isso que é preciso dançar, mesmo sem talento, com a poesia.

 

A taberna da aldeia

Queixamo-nos a Dimitri das nossas idas desgastantes à taberna da aldeia.

Vamos lá uma vez por mês para socializar, embora a aldeia só tenha velhos, oito velhas e dois velhos e nenhum goste de nós.

Socializar é importante e difícil, mas nós não somos bichos e perseveramos. Neste caso é particularmente difícil, a hostilidade é manifesta. Quando estamos quase a chegar ao largo da fonte, sentimos tanto medo que nos agarramos umas às outras para não cair. Dizemos boa tarde aos velhos perfilados à entrada da taberna, não ouvimos resposta, só sentimos o rancor.

Nós as três juntas não somamos nem de perto a idade da velha mais nova da aldeia.

Levamos sempre uma lista das coisas que fingimos precisar. Quando uma de nós tira o papel da bolsinha bordada e o estica para ler, treme tanto que faz pena às outras duas. O taberneiro nunca tem nada do que pedimos. A mais corajosa de nós, às vezes aponta para a coisa em questão que estamos a ver mesmo à nossa frente, mas ele diz furando-nos as caras com os olhar “já está vendida” e nós saímos de lá sempre de mãos vazias. Os velhos zelosos à porta confirmam que não levamos nada. O cão, de três patas e zarolho, rosna à nossa passagem, que é de longe a coisa mais simpática que nos acontece quando vamos à aldeia.

Dimitri o jardineiro sossega-nos e invariavelmente nos diz que é por sermos jovens e bonitas. Uma questão de inveja e ressentimento. Hoje, contudo, acrescentou: bem podiam retirar da lista das compras os tampões higiénicos. É uma afronta que fazem às mulheres idosas, como se para além da óbvia beleza ainda lhes quisessem atirar à cara a juventude perdida. Uma arrogância desnecessária. Claro que a taberna não tem tampões, porque haveria de ter, é uma aldeia que não precisa deles. E deu uma sprayada de água nas rosas.

Dimitri cuida das rosas e agora deu mostra de querer cuidar de nós, corrigir-nos os defeitos, aumentar-nos a beleza interior.

Chamei as irmãs para uma reunião urgente.

Podíamos nós despedir Dmitri? Era ele nosso empregado? Não tínhamos já chegado à conclusão que as rosas não eram nossas, mas delas próprias? Nesse caso, ele não trabalhava para nós mas para si mesmo, para sua satisfação pessoal, não sendo as rosas senão um meio de alcançar um certo grau de felicidade. Assim sendo, Dimitri perdia o estatuto de trabalhador, tendo de nos devolver não só o dinheiro que lhe havíamos pago ao longo destes anos como ainda acrescentar o valor justo por todo o tempo que tem usufruído na nossa quinta do prazer de cuidar das rosas. Um valor alto, obviamente, porque as rosas são de grande qualidade e ele retira alegria bastante do trabalho que faz. E se quiser continuar por cá terá de continuar a pagar. Deve querer. Mas virá como cliente, como alguém que frequenta um templo de meditação ou usufrui de um spa.

Feitas as contas descobrimos que Dimitri nos deve uma pequena fortuna, com a qual podemos saldar parcialmente a dívida ao pretendente da irmã do meio para que ele deixe de nos importunar.

Findo o plenário, a irmã do meio recolheu ao quarto agarrada à cabeça, a irmã mais nova ficou a olhar para o ar e eu saí para o jardim.

As rosas estavam impecáveis, direitas, firmes, com espinhos agressivos a proteger-lhes a beleza. Bem cuidadas, eram de facto a melhor coisa da quinta. Parti o caule da mais alta e com a corola gorda na mão, arranquei-lhe as pétalas uma a uma e deixei-as cair, manchando o chão de vermelho.

Se eu e as minhas irmãs quisermos atirar o sangue à cara de alguém, atiramos, ainda mais se for para atirá-lo a velhas ameixas secas, ventres murchos. Não viemos para o campo mais longínquo para alguém nos chamar a atenção. Muito menos um homem. Menos ainda um cliente.

Amanhã temos de fazer outra reunião para decidir quem irá dar todas estas novidades a Dimitri.


Depois da representação

 (a partir do estilo de "O Torcicologologista, Excelência", de Gonçalo M. Tavares)

 

- Também está tudo excelente, excelência! Obrigado!

- Gostou da representação?

- Parece-me que este ano foi igual à do ano passado! Mas vossa excelência sabe como sou distraído!

- Tenho também a mesma ideia que vossa excelência, mas no meu caso, sou sempre surpreendido!

- Ainda que a história se mantenha?

- Ainda que a história se mantenha...

- Ainda que as personagens sejam as mesmas?

- Ainda que as personagens sejam as mesmas...

- Ainda que a moral da história seja a mesma?

- Ainda que... bem se se mantém história e personagens, excelência, manter-se-á a moral também!

- Desculpar-me-á a correcção excelência, mas tal conclusão não é válida para as personagens, apenas para a história!

- Ainda assim surpreende-me!

- A sua surpresa é para mim surpreendente! Amnésia?

- Não, lembro-me perfeitamente da do ano passado. E da do ano antes desse!

- Continuo surpreendido excelência, mas a surpresa mudou agora de coroa!

- Até dos actores me lembro!

- Agora surpresa e coroa mantém-se no mesmo trono.

- Não é a história, nem a moral que me surpreende!

- Continuo o meu relatório preciso de actividades internas: Mantém-se a surpresa, mas desta vez está completamente perdida!

- Acalmo prontamente vossa excelência...

- Surpreendida!

- Surpreendida... O que me surpreende é a avidez com que vejo a representação (história, personagens, actores, cenário) todos os anos!

- Avidez!?

- Sim! É como um conforto excelência! 

- Um calor?

- Nem exterior, nem interior!

- Nem poético da sua parte!

- Nem da sua!

- Concordo!

- Concordamos!

- Mais um conforto excelência! Mas partilhava com vossa excelência, é como se fosse uma manta, uma lareira, um doce, uma refeição, um aconchego, um abraço, um banho de sol na praia...

- Ainda que o sol esteja muito quente?...

- Ainda...

- Ainda que se queime com o sol?...

- Ainda que me queime com o sol...

- Mesmo sabendo que se vai queimar com o sol?!...

- Mesmo sabendo que me vou queimar com o sol!

- De antemão!

- De sobre aviso e sem protector, excelência!

- Desde quando? 

- Desde sempre, desde que me lembro, desde que me sabe bem!

- Mesmo que a representação tenha três condenados à morte?!

- Injustamente!!!

- Bem, em bom rigor apenas um, e depende a quem se pergunta!

- Ainda assim excelência, faz parte da beleza da história!...

- Ainda que se acuse um inocente!

- É poética!!

- Ou comédia, ou tragédia, excelência!!!

- Tragédia seguramente!!!

- Acho que até aqui se difere também na opinião dos inquiridos! Mais o quando do que ao quem!

- Assim seja, excelência!

- Mas o aconchego chega-lhe também pela exortação à dor e à morte!

- É apenas um prelúdio da história, excelência! Não julgue uma história sem a sua conclusão!!!

- Mas a representação fica-se apenas pela condenação, flagelo e morte!

- Assim o diz!

- Assim o é!

- Ainda que não sejam qualidades louváveis?

- Ainda que nem sequer sejam qualidades!

- Assim o diz, da boca da verdade!

- Mas não se esqueça de Domingo!

- Domingo não faz parte da representação de hoje!

- Excelência...

- Não vi nada disso hoje! Vossa excelência viu?

- Não, não vi!

- Apenas viu condenação, flagelo e morte! Ou saí antes de tempo?

- Saímos os dois no fim da peça, excelência!

- E mesmo assim reconforta-o?

- Sim!

- A dor, a condenação, o flagelo e a morte!

- Assim o disse... Mas como prelúdio... Como um prazer antecipado do que vai acontecer!

- Como aperitivo? Como preliminares?

- Sim, quase como isso!

- "Quase" asseguro-me que é a palavra chave!

- A que se deve tal segurança!

- Vossa excelência vai hoje reconfortado para casa?

- Muito, gostei muito da peça!

- Deitar-se-á descansado e satisfeito?

- De barriga cheia excelência!

- Belo ponto! Pego aí mesmo! E numa refeição,... por exemplo, o jantar de hoje!

- Que tem o jantar de hoje?

- Teve aperitivo?

- Não devendo, teve sim senhor!

- Dos bons?

- Dos excelentes! Um martini, amendoins e bolachas salgadas!

- Um luxo!

- Uma verdade!

- E ficaria bem apenas com o martini e os salgados?

- Com a fome com que estava, parece-me impossível! 

- Inverosímil!

- Para qualquer outra excelência que mo perguntasse! Seria impossível acreditar, mesmo que lhe mentisse com todos os dentes!

- Não se deitaria satisfeito!

- Nada! Impossível!

- O jantar foi bom!?

- Rico e farto! Óptimo, ainda que exagerado, reconheço, mas foi tudo isso!

- Ou seja sem jantar, não se deitaria satisfeito! Mesmo que amanhã soubesse que jantaria fartamente?

- Impossível! Nem só de pão vive o homem! Nem de expectativas! Por isso há que vir todo o acompanhamento do pão! Aliás, deixemos o pão! Esse sim é que acompanha!

- Bravo excelência! É bom ouvi-lo falar. Mas o que diz traz-lhe um problema!

- Vários...

- Exacto, o primeiro e o mais proeminente, comecemos pelo importante, é que a analogia que fez não é, digamos..., verosímil, para usar as suas próprias palavras.

- Estou perdido!

- Ora, vossa excelência disse que hoje ia reconfortado para casa, não é verdade.

- Sublinho!

- Mas que a peça, e excluo o jantar, ainda que comparada a um aperitivo para Domingo, o reconfortava!

- Subscrevo...

- Mas acabou de dizer que se hoje se deitasse só com um aperitivo, desta vez no estômago, não lhe chegaria! Nem mesmo sabendo que jantaria amanhã! Como no Domingo!

- Disse...

- Ou a comparação não é boa, ou a explicação de vossa excelência é parca...

- Excelência... Melhor também não lhe sei explicar... Mas é verdade...

- Mas a segunda parte, ainda que menos importante, não sei se a considero menos gravosa. Ou vice-versa!

- ...

- Consideremos que o reconforta.

- A peça.

- Essa mesmo. A sua mensagem.

- Sim...

- Vossa excelência reconfortou-se com a dor, a injustiça e a morte. Considerando-as como não qualidades ou sentimentos que não se enalteçam. 

- Como aperitivo...

- Mas aperitivo com o qual dorme bem hoje e reconfortado!

- Assim o disse... e assim o sinto...

- A minha surpresa, para além da sua, é esta mesmo excelência!

- E minha... Não creio que me tenha apercebido!

- E a mim, não creio que este meu raciocínio me tenha inibido de, mesmo assim, aqui ter vindo hoje...

- Estranho... Já bebeu do vinho quente da paróquia excelência?

- Não, mas ouvi dizer que este ano experimentaram especiarias novas!

- Venham de lá esses canecos!

- Bem lembrado excelência!

- É sempre um prazer beber bem acompanhado!

- E reconfortante!

- E reconfortante...


Agosto

I – Torre de Dona Chama

O gato abandonado
atravessa o restolho
do fim da tarde.

A passarada canta
ao anoitecer –
são os vizinhos que restam.

O tractor regressa –
leva a fome
que contra o calor lutou.

Noite quente de Verão –
as rãs acordam
do seu sono molhado.

Os dedos soltam a corda –
naquele instante
nasce um poema.

Já no ar leva traçado
o seu lugar no alvo –
a flecha.

O rio passa
quer a cigarra
cante ou cale.

O Sol põe-se,
as cobras procuram
a companhia das sombras.

Pinheiro ao Sol –
do fundo do vale
olha-se a distância.

No cimo da fraga
acumulam-se
as fezes do gineto.

Quantas folhas caíram hoje,
não interessa –
o rio leva-as todas.

Reflectido no rio
o poeta vê-se mais nítido
que no poema.

Portas fechadas –
o Sol ainda beija
com a língua afiada.

Por cima da fraga dura
passa leve
a borboleta.

Debaixo do carrasco
eu também
onde as folhas caíram.

No crepúsculo do Verão
os grilos acendem
a noite.

[1]No carro do padre
cagaram
as pombas.

É quando o Sol
se põe que os juncos
mais crescem.

no mantra da noite quente
balança o passado
e o presente.

As pedras ainda quentes –
há anos que ela
partiu.

Os escorpiões em álcool
ainda duram –
quantos amores esquecidos.

O açúcar seca no fundo
da chávena –
o hálito a café permanece.

Noites quentes
de ausência –
confabulação.

A Lua segue
as gotas púbicas
na carne quente.

Caem-lhe dos bolsos
gordas larvas –
ninguém irá comer.

A macieira solitária
no lameiro verde
tem a sombra mais bela.

A brutalidade passeia
vestida de incêndio
na canícula.

Contra o rigor da natureza
e a crueldade do homem –
desabrocha a flor.

Quanto menos se tem
menos se
cala.

Ignoram as moscas
que o vidro frio
as espera na janela.

Ainda hoje procuro
o Sebastião Alba
longe do cemitério.

Não há cegueira
que trave
a visão da mão.

Escreve-se melhor
à sombra
dos teus beijos.

 

II- Figueira da Foz

Só as ondas
insistem
no regresso.

Estamos à distância
de um sorriso
ou de uma palavra?

Não é a partida
da andorinha
que traz o Outono.

Eles procuram ser
os sonhos
uns dos outros.

 

III- Porto

Acende-se um cigarro
e sopra-se
no fumo.

À beira do rio
outra vez
como nunca antes.

Entre séculos de fome
esperam inquietos
os fartos.

A loucura alimenta-se
de gritos
e solidão.

Nem o espelho
me reconhece
a desilusão.

A cerveja aquece –
mais rápido
a saudade aparece.

A gota de Porto
caiu-me na pele –
o teu suor.

Os turistas
na minha terra
como eu.

Instala-se o cansaço
como um
pôr-do-sol na montanha.

Um porto entre
cigarros –
o sabor da tua língua.

O rio corre
quer haja lágrimas
quer não.

Dói o luar
Desta noite –
Quebra-se um prato.

Babel –
é aqui que me sinto
em casa.

Agosto 2016


[1] Versão do haiku de Yosa Buson: “Sobre a imagem santa/defecou/uma andorinha”