Analítica da actualidade

Uns dias atrás, alguém, visivelmente desocupado, teve a ousadia de me perguntar o que significava a “Analítica da Actualidade” com que assino contextualmente os meus textos aqui no blog da Enfermaria.

Não senti qualquer impulso para procurar uma resposta (creio que envelhecer também se faz desta boa demissão, refinada, que quando é mal entendida aparece como desdém ou outra qualquer forma de sobranceria). Mas lá declarei a custo, “é o que as palavras dizem”. “Está bem, mas o que entendes por analítica e actualidade?” Continuou, em modo de desafio, o meu interlocutor. “O que toda a gente entende!” Respondi, novamente a custo. “Quem é essa toda a gente? Isso não existe, é uma abstracção abusiva.” Asseverou o meu contendor (comecei a considerá-lo assim), com um fiapo de riso cínico no lábio superior. Resolvido a acabar de vez com a conversa meio fiada, disparei: “claro que é uma abstracção abusiva, como a tua pergunta, aliás, abusiva e abstracta; é para isso que serve a linguagem verbal, abstrairmo-nos da matéria bruta que forma as coisas e abusarmos da representação, generalização, simbolização... Tudo o que ela transporta é um abuso”. “Boa, agora desconversas, entraste finalmente na tua especialidade, desconstruir”, retorquiu o cavaleiro negro. Tentei fulminá-lo com o olhar mas não consegui (já viram algum raio sair de olhos cansados?). Tive depois o ensejo de virar costas e desaparecer, mas, por enquanto, o espartilho moral impediu-me. Socorri-me então de uma palavra-moda entre os adolescentes: “whatever”. E fui-me, fluindo entre uma multidão de alunos que sonham, sem olharem ao lugar, com vidas heróicas (às vezes digo, fingindo um lapso, “eróticas”, sabendo que eles vivem numa estranha embriaguez emocional).

Bem vistas as coisas, claro que ele (é um homem barbudo, com pêlos nas costas e tudo) foi oportuno no questionamento, mas ao querer aliar a oportunidade ao desafio, ao querer ver-me fracassar sem verdadeiramente me passar uma rasteira (há compensações quando se é vencido com batota), transformou o conveniente numa pequena indecência que não me apeteceu aturar. E mesmo que já não seja austero como uma lâmina, lá vou lançando os meus ataques estóicos.

Aqui entre nós, talvez, por verdadeiramente não gostar dele (porque reaviva o velho paradoxo de um corpo-bola irradiar um semblante triunfante), não lhe quisesse dar a ouvir esta magnífica nota de Peter Sloterdijk (grande herói do inconformismo regulado): “Não somos mensageiros do absoluto, mas indivíduos com ouvido para as detonações do nosso tempo.” (Peter Sloterdijk, O Sol e a Morte, diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs”).

 

5 poemas de NINGUÉM VAI PODER DIZER QUE EU NÃO DISSE I

Ninguém vai Poder Dizer que Eu Não Disse I, meu terceiro livro, foi lançado em 22 de Setembro, no Bar Irreal, em Lisboa, Portugal. É o primeiro volume da série com pequenos poemas, ainda que a maioria no formato prosa. Testados/lançados primeiramente aqui e ali, em “salas” da internet. Série que, no caminho que faz, em sua essência, gritam meu íntimo, incluindo nela fragmentos do episódio em que fui brutalmente apaixonada e então brutalmente agredida pelo acidental e efêmero amasiado (o cavalo. o falso cego. cavalo de bengala?). Mas não vamos ofender tão lindo ungulado. Então posso dizer que poeticamente temos aqui um livro do cotidiano, pequeníssimos manifestos, axiomas, enunciações de várias fases (dolorosas, bonitas, pulcras, estragadas, desempoadas) entre hematomas e sorrisos apaixonados, claro, se valendo do lirismo para melhor ser.

........................................................................

~

invento minhas políticas. você sabe. erramos ou não a fruta. o ritual é deixar que a fruta seja seta antes das moscas. ajoelha-te amo-te ajoelha-me o amor e a fruta será. um filamento de sim e um de não. também um de sim e não. sofro-me vermelha. sofres como amarelados castanhos. a noite faz uns descansos sobre as cordas de macacos japoneses no shamisen de saber o ventre feminino. ENQUANTO A GENTE CORRIA EU VI A PONTE SOB. terminei a frase antes que o ritual alimentasse as moscas.
 

~

correr e parar e gritar ao penhasco NO MUNDO HÁ SEMPRE UM HOMEM DE BOAS MÃOS CUIDANDO DO MUNDO e quase despencar e quase despencando ser agarrada pelos cabelos e sendo agarrada pelos cabelos saber a lã. ai. a lã. um cheiro de boca. e me virar. EU CONHEÇO ESSA GUERRA EU CONHEÇO ESSA PAZ.

~

um mamute retorna de seu trabalho
mapear um intervalo de poeiras
dirá
das dificuldades em manter uma linha aqui e outra ali
deitará sua massa no mato com baunilhas
sentirá esse sono que todo homem sente: um mamute retorna de sua era.

~

detenha o focinho diante da janela. teu bafo faz auréolas arrecadando prostitutas da tua cidade: ENTENDO QUE É PRECISO COMEÇAR A PENSAR UMA NOVA CIÊNCIA ESTENDEDORA DE HÁLITOS.
 

~

voltar o filme, ver como o cego vê. vê como o cego vê. volta o filme pra ver: a mulher caminha até uma árvore. lá está seu namorado segurando uma carta de despedida e uma aliança e uma flor. tudo fede a peixe e não há garantia alguma de que a trilha sonora possa ser original, por exemplo. segure-se nuns ramos de coisas: o filme está para começar: em qual época da minha vida eu comecei a enxergar o prato sem as coisas nele? os fatos fora do prato. os talheres como ganchos para assuntos paraninfos, a família como jogo de talheres, os besouros como broches? só o cego sabe de qual flor falo eu. pequeníssima risada: falo eu.


Ninguém vai poder dizer que eu não disse I encontra-se à venda na Letra Livre, Pó dos Livros, Sr. Teste, Fnac ou directamente pela Douda Correria (facebook ou miasoave@sapo.pt)
catálogo: doudacorreriablog.wordpress.com

Not taken

A cinza deslocando-se atmosfericamente contra o asfalto
dispersando-se como faísca, desaparecendo
como um prodígio que se afoga na floresta
por negar viver junto de sentimentos calados, fechados
na lei dos semáforos da madrugada.
Os faróis do carro passam por nós,
iluminando os pares observatórios no meio de tanta escuridão
tenho sono e sinto um pássaro no peito
quando a tua mão aperta a minha
quando o elevador é o lugar do nosso beijo
quando pedes para afagar o teu cabelo aparado.


The ash shifting atmospherically against the asphalt
dispersing as spark, disappearing
as a prodigy who drowns into the forest
to deny living together with quiet feelings, closed
in the law of traffic lights at dawn.
The car headlights pass us by,
illuminating the couple observatories in the midst of so much darkness
I sleep and feel a bird in the chest
when your hand tightens mine
when the elevator is the place of our kiss
when you ask to stroke your trimmed hair.


wastelands

quero dos teus olhos
esse naufrágio azul
sobre as pálpebras
o bom dia, senhora
no sotaque indefinido
de manhã 
quero a inutilidade
do candeeiro
quando a luz invade
as portadas
e se te deixas inteiro
na condescendência
da nudez, é a tua
boca que procuro
ainda cega, perdoa
se a sede é permanente,
levo aos dedos o teu sémen
por imaginar belos
os filhos dos teus filhos,
então invade sobe
trepa o meu ventre
(seremos sempre
animais de baldios) 
e perdoa de novo
se tudo o que tenho  
é esta absurda solidão; 
aceita a minha inabilidade
para traduções complexas, 
é em português que te ofereço a língua
e todas as minhas
petit-morts. e quando cair babel
estarei aqui plantada,
gerando raízes nesta terra
de ninguém, 
entregando-te a coragem
de já não saber da pátria
e as estrias os dentes
as costas vendadas
prontas para te receber
ao pequeno-almoço, e sim, 
esta sou eu e não
a ausente de mim, 
submissa ao relento de
um dia
não estares mais. 
é assim que recebo
a catástrofe, 
os restos das tuas sardas
sobre o meu corpo, ou: 
mais uma manhã 
abraçando
teu naufrágio.


Pequena entrevista a Luís Ene (e selecção de textos)

Entrevista a propósito do lançamento do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido (Lua de Marfim, 2016)

Contactei pela primeira vez com Luís Ene a partir da revista online “Minguante”, que agregava um vasto conjunto de jovens e menos jovens autores, essencialmente portugueses e brasileiros, unidos pela vontade de publicar contos muito breves. Em 2007,  por ocasião da apresentação de uma antologia luso-brasileira (Contos de algibeira) daquilo que então parecia ser a grande moda literária do momento, a microficção, apertei pela primeira e única vez a mão ao autor. A sensação com que fiquei foi de estar a lidar com um homem afável e bom, embora, por nunca mais  com ele ter privado, nunca tenha confirmado essa sensação, que ainda se mantém. No ano seguinte, tanto eu como o Luís tivemos textos incluídos na Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa. Muitas vezes acontece-me esquecer quem sou, livro de 2006, em edição bilíngue (português/ espanhol), e Saudade de Água - Memórias de Faro (2011) são duas obras de Luís Ene ilustrativas da sua atracção por textos que, não obstante sejam muito, muito curtos, contêm algo mais essencial para a literatura do que o relatar de uma história, a intensidade. No referido livro bilíngue encontrei um texto que ainda lembro como algo que ensina a estar neste mundo (e talvez seja disso que se fala quando se fala de literatura): “Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.”

Olá, Luís. A revista “Minguante”, da qual foste um dos editores, publicou dezenas de autores. Como eu, muitos deles publicaram na revista os seus primeiros rabiscos ditos literários. Talvez não erre se afirmar que as duas antologias de microficção em que participei existiram por causa da “Minguante”. Tudo isso passou mas ainda me lembro daqueles tempos e de ti.

Olá, Paulo. Fico contente por estar de novo em contacto contigo, o qual na verdade, sinto que não perdi desde o tempo da "Minguante", ainda que sempre à distância. Penso que foi da única vez que nos encontrámos que me disseste da importância que teve para ti publicar na "Minguante", o que, confesso, muito me agradou. Segui-te sempre com atenção e admiro o que arriscarei chamar a tua coragem e persistência.

Tendo em conta que estamos em países diferentes, deixa-me perguntar-te como estás a escrever. 

Comecei por escrever este texto à mão, num caderno de argolas, pautado. Escrevo habitualmente à mão, porque sinto esta forma como mais natural, mais perto do corpo e de mim, mas a verdade é que teclo devagar, com dois dedos apenas... Escrever à mão é diferente, não se pode cortar, copiar, editar, como não deixaria de fazer se estivesse a escrever diretamente ao computador.

Vou tentar responder a todas as tuas perguntas, porém não vou seguir a ordem em que as apresentaste. A primeira coisa que pensei, quando acabei de ler as tuas perguntas pela primeira vez, foi que o livro que agora publiquei responde, em larga medida, a todas elas; na verdade este livro apresenta-se para mim como um balanço da minha atividade literária, o traçar de um verdadeiro ponto da situação, onde me interroguei sobre de onde vinha e para onde quero ir como escritor que sou.

Trocámos há uns anos opiniões sobre o que seria a microficção. Lembro-me de te dizer que a microficção e os microficcionistas não existiam. Queria dizer que o que existe são textos e escritores, que catalogar ou rotular pode afastar o autor e os seus livros dos leitores. Agora não tenho a mesma convicção. Que é para ti a microficção?

Por estes dias tenho defendido a existência de escritores algarvios e tenho-me apresentado como um deles. Não vejo que esta posição me limite como escritor que sou, porque escritor é o que eu sou primeiro, é essa a minha substância, e só depois sou um escritor algarvio e mesmo um escritor farense. Da mesma forma me digo português, europeu, mas sinto-me, sempre e primeiro, apenas humano. Vêm esta considerações também a propósito da microficção. Na altura, microficção pareceu-me uma classificação suficientemente abrangente para agrupar toda uma série de manifestações literárias breves. Hoje como então, qualificações como esta são vistas em Portugal por muitos e desde logo pelos próprios autores como limitativas e castradoras. Ainda há pouco tempo, um escritor a que eu chamaria algarvio, porque aqui reside e aqui se manifesta, interpelado sobre essa condição, reagiu de forma vigorosa, considerando-a ofensiva e negando-a. E de algum modo o mesmo se passa em Portugal quanto aos poetas e contistas, ainda que de outra forma.

Conheço quem defenda que textos de quatro linhas ou de uma ou duas frases não são literatura. Vejamos um pequeno conto: “Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida.” O autor deste conto é Lydia Davis. Autores menores ou menos conhecidos são acusados de não fazer literatura com textos do género. Que dirias em defesa dos teus próprios livros?

Escrever um texto breve e intenso não é fácil nem acontece com facilidade, todavia o que acontece quando confrontamos um excelente texto breve com um excelente texto longo é que o segundo parece sempre pesar mais, mas a verdade é que valorizamos mais o peso do que a leveza quando avaliamos um texto literário. 

Dizer o que se sabe é sempre dizer pouco, por isso prefiro dizer o que não sei, o que é sempre mais complicado. 

Tenho convicções hoje que não são muito diferentes das que tinha anos atrás quando me esforçava por defender a microficção, a diferença é que hoje nem me dou ao trabalho de responder a certas afirmações que são ditadas sobretudo pela ignorância e nalguns casos pelo medo, que andam em regra juntos. Referes Lydia Davis, acrescento Charles Simic (de o Mundo não se acaba, nem mesmo traduzido em português) e até Charles Baudelaire dos pequenos poemas em prosa (O spleen de Paris). O pequeno poema verso “Ama como a estrada começa”, de Cesariny,  não levanta infinitos seguimentos, infinitos ecos? Como colocá-lo no entanto num dos pratos da balança quando no outro está, por exemplo, Moby Dick de Melville? E no entanto…

Uma pergunta que é ao mesmo tempo um lugar-comum: que autores lês, ou melhor, que autores te fizeram querer escrever livros como o que agora lançaste? 

Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly (sobretudo de as Tisanas) são autores que me fizeram sem dúvida querer escrever como escrevo. No primeiro revejo-me sobretudo na ironia breve, no segundo revejo-me sobretudo no experimentalismo feroz.

Que livro gostarias de escrever mas nunca ganhaste coragem para isso?

Um livro que gostaria de escrever, mas que tenho evitado, ou não tenho tido mesmo coragem para isso, seria uma incursão na chamada literatura de não ficção. Elaborei em tempos um projeto, com o titulo provisório de Crimes Exemplares e em que me propunha viajar pelo país e tentar reconstruir certos acontecimentos marcantes, alguns já com vinte anos ou mais, usando todos os meios habitualmente atribuídos aos jornalistas e aos historiadores, mas depois tudo contado na primeira pessoa e recorrendo a processos literários.

No último texto do teu livro, precisamente intitulado “Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido”, temos uma lista: escrever até não conseguir escrever mais, escrever por necessidade, não saber por que motivo se escreve, escrever pouco e curto por preguiça, porque é fácil, escrever textos curtos por causa da intensidade, etc. E depois: “Mas não ficou muito tempo a pensar no que descobrira e meteu logo mãos à obra, que era a sua forma mais comum de pensar num assunto”. O mundo é complexo e as histórias, e as tuas histórias, passíveis de ser multiplicadas até ao infinito. Poderias pensar até ao infinito. Tendo estas coisas em mente, consegues resumir em algumas linhas ou frases aquilo que tens sido e aquilo que queres ser enquanto escritor? 

Deixa-me dizer-te que este último livro, na sua unidade, é para mim como um ensaio sobre o que é a escrita, ao estilo de Montaigne, que estou a reler com atenção. E no entanto, cada texto, em si mesmo, é completamente autónomo. Terminei posteriormente uma novela, chamar-lhe-ei assim, e é talvez por aí que quero ir, sendo que escrevo por necessidade e escreverei aquilo de que sentir necessidade. Sou eclético, como me disseram uma vez pretendendo insultar-me, e gosto sobretudo de experimentar.

A partir daqui, o autor prefere explicar-se com textos retirados do blog Diário mais que improvável (http://diariomaisqueimprovavel.blogspot.pt)

Tudo começa na página em branco. Tudo começa quando a escrita invade a página em branco, quando a escrita povoa a página com hesitantes porém determinados começos. E as perguntas começam a surgir. Quem escreve? O que se escreve? A primeira personagem de uma obra literária é sempre o seu autor, ou será que existe escrita sem autor? Pode o ato de escrever ser automático quando existe alguém que escreve? É claro que também existe algo que se escreve. O texto literário é o encontro entre alguém que escreve e um algo que se escreve. O processo, sim, o processo é uma outra história.

 Uma palavra à frente da outra, é assim que se escreve, é assim que se contam todas as histórias. É assim que escreve quem escreve, é assim que se escreve esse algo que se escreve. Parece fácil e é fácil; parece difícil e é difícil. Com as palavras nada é fácil e no entanto nada é verdadeiramente difícil, porque basta colocar uma palavra à frente da outra e esperar que algo aconteça, esperar que algo se escreva. Mesmo quando se responde a um apelo, a uma urgência, escrever é sempre partir à aventura, é sempre estar aberto a todas as possibilidades. Como se escreve? Escreve-se, escrevendo! Escreve-se colocando uma palavra à frente da outra. É pouco? Talvez, todavia é um pouco que é muito. Se queres escrever, escreve! Se precisas de escrever, escreve! Só escrevendo despertarás esse algo que espera ser escrito, esse algo que espera escrever-se.

 Escrevo, palavra a palavra, com cuidado. Observo, observo-me, escrevo. Como se seguisse um caminho que eu próprio imagino mas que me leva quase contra a minha vontade. Estou a caminho, como se conduzisse um carro por uma estrada qualquer

Espero, suspendo a escrita, respiro fundo. Observo, observo-me. Respiro fundo, respiro mesmo fundo, uma e outra vez. Sinto-o e escrevo-o mais uma vez. Tento encontrar a verdade desta mentira que é escrever. 

A estrada está à minha frente, é de noite, estou sozinho; para chegar seja onde for tenho de continuar. Posso perder-me, posso não chegar aonde quero, supondo que sei onde quero ir; mas chegarei a um qualquer lugar, esta é a certeza de escrever.

Estou preocupado, combato medos, luto contra a crescente ansiedade, porém tenho a certeza de que a estrada existe e que chegarei a um qualquer lugar, se a seguir; e isto é escrever.

Mas também posso ficar pelo caminho, pode faltar-me o combustível necessário para chegar, ou pelo menos para me reabastecer e continuar. Avanço, corro o risco, confio na minha sorte, confio nas minhas capacidades, deixo-me levar pelas palavras, aproveito as descidas, faço-me leve, persisto, ignoro os sinais de alarme, digo a mim medo que vou chegar e quando dou por mim, contra todas as possibilidades, cheguei ao ponto que me permite parar, que me permite continuar. 

Observo-me, sinto-me, digo a mim mesmo que vou ficar por aqui, que depois continuarei a percorrer a estrada. Digo-o, escrevo-o, e fico por aqui. Antes de terminar volto ainda atrás, e revejo o que me aconteceu. A escrita é sempre memória de si mesma.

 De entre tudo o que escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que voltei várias vezes e que arrumei finalmente numa única pasta, no que foi uma forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a escrever.

Constato que a minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia, apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque tenho publicado muito pouco. 

É difícil datar estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os, dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.

Começo por uma versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem. 

*

Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

*

Escolhi este texto, hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias, podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas em prosa, pela sua concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.

*

De um livro com o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão. Continuo.

*

Perguntavas-me o que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido pela crítica? Vender muitos livros?

Eu dizia-te que não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda não tinha respondido a essa pergunta.

*

Texto breve, fragmentário, abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.

*

POEMA UM DIA

a minha história é uma história

defrac assos

ostentoos- todos um a

um

alinhad

os no meu peito

aberto

eles são a prova provada

da minha persistência

da minha coragem

da minha teimosia

ser herói não é ser vencedor

ter sempre os olhos postos

na vitória

ser herói é não aceitar

a derrota

sabendo que nunca

se vencerá

termos os olhos postos

em nós

e vermos os outros

termos os olhos postos

nos  outros

e vermo-nos a nós

ser herói é apenas

sermos homens e mulheres

simples

deuses caídos em desgraça

e aceitarmos

o nosso trágico destino

com um sorriso pleno

de revolta

 

[um poema escrito em poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os poemas dizem tanto mais quanto mais calam]

*

Não me detenho e visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia. 

*

Está tudo no olhar

 

Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás? Então olha!

*

Fico a pensar se me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a mais nova.

*

Escrever é viver entre parênteses

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.