Já sois chegados, já tendes diante a terra de riquezas abundante

 

José Quarenta, de quarenta anos, antigo José Trinta e Nove, de trinta e nove anos,  lisboeta, desempregado, desterrado em apartamento T-0 em ruínas decorado com bolor e humidade nos tectos falsos e nas paredes e nos móveis e na roupa pendurada no armário, encolhe-se na cama a regressar ao útero materno, morde os joelhos, os joelhos ensanguentados, joelhos feios como a minha cara de velho, falhado, cara de quem não é bebé e perdeu dentes e esperança, acima de tudo esperança, que é o que confere graciosidade a esta mescla de poros e fluidos e ranço, ranço.  O corpo a doer no peito, é isto a ansiedade, um tornado a apertar o crâneo, desesperar por não ser hoje, por não ser amanhã o homem que não se foi em tempo algum. José remastiga palavras de William B. Yeats que descrevem o moribundo como um animal sem temor nem esperança, palavras a zoar desde 1982, ano primeiro de abandonos e de doenças nervosas, sente-se aquele moribundo seco para sensações boas ou más, seco para sentimentos, seco como uma poça exposta ao calor de julho, lama feita barro que se desfaz mediante pisadela.  As semanas passam, ora bolas, semanas a passar, que lugar-comum, que falta de domínio linguístico não ter outra forma de dizer que as semanas se sucedem sem que algo diferente das costumeiras tragédias diárias converta o vazio existencial numa vida interessante e bonita e digna de ser vivida. Os cães ladram, raio dos bichos, nem a lei da pantufa os apascenta, cães frustrados, por passear, a largar fezes pela casa. O carteiro, santo e gordo carteiro, a dormir na caminha até às duas da tarde, sem trazer as cartas fundamentais, cartas das namoradas, por exemplo, cartas que não sejam para pagar a caríssima electricidade. Não o chamam para entrevistas de emprego, para isso não me chamam, ai se chamam, e os caminhos para o dinheiro, que caminhos para o dinheiro? Ao ler numa manchete de jornal que o pessimismo é uma profecia que se realiza, pensa na quantidade de vezes que viu realizadas as suas profecias. Tantas vezes a avistar o apocalipse, a ser profeta da desgraça, a viver o pior, a saborear dores que mais ninguém sofre. José afunda a testa na almofada e diz deus e arrepende-se porque deus não existe ou porque deus é demasiado grande ou porque nada, jura que um dia mata o caniche, o idiota, e desata a correr até à linha do comboio, para fazer o quê não sabe, mas até à linha do comboio, talvez para morrer esmagado (mas o som dos ossos a partir, e a imagem dos olhos nos sapatos do transeunte desencorajam e não devia ser assim tão difícil morrer). Eu o cão, que cão, realidade, estas imagens na cabeça em remoinho, a confundir o passado com o futuro, o menino de quarenta anos a escorregar para dentro da barriga da mamã embarcada séculos antes, mais concretamente em 1504, para Alcácer-Quibir. E nada mais do que isto diz respeito a esta vida.  

 

 

 

 

 

 

 

Depois de Bashô

1.

Cobras esventradas
na estrada ― chegou
o Verão

 

2.

A voz de Kerouac
o gato e uma bola de papel:
a casa menos vazia

 

3.

Trinta alunos a olhar
pela janela
o Outono lá fora

 

4.

O gato
tapa o focinho —
Inverno

 

5.

O prédio
em silêncio: hora de ponta
nos subúrbios

 

6.

No chão da cozinha:
a Lua — prato
donde come o gato

 

7.

Relógio:
água a pingar da
torneira

 

8.

Roupa no estendal
da cozinha —
chuva lá fora

 

9.

Na cadeira
o gato observa
cavalos a relinchar

 

10.

Cabeça entre
as mãos — teste
de Matemática

 

11.

Análise sintáctica:
sujeito nulo —
poeta

 

12.

O meu
Monte Fuji: Fraga
da Cruz

 

13.

Durante as aulas
alunos pelos corredores —
Psiiiiiiiiiiiiu!

 

14.

Da sala sete
o pinheiro do pátio
parece um bonsai

Trump, democracia e Stephen King

Donald Trump veio agitar as águas meio adormecidas da virtude democrática. Sempre houve, sempre haverá, anti-democráticos, algo, aliás, que a própria democracia não só deve aceitar como estimular, caso contrário entra em auto-contradição e tenderá a cristalizar. Mas com Trump as dúvidas adensam-se, mesmo no país onde, como referiu Tocqueville, as “ideias democráticas constituem uma forma de religião cívica”.

Ultimamente, escreveu-se muito sobre o declínio da democracia, evocando como prova o candidato à Casa Branca do partido Republicano. “Se uma personagem tão insensata e mentirosa pode liderar o país mais poderoso do planeta, então a democracia não pode ser um bom regime político!” Ora, é justamente porque quase tudo cabe na democracia, isto é, na vontade do povo (manipulada ou não, esta é outra questão), que Donald Trump pode ser Presidente. Noutros termos, se houvesse critérios de virtude irredutíveis para a escolha dos candidatos, então não seria uma democracia, mas uma normocracia, se me permitem o neologismo. Mais, imaginem que todos eles tinham de ter dito “a verdade, e nada mais do que a verdade”, quantos seriam verdadeiramente elegíveis? E não me refiro a mentiras piedosas.

Dito isto, sou relativamente agnóstico em relação às eleições americanas porque não quero prenunciar-me com base em preconceitos, mas parece-me que só a cair de bêbado votaria em Donald Trump. Justificação? Desagrada-me o seu carácter (o visível) e a sua mensagem (nacionalista, belicista e quase racista). Mas mais do que isto, escolho como minha a argumentação que Stephen King (raramente o li) expôs no The Guardian, Agosto de 2016:

“Não acredito no suposto nivelamento por baixo dos americanos; mas, à medida que a leitura quotidiana perde terreno – e é o caso –, o pensamento analítico também decai. A leitura é um prazer, e para mim isto é muito importante; todavia, ela estimula também os sentidos e permite detectar claramente o cheiro da imbecilidade. […] Em mim, não é o democrata que Trump arrepia, mas o escritor e o leitor. Ouvir os seus discursos é como ouvir um piano a cair numas escadas. Só se ouvem notas falsas, nada de música. Vou realmente lamentar Obama... Nas suas palavras havia sempre poesia, música...”

Nota matinal sobre Michael Moore in Trumpland

 

Embora Michael Moore seja realmente bom a escolher títulos cativantes para os seus documentários, não parece possível evitar um certo desapontamento depois de ir para além dos títulos. Os seus filmes carecem sempre de alguma substância e até de sentido crítico. A voz de Michael Moore é omnipresente mas falar imenso não é o mesmo que ter pensamento crítico. Abundam os lugares-comuns e a ligeireza ou superficialidade. Ao contrário de outros documentaristas, Moore não se inibe de dar opiniões e não deixa as imagens e os participantes dos seus filmes falarem por si. E assim, como foi publicitado pelo próprio, Michael Moore in Trumpland não é um documentário, nem uma peça sobre Donald Trump, sobre os apoiantes de Trump, sobre Hillary Clinton ou sobre as eleições americanas. Não. Este filme é centrado na figura de Moore. Moore discursa para uma plateia de apoiantes de Trump, elogia as qualidades e critica os defeitos dos candidatos às eleições e faz o que faz melhor, provoca. E provocar é tão bom quando se quer chegar a algum lado. Mas Moore nem sempre quer chegar a algum lado. Ouve-se a sua voz, o seu sarcasmo, até as suas reflexões sobre a Estónia, durante hora e meia. É com um coração cheio de tristeza que se conclui que Michael Moore perdeu a oportunidade para descrever um fascinante fenómeno sociológico que poderia ser chamado de trumpismo.

Eclipse

Augusto Monterroso
(Obras Completas y Otros Cuentos, 1959)
Tradução de Patrícia Lino

Quando frei Bartolomé Arrazola se sentiu perdido aceitou que já nada poderia salvá-lo. A selva poderosa de Guatemala tinha-o apressado, implacável e definitiva. Perante a sua ignorância topográfica, sentou-se com tranquilidade à espera da morte. Quis morrer ali, sem nenhuma esperança, isolado, com o pensamento posto numa Espanha distante, particularmente no convento dos Abrojos, onde Carlos Quinto consentira uma vez descer da sua eminência para dizer-lhe que confiava no zelo religioso do seu labor redentor.

Ao acordar deu por si rodeado por um grupo de indígenas de rosto impassível que se dispunham a sacrificá-lo em frente de um altar, um altar que a Bartolomé pareceu o leito em que descansaria, por fim, dos seus temores, do seu destino, de si mesmo.

Três anos no país tinham-lhe conferido um domínio mediano das línguas nativas. Tentou algo. Disse algumas palavras que foram compreendidas.

Floresceu então nele uma ideia que tinha em conta o seu talento e a sua cultura universal e o seu árduo conhecimento de Aristóteles. Recordou que para esse dia se esperava um eclipse total do sol. E decidiu, no seu mais íntimo, valer-se daquele conhecimento para enganar os seus opressores e salvar a vida.

— Se me matais — disse-lhes — posso fazer com que o sol escureça na sua altura.

Os indígenas olharam para ele fixamente e a Bartolomé surpreendeu a incredulidade nos seus olhos. Viu que formaram um pequeno conselho, e esperou confiante, não sem um certo desdém.

Duas horas depois o coração de frei Bartolomé Arrazola vertia o seu sangue veemente sobre a pedra dos sacrifícios (brilhante debaixo da opaca luz de um sol eclipsado), enquanto um dos indígenas recitava sem nenhuma inflexão de voz, sem pressa, uma por uma, as infinitas datas em que aconteceriam eclipses solares e lunares, que os astrónomos da comunidade maia tinham previsto e anotado nos seus códices sem a valiosa ajuda de Aristóteles.