Charles Baudelaire, "Embriagai-vos" (Enivrez-vous)

Tradução: João Coles

 

"À votre guise", fotografia: joão Coles

"À votre guise", fotografia: joão Coles

Embriagai-vos

Deveis estar sempre embriagados. Aqui reside tudo. É a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que vos esmaga os ombros e vos verga para a terra, é imperativo embriagar-se sem descanso.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. Mas embriagai-vos.

E se por acaso, sobre os degraus de um palácio, sobre a relva verde de uma vala, na morna solidão  do vosso quarto, acordardes de embriaguez diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que roda, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão: “É hora de vos embriagardes! Para que não sejais escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. 

  

In Le Spleen de Paris


Enivrez-vous

Il faut être toujours ivre. Tout est là. C’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.

 

Charles Bukowski, "Lei"

Bukowski nos anos 60

Bukowski nos anos 60

Tradução: João Coles

lei

“olha,” disse-me ele,
“todas aquelas crianças a morrer nas árvores”
e eu disse, “o quê?”
ele disse, “olha.”
e eu fui à janela e sem sombra de dúvidas lá estavam elas penduradas nas árvores,
mortas e moribundas.
e eu disse, “o que é que isto significa?”
ele disse, “não sei, foi autorizado.”

no dia seguinte quando me levantei havia cães nas árvores,
pendurados, mortos e moribundos.
virei-me para o meu amigo e disse, “o que é que isto significa?”
e ele disse,
“não te preocupes, as coisas são mesmo assim.
votaram. tomaram uma decisão”

no dia seguinte havia gatos.
não sei como é que apanharam aqueles gatos todos tão depressa e os penduraram nas árvores, mas conseguiram.
no dia seguinte havia cavalos,
e isso não foi muito bom porque muitos ramos podres se partiram.

e depois do pequeno-almoço no dia seguinte,
o meu amigo apontou-me a pistola à frente do café
e disse,
“bora,”
e saímos.
e havia uma carrada de homens e mulheres nas árvores,
a maioria deles mortos ou moribundos.
ele preparou a corda e eu disse,
“o que é que isto significa?”
e ele disse, “foi autorizado, é constitucional, foi aprovado pela maioria,”
e ele atou-me as mãos atrás das costas e a seguir abriu o nó.
“não sei quem me irá enforcar,” disse ele,
“quando te despachar,
quando isto estiver a chegar ao fim,
presumo que restará uma só pessoa e esta terá de se enforcar”
“imagina que o não faz”, pergunto.
“tem de o fazer,” disse ele,
“foi autorizado.”
“ah,” disse eu, “muito bem,
então vamos a isso.”

 

publicado pela primeira vez na "New York Quarterly", nº 10, em 1972


law

“look,” he told me,
“all those little children dying in the trees.”
and I said, “what?”
he said, “look.”
and I went to the window and sure enough, there they were hanging in the trees,
dead and dying.
and I said, “what does it mean?”
he said, “I don’t know it’s authorized.”

the next day I got up and they had dogs in the trees,
hanging, dead, and dying.
I turned to my friend and I said, “What does it mean?”
and he said,
“don’t worry about it, it’s the way of things. They took a vote. It was decided.”

the next day it was cats.
I don’t see how they caught all those cats so fast
and hung them in the trees, but they did.
the next day it was horses,
and that wasn’t so good because many bad branches broke.

and after bacon and eggs the next day,
my friend pulled his pistol on me across the coffee
and said,
“let’s go,”
and we went outside.
and here were all these men and women in the trees,
most of them dead or dying.
and he got the rope ready and I said,
“what does it mean?”
and he said, “It’s authorized, constitutional, it passed the majority,”
and he tied my hands behind my back then opened the noose.
“I don’t know who’s going to hang me,” he said,
“when I get done with you.
I suppose when it finally works down
there will be just one left and he’ll have to hang himself.”
“suppose he doesn’t,” I ask.
“he has to,” he said,
“it’s authorized.”
“oh,” I said, “well,
let’s get on with it.”

Crimen Amoris

Henri Fantin Latour - Un Coin de Table, 1872 (Verlaine e Rimbaud, pormenor)

Henri Fantin Latour - Un Coin de Table, 1872 (Verlaine e Rimbaud, pormenor)

Paul Verlaine
Tradução de João Moita

A Villiers de l’Isle-Adam.


Num palácio, seda e ouro, em Ecbátana,
Belos demónios, adolescentes satãs,
Ao som de uma música maometana
Aos Sete Pecados os sentidos entregam.

É a festa dos Sete Pecados: que bela é!
Os Desejos fulgiam em fogos brutais;
Os Apetites, solícitos pajens assediados,
Passeavam róseos vinhos em cristais.

Danças em ritmos epitalâmios
Morriam suavemente em longos gemidos
E belos coros de homens e de mulheres
Sucediam-se como vagas palpitando,

E o encanto que de tudo isto emanava
Era tão poderoso e deslumbrante
Que em torno o campo se enchia de rosas
E a noite se parecia com um diamante.

Ora o mais belo dentre estes anjos perversos
Tinha dezasseis anos sob a coroa de flores.
De braços cruzados sobre franjas e colarinhos,
Cisma, de chamas e lágrimas transbordante.

Em vão a festa à sua volta recrudescia,
Em vão os satãs, seus irmãos e suas irmãs,
Para o arrancarem aos cuidados que o afligem,
O animavam com carícias aliciantes.

A todas as blandícias ia resistindo,
E à sua rica fronte de jóias abrasada,
O desgosto juntava uma borboleta negra:
Oh imortal e terrível desespero!

Dizia-lhes: «Oh, por favor, deixem-me em paz!»
Depois, a todos beijando ternamente,
Deles se esquivava com um gesto ágil,
Deixando-lhes pedaços de roupa nas mãos.

Não o vedes na torre mais celestial
Do alto palácio de tocha em punho?
Eis que a brande como à manopla o herói:
De baixo dir-se-ia que é a alba que desponta.

Que é que ele diz na sua voz profunda e terna
Que se une ao claro crepitar do fogo
E que de ouvi-lo fica a lua extasiada?
«Oh! Será por mim que Deus será criado!

«Demasiado sofremos, anjos e homens,
«Nesta disputa entre o Pior e o Melhor.
«Subjuguemos, tão miseráveis que somos,
«Os nossos impulsos ao mais simples dos votos.

«Ó vós, ó nós, ó os tristes pecadores,
«Ó os ledos Santos! Porquê esta cisma obstinada?
«Porque não fizemos, como hábeis artistas,
«Dos nossos trabalhos uma única virtude?

«Basta destas lutas demasiado iguais!
«Necessário será que enfim se juntem os
«Sete Pecados às Três Virtudes Teologais!
«Basta destes combates vis e brutais!

«E em resposta a Jesus que julgou proceder bem
«Mantendo o equilíbrio deste duelo,
«Por mim o inferno, em cujo covil estamos,
«É sacrificado ao Amor universal!»

Cai a tocha da sua mão aberta,
E elevando-se, o incêndio brame,
Enorme querela de águias vermelhas
Na esteira negra do fumo e do vento.

Funde o ouro e flui, e o mármore estoira;
É um braseiro todo esplendor e todo ardor;
A seda aos estremeções, como o algodão,
Voa em flocos toda ardor e toda esplendor.

E compreendendo cantavam nas chamas
Os moribundos satãs, como que resignados!
E belos coros de homens e de mulheres
Subiam entre o tufão dos ígneos rumores.

E ele, cruzados os braços altivos,
Os olhos no céu lambido pelas chamas,
Diz baixinho uma espécie de oração
Que vai morrer na alegria do canto.

Diz baixinho uma espécie de oração,
Os olhos no céu lambido pelas chamas…
Quando retumba um horrível trovão,
E lá se vai a alegria do canto.

Não fora autorizado o sacrifício:
Decerto alguém mais forte e mais justo
Adivinhara sem esforço a maldade
E o artifício de um orgulho que se ilude.

Do palácio das cem torres não restam vestígios,
Nada sobrou deste espantoso desastre,
Para que graças ao mais horrendo prodígio
Isto não passasse de um sonho vão e desfeito…

E vem a noite, a noite azul de estrelas mil;
Uma planície evangélica estende-se
Severa e doce, e, vagos como véus,
Os ramos das árvores adejam como asas.

Frios regatos correm sobre um leito de pedra;
Os amáveis mochos nadam vagamente no ar
Todo perfumado de prece e de mistério;
Por vezes da água eleva-se um clarão.

Sobe ao longe a forma débil as colinas
Como um amor ainda indefinido,
E o nevoeiro que se ergue das ravinas
Parece apontado a algum fito comum.

E tudo isto como um coração e uma alma,
E como um verbo, e de um amor virginal,
Adora, abre-se num êxtase e reclama
O Deus clemente que nos guardará do mal.

Paul Verlaine, Jadis et Naguère, 1884.


CRIMEN AMORIS

À Villiers de l’Isle-Adam.

 

Dans un palais, soie et or, dans Ecbatane,
De beaux démons, des satans adolescents,
Au son d’une musique mahométane
Font litière aux Sept Péchés de leurs cinq sens.

C’est la fête aux Sept Péchés : ô qu’elle est belle!
Tous les Désirs rayonnaient en feux brutaux;
Les Appétits, pages prompts que l’on harcèle,
Promenaient des vins roses dans des cristaux.

Des danses sur des rythmes d’épithalames
Bien doucement se pâmaient en longs sanglots
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Se déroulaient, palpitaient comme des flots,

Et la bonté qui s’en allait de ces choses
Était puissante et charmante tellement
Que la campagne autour se fleurit de roses
Et que la nuit paraissait en diamant.

Or le plus beau d’entre tous ces mauvais anges
Avait seize ans sous sa couronne de fleurs.
Les bras croisés sur les colliers et les franges,
Il rêve, l’œil plein de flammes et de pleurs.

En vain la fête autour se faisait plus folle,
En vain les satans, ses frères et ses sœurs,
Pour l’arracher au souci qui le désole,
L’encourageaient d’appels de bras caresseurs.

Il résistait à toutes câlineries,
Et le chagrin mettait un papillon noir
À son cher front tout brûlant d’orfèvreries :
Ô l’immortel et terrible désespoir!

Il leur disait : « Ô vous, laissez-moi tranquille!
Puis, les ayant baisés tous bien tendrement,
Il s’évada d’avec eux d’un geste agile,
Leur laissant aux mains des pans de vêtement.

Le voyez-vous sur la tour la plus céleste
Du haut palais avec une torche au poing?
Il la brandit comme un héros fait d’un ceste:
D’en bas on croit que c’est une aube qui point.

Qu’est-ce qu’il dit de sa voix profonde et tendre
Qui se marie au claquement clair du feu
Et que la lune est extatique d’entendre?
« Oh ! je serai celui-là qui créera Dieu!

« Nous avons tous trop souffert, anges et hommes,
« De ce conflit entre le Pire et le Mieux.
« Humilions, misérables que nous sommes,
« Tous nos élans dans le plus simple des vœux,

« Ô vous tous, ô nous tous, ô les pécheurs tristes,
« Ô les gais Saints ! Pourquoi ce schisme têtu?
« Que n’avons-nous fait, en habiles artistes,
« De nos travaux la seule et même vertu!

« Assez et trop de ces luttes trop égales!
« Il va falloir qu’enfin se rejoignent les
« Sept Péchés aux Trois Vertus Théologales!
« Assez et trop de ces combats durs et laids!

« Et pour réponse à Jésus qui crut bien faire
« En maintenant l’équilibre de ce duel,
« Par moi l’enfer dont c’est ici le repaire
« Se sacrifie à l’Amour universel!»

La torche tombe de sa main éployée,
Et l’incendie alors hurla s’élevant,
Querelle énorme d’aigles rouges noyée
Au remous noir de la fumée et du vent.

L’or fond et coule à flots et le marbre éclate;
C’est un brasier tout splendeur et tout ardeur;
La soie en courts frissons comme de l’ouate
Vole à flocons tout ardeur et tout splendeur.

Et les satans mourants chantaient dans les flammes
Ayant compris, comme s’ils étaient résignés!
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Montaient parmi l’ouragan des bruits ignés.

Et lui, les bras croisés d’une sorte fière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant,
Il fit tout bas une espèce de prière
Qui va mourir dans l’allégresse du chant.

Il dit tout bas une espèce de prière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant…
Quand retentit un affreux coup de tonnerre,
Et c’est la fin de l’allégresse et du chant.

On n’avait pas agréé le sacrifice:
Quelqu’un de fort et de juste assurément
Sans peine avait su démêler la malice
Et l’artifice en un orgueil qui se ment.

Et du palais aux cent tours aucun vestige,
Rien ne resta dans ce désastre inouï,
Afin que par le plus effrayant prodige
Ceci ne fût qu’un vain rêve évanoui…

Et c’est la nuit, la nuit bleue aux mille étoiles;
Une campagne évangélique s’étend
Sévère et douce, et, vagues comme des voiles,
Les branches d’arbres ont l’air d’ailes s’agitant.

De froids ruisseaux courent sur un lit de pierre;
Les doux hiboux nagent vaguement dans l’air
Tout embaumé de mystère et de prière ;
Parfois un flot qui saute lance un éclair.

La forme molle au loin monte des collines
Comme un amour encore mal défini,
Et le brouillard qui s’essore des ravines
Semble un effort vers quelque but réuni.

Et tout cela comme un cœur et comme une âme,
Et comme un verbe, et d’un amour virginal,
Adore, s’ouvre en une extase et réclame
Le Dieu clément qui nous gardera du mal.

Poema de Rocío Wittib

Inédito (s/d)

trad. António Quadros Ferro

di tu nombre y recuerda quién has sido
di que todo es igual luego que nada es lo mismo
di aquí y repítelo hasta que te abandone la deriva
di tu tonta verdad y defiéndela hasta que encuentres otra
di debajo de mi piel puede que no quede nadie
di todo aquello que tuve y llora como hacen todos
di que no te arrepientes aunque lo hayas perdido todo
di cómo he podido llegar a esto por última vez y huye
di que basta que ya no que nunca más pero vuelve a tropezar
di algo definitivo y no dejes que las palabras te maten
di había una vez y empieza de nuevo las veces que haga falta
di hasta luego y mira lo que dejas atrás pero no regreses

 

diz o teu nome e lembra-te de quem  foste
diz que tudo é igual portanto que nada é o mesmo
diz aqui e repete-o até que o desnorte te deixe
diz a tua verdade pateta e defende-a até que encontres outra
diz debaixo da minha pele talvez não haja ninguém
diz tudo aquilo que tive  e chora como toda a gente
diz que não te arrependes embora tenhas perdido tudo
diz como pude chegar a isto pela última vez e foge
diz que basta que mais não que nunca mais mas volta a tropeçar
diz algo definitivo e não deixes que as palavras te matem
diz era uma vez e recomeça as vezes que forem necessárias
diz até logo e olha para o que deixas para trás mas não regresses

 

Rocío Wittib, Buenos Aires (1989) tem poesia dispersa por diversas revistas online e em papel, como a Círculo de Poesía (México) e Cuadernos Hispanoamericanos (Espanha).  É autora  do livro  de poemas «versos para perseguir sem pressa o silêncio» (2016), publicado em Portugal pela editora Temas Originais. Os seus poemas foram traduzidos para italiano, romeno e português. Apaixonada por fotografía, é autora do blogue “Life vest under your seat”.  Actualmente vive em Pamplona.

António Quadros Ferro, Lisboa (1983) é autor dos livros de poemas «Um pouco de morte» (2009), «Alto.» (2012) e «Ou a empatia» (2015). Integra a antologia de poesia portuguesa e brasileira «Voo Rasante», publicada pela editora Mariposa Azual em 2015, e mantém, desde 2012, com Pedro Botelho e Francisco Serras, o projecto editorial Páreas Párias. Tem publicações dispersas por revistas e projectos de investigação.

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Cinco poemas de Miguel Hernández

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Miguel Hernández era um herói. A primeira vez que ouvi falar dele foi num conto do autor grego Christos Ikonomou, cujo título, “O Sangue da Cebola,” foi inspirado numa canção de embalar que Miguel Hernández escreveu para um dos filhos, Balada da Cebola. Nascido na mais absoluta pobreza em 1910 em Orihuela, filho de um pastor, manteve a intervalos o mesmo trabalho. Educado num colégio de jesuítas e dele retirado precocemente aos catorze anos de idade, o pai batia-lhe por não guardar os rebanhos como era devido. Da educação entre os jesuítas ficou-lhe o primeiro encontro com Góngora e uma obsessão por se tornar poeta. Tirado da escola, continuou a estudar literatura sozinho, quando regressava dos campos. Os seus sonetos são tidos como um dos expoentes máximos do soneto espanhol em qualquer época. Casado uma vez, mas com o grande amor da sua vida, Josefina Marhuenda, Hernández teve dois filhos, o primeiro dos quais morreu de malnutrição, vítima da guerra civil e da violência perpetrada pelo regime de Franco. Resistente aberto aos nacionalistas, quando Madrid cai em 1939, Hernandéz tenta fugir para Portugal, para pedir asilo à embaixada do Chile mas é preso na fronteira e entregue às autoridades espanholas. Dele, que se alistara no exército republicano, que escrevera e lera canções de resistência pelas ruas, na sequência da morte de Llorca, Franco dizia que não faria outro mártir da causa republicana. Miguel Hernández morreu a 28 de Março de 1942, com apenas 31 anos de idade, numa prisão em Alicante, de complicações causadas pela febre tifoide.

Hernandéz escreveu sobre tudo o que um poeta deve escrever: amizade, amor, paixão, resistência, desobediência, a fealdade da maldade dos homens, a beleza de árvores e frutos, a ligação entre os homens e a natureza, a injustiça da morte e da pobreza, e revoltou-se contra tudo aquilo que um ser humano decente tem obrigação de se revoltar. As imagens que encontramos nos seus poemas devolvem o mundo à sua intensidade, a um lado misterioso, sensual, onde a inquietude se converte num método para estar vivo. O poema de onde Ikonomou tirou o seu título para falar sobre uma fábrica na Grécia, em pleno início da crise, Balada da Cebola, foi escrito para o segundo filho de Hernández, Manuel Miguel, numa altura em que a mulher lhe disse que em casa não havia mais nada para comer além de pão e cebola. No auge do desespero, Hernández nunca sucumbiu ao desalento e os seus poemas são sempre um tributo ao que em nós resiste à destruição e ao amesquinhamento.

Os cinco poemas que aqui traduzo foram cotejados com as traduções de Don Share na sua edição dos poemas escolhidos de Hernández para a New York Review of Books e de Ted Genoways, Timothy Baland e Robert Bly na edição dos Selected Poems editada pela The University of Chicago Press. Ambos os livros são belíssimas introduções à obra de Hernández. Mais informação sobre a vida e a obra do poeta pode ser encontrada aqui

Tatiana Faia

Oxford, Maio e Junho de 2018

O teu coração é uma laranja gelada

O teu coração é uma laranja gelada
com um interior sem luz de doce zimbro   
e uma porosa aparência de ouro: um exterior
que promete riscos ao olhar.

O meu coração é uma febril romã
de vermelho cerrado e aberta cera,
que te podia oferecer as suas ternas contas
com uma obsessão apaixonada.

Uma investida no desalento, sim,
ir até ao teu coração e achar o gelo
de uma irredutível e pavorosa neve!

Nos arredores do meu choro
ergue-se o voo de um lenço sedento
que dele espera embeber-se.


Atiraste-me um limão, tão amargo

Atiraste-me um limão, tão amargo, 
com uma mão quente, tão pura,
que não desprezou a sua arquitectura
e apesar disto provei a sua amargura.

Com este golpe de amarelo, o meu sangue
passou de uma doce letargia a uma angustiada
febre, ao sentir a mordida
da extremidade de um seio rígido e longo.

Mas ao ver-te e ao ver o sorriso
que te causou este acontecimento cor de limão, 
tão afastado da minha malícia voraz,

o sangue adormeceu-me na camisa
e o permeável peito cor de ouro converteu-se
numa aguçada e deslumbrante pena. 



Carta

O pombal das cartas
começa o seu impossível voo
desde as trémulas mesas
onde se debruça a recordação,
a gravidade da ausência,
o coração, o silêncio.

Ouço o batimento de cartas
navegando em direcção ao centro.

Onde vou encontro-me
com homens e mulheres
gravemente feridos pela ausência,
desgastados pelo tempo. 

Cartas, relações, cartas:
postais, sonhos
fragmentos de ternura,
projectados no céu,
lançados de sangue a sangue
e de desejo a desejo.

Ainda que debaixo da terra
esteja o meu corpo que ama
escreve-me na terra
que eu hei-de escrever-te.

A um canto emudecem
cartas velhas, velhos envelopes,
com a cor da idade
impressa sobre a escrita.
Ali perecem as cartas
Cheias de estremecimentos.
Ali agoniza a tinta
e desfalecem as folhas soltas,
e o papel enche-se de buracos
como um breve cemitério,
das paixões de antes
dos amores de depois.

Ainda que debaixo da terra
esteja o meu corpo que ama
escreve-me na terra
que eu hei-de escrever-te.

Quando te escrevo
emocionam-se os tinteiros:
os negros tinteiros frios
fazem-se vermelhos e ternos,
e um claro calor humano
ergue-se do fundo negro. 
Quando te escrevo,
escrevem-te os meus ossos:
escrevo-te com a inapagável
tinta do meu sentimento.

Além vai a minha carta incandescente,
pomba forjada no fogo,
com as duas asas dobradas
e a direcção no meio. 
Ave que só persegue
por ninho o ar e o céu,
carne, mãos, olhos teus,
e o espaço do teu alento.

E estarás nua
dentro dos teus sentimentos,
sem roupa, para a sentir
completamente contra o teu peito.

Ainda que debaixo da terra
esteja o meu corpo que ama
escreve-me na terra
que eu hei-de escrever-te.

Ontem uma carta ficou
abandonada e sem dono,
voando acima dos olhos
de alguém que perdeu o seu corpo.
Cartas que permanecem vivas
falando aos mortos
papel anelante, humano,
sem olhos que possam sê-lo.

Enquanto os caninos crescem,
sinto cada vez mais perto
a leve voz da tua carta
que é como um clamor imenso.
Chegará enquanto durmo,
se não for possível desperto.
E as minhas feridas hão-de ser
os tinteiros derramados,
as bocas estremecidas
de recordar os teus beijos
e com a sua voz inaudível
hão-de repetir: amo-te. 


O último recanto

O último e o primeiro:
recanto para o sol maior,
sepultura desta vida
onde não cabem os teus olhos.

Era ali que me queria estender
para me desapaixonar. 

Quero-o pela oliveira,
persigo-o pela rua,
some-se pelos recantos
onde se somem as árvores. 

Afunda-se e torna-se mais funda
a intensidade do meu sangue.

As oliveiras moribundas
florescem por todo o ar
e os rapazes permanecem
próximos e agonizantes.

Carne do meu movimento,
ossos de ritmos mortais:
morro por respirar
sobre os vossos gestos. 

Coração que, entre duas pedras
ansiosas por esmagar-te,
te afogas de tanto querer
como um mar entre dois mares.
De tanto querer afogo-me,
e já não é possível afogar-te.

Um beijo que vem girando
desde o princípio do mundo
a minha boca pelos teus lábios.
Beijo que se impele para o futuro,
Boca como um duplo astro
que entre os astros pulsa
por tantos beijos interrompidos
por tantas bocas fechadas
sem um beijo solitário.

Que fiz eu para que pusessem
à minha vida tanto cárcere?

O teu cabelo onde o negro
sofreu as idades
do negro mais seguro
e mais emocionante:
o teu cabelo negro de séculos
que percorro até regressar
ao primeiro negro
dos teus olhos e dos teus ancestrais,
ao recanto de cabelo denso
onde te acendeste como um relâmpago.

Como um recanto solitário
ali o homem brota e arde.

O recanto do teu ventre,
o beco da tua carne:
o beco sem saída
onde uma tarde agonizei.

A pólvora e o amor
marcham sobre as cidades
deslumbrando, remexendo
a povoação do sangue.

A laranjeira tem o sabor da vida
e a oliveira o do tempo.
E apanhada no seu clamor
debate-se a minha paixão.

O primeiro e o último:
recanto onde algum cadáver
sente o arrulhar do mundo
dos amados canais.

Sesta que encheu de treva
o sol nas humidades.

Era ali que me queria estender
para me desapaixonar.

Depois do amor, a terra.
Depois da terra, ninguém.
 

Depois do amor

Não pudemos ser. A terra
não pode tanto. Não somos
tudo a que se propôs o sol
no seu ensejo distante. 
Um pé aproxima-se da claridade.
O outro insiste na escuridão. 
Porque o amor não é perpétuo
em ninguém, nem sequer em mim.
O ódio aguarda a sua vez
no mais fundo do carvão.
Vermelho é o ódio e bem-nutrido. 

O amor, pálido e solitário. 

Cansado de odiar, amo-te.
Cansado de amar, odeio-te.

É tempo de chuva, é tempo de chuva.
E num dia mais triste que todos,
triste por toda a terra,
triste de mim até ao lobo, 
dormimos e acordamos
com um tigre entre os olhos. 

Pedras, homens como pedras,
endurecidos e cheios de rancor
colidem no ar, onde
as pedras colidem subitamente.
Solidões que hoje retrocedem
e ontem juntavam os rostos.
Solidões que no beijo
guardam o rugido surdo.
Solidões para sempre.
Solidões desamparadas.

Corpos como um mar voraz,
contrariado, furioso. 
Solitariamente atados
pelo amor, pelo ódio. 
Os homens surgem pelas veias,
cruzam as cidades cheios de ira.

No coração tudo
se enraíza solitariamente.
Passos solitários ficam para trás
como se submersos, no fundo da água.

Só uma voz, ao longe,
sempre ao longe a ouço,
acompanha e força-me a ir em frente
como um pescoço acima dos ombros.

Só uma voz me arrebata
deste intricado andaime
de pêlo retorcido
e eriçado que visto.

Ventos secos não podem
secar sumarentos mares.
E o coração permanece
fresco no cárcere da sua colheita
porque essa voz é a arma
mais terna das correntes:

“Miguel, eu lembro-me de ti
depois do sol e do pó,
antes da própria lua,
túmulo de um sonho de amor.”

Amor: afasta o meu ser
das suas primeiras ruínas,
e construindo-me, dita
uma verdade como um sopro.

Depois do amor, a terra.
Depois da terra, tudo.