Vestido Azul

“There´s things I wanna talk about, but I´ll just let you live”

Lana del Rey


Não há nada mais triste que acordar com o sabor
Da tua silhueta recortada pelo Sol através daquele vestido azul,
Nunca saberei se também tu, voltaste a sonhar comigo,
As tuas mãos nas minhas, antes de qualquer poesia,
Acordar depois de termos brincado no chão da sala da casa
Onde nunca entraste e já pouco me encontro nas fotografias,
Eu debaixo de ti a assegurar-te que só amigos
E da tua boca as palavras da minha vontade,
E se te fizesse um broche, cai uma carta pesada no chão
E acordo, um catálogo qualquer, maldito carteiro,
Aquele bater no chão como quando li a tua última carta,
Só amigos, e acordo, cai-me algo que nem sabia que tinha,
Nem vi sequer o que era, as mãos nunca me pareceram
Tão vazias, sabendo que nunca mais os teus dedos longos
Entre os meus, quanto dedo no cu, nenhum teu,
Acordar sempre, até ao adormecimento último,
Com a poesia no lugar de um amor no qual só os sonhos acreditam.

Turku

10.09.2019

No cais do Potomac, WV

Andar e molhar os pés na Virgínia Ocidental
e uma hora antes
andar e molhar os pés em Washington
a água estende-se
atravessa a cidade falsa de mármore branco
atravessa o cais mais próximo de Arlington
atravessa o limiar das ruas de Georgetown
atravessa o bar de whiskey com cem espelhos
atravessa a livraria repleta de mapas do século XIX
atravessa-me a mim
atravessa o meu corpo
colado à montra da padaria dos pescadores
que observa
os rolos de canela feitos na hora
queijo filadélfia branco e açúcar de cana
Os americanos chamam a isso topping
e só o Potomac fica indiferente
ao whiskey fumado de centeio
ao cheiro dos fritos das roulottes de corn dog
e ao topping do meu último pequeno almoço

No Harpers Ferry o cais do rio Shenandoah enternece
sobrevive sem os cadeados de amor
sem a proeza das trotinetes alugadas por uns minutos
através de uma app qualquer
o cais atrai milhares de insectos nocturnos
os insectos nocturnos conhecem bem o Shenandoah
os mesmos insectos dedicam a vida toda ao Potomac
às pedras lisas
aos poços de água parada
aos buracos entre os parafusos gastos da Key Bridge

A vida curta desse insectos
é um acto de amor rastejante
um topping entomológico
em cima do rio Potomac
até a baía de Chesapeake

"Lamarim" - de Vítor Teves

“Os poemas de Vitor Teves falam-nos do amor, amizades, pinturas, esculturas, poetas portugueses contemporâneos. Se quisermos ler o livro como arte poética, o poeta diz a dada altura que eles são feitos com esferovite e fita-cola (v. Poema Colado Com Esferovite E Cola). Visitas em busca de um amor burguês são feitas a museus e ha escadas onde poetas franceses da década de quarenta tem de se esforçar para não tropeçar em certa data. Lamarim, no entanto, faz por nos o que William Carlos Williams diz que os poemas nos devem fazer, dar-nos as noticias.”

- Tatiana Faia (Prefácio de “Lamarim” (2019)

EXERCITO ZOMBIE

 

Idealistas sonhadores homens

mulheres

sem cabeça sem alvo ou

ponto a atingir

Poetas escrevendo apontamentos

deixando ora o braço

ora a mão aqui e ali na longa

planície da vida

Do céu tudo o que fazem

é um mero desenho

pontuado por destroços

- de “Lamarim” (2019)

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nights at the iron hotel

Da Vinci, Anunciação, pormenor.

Da Vinci, Anunciação, pormenor.

 

a partir de michael hofmann

olha gabriel
tão feroz a manhã
que de noite virás de novo a este quarto
com todos os frutos ainda nos bolsos
e para conto que me contes
uns quantos convencionais acordes
nem teus nem meus exactamente
que dedilharás com os dedos se puderes
mas com os dentes se tiver de ser
terra da mesma cinza que tu o meu corpo
afinal tão real e mortal como o teu  

mas aí onde aterraste sem mais terror
do que esperar-te agora uma chuva de sapos
vinda como uma alguma peste bíblica
directamente do panamá
e todos caindo rápido aos teus pés
que é toda tua a humidade desse ar
a amplitude dessas avenidas uma coisa
tirada à bolonha de de chirico
tanto tuas como dele
mais todas as histórias que não me contarás
algumas praças e também a nostalgia do infinito
que é esta coisa secreta árvore
cujo fruto abre para as primaveras
anunciada por flores derrubando-se como penas
todos os sapos do panamá te esperam gabriel
e são as luzes vermelhas dos quartos
de onde vais e vens que te fazem pensar em de chirico
são as luzes que não te anunciam
que não são nem os archotes
que anunciam a chegada do rei agamémnon
nem os luzeiros de alguma tróia a arder na distância
mas a pequena destruição diária confinada às unhas
de por exemplo teres de caminhar todos os dias
para o trabalho com um pé torcido
que assim nunca melhorará  

gabriel
olha que é quase meio dia num dia qualquer de junho
nas paisagens pós-industriais do século XXI
onde um exército de homens se arregimentou
com tanta paixão diante dos computadores
com este imperativo categórico
de trazer aos accionistas tanto lucro quanto possível
(porque é preciso ter um objectivo na vida
e olha como esta quieta ternura da rotina
tem dentes e afinal ferra tanto
quanto a minha mais feroz crueldade)
e onde como álvaro de campos
eu cantaria a sensualidade cosmopolita
de todas as facturas passadas por todas as casas comerciais
de todas as corporações do mundo
onde eu observaria em transe o selo a bater no papel
e o dedo passado pelo bigode do miguel da contabilidade
sentado mancamente três filas à frente da minha
este corpo que vai ao ginásio mas não se recorda
de como seria dançar um tango argentino
um tango argentino aqui e já
e tudo isto gabriel não seria a minha morte de tristeza
não fora saber de cor que fora da abstracção
existe o golpe da matéria cuja jurisdição é também
a mortalidade de um corpo
do teu do meu agora separados
por mais que meio continente
e a fala da minha desmesura
para a planície de um desmedido silêncio
como o crescimento do lucro das revistas científicas
está para o dos livros de filosofia
e eu olho-os de cima gabriel
a partir da janela do primeiro andar
e reacende-se no meu sangue a verdade simples
e bucólica e inquieta dos damascos
que um caeiro qualquer podia ter cantado
e acende-se no opressivo horizonte chuva a cântaros
nesta cidade onde vim para fazer o meu dinheiro
embora dia a dia convenhamos que isto esteja
algumas libras abaixo do que se pareça com ganhar a vida 

e eu vejo-os enquanto eles entram e saem
do autocarro que os traz ao parque
como entraram e saíram antes
dos autocarros que os trouxeram à escola
e eles trabalham na sua rotina com amarga indiferença
eles estão nas páginas de marx
e não querendo ver tudo a negro
talvez também nos mais apaixonados
poemas de d h lawrence 

tu gabriel
lembra-te do teu nome
que te foi dado por causa do anjo da anunciação
no momento em que a vida te tocou mais fundo
é dele ainda o florescimento de todos os meus frutos
o lugar para onde todos os versos pendem
até aquele escrito por o’neill que reza que não podias
ter ficado nesta cidade
nesta abjecta cidade comigo
de todos os homens o que mais te teria amado
nesta cidade mais um dos dormitórios do mundo
onde os homens por falta de imaginação e de revolta
por falta de amor e bom humor vieram recozer a depressão 

gabriel
fora deste ritual de mesquinhez e nada
está tu teres-me dito que durante seis meses
tentaste amar bem um homem que não te quis
gabriel ao alto de pé na noite mesmo quando
não sabes para onde ir mesmo quando for só
um entrar demasiado rápido na escuridão
eu canto gabriel
como safo em mitilene
a tua marginalidade
a velocidade solitária do teu pulso
tu que no esplendor da tua ternura até sabes
como cair bem de joelhos à frente da destruição

 

Milton, 13 de Junho de 2018

O canto do fogo

Aos meus hóspedes de Piégon

 cavar um buraco
cobri-lo com galhos
andar devagar
assobiar
e cair enfim
nessa briga empedernida
são qualidades dignas
das próprias ficções
da lareira de Piégon
e da sua boca de fogo

uma câmara hipnótica
de um desejo irrefreável
uma reserva natural onde
as labaredas azuis e amarelas
acarinham
confortam
acariciam
acalentam
quem chegar mais perto

E o que é o amor
se não for a forma
mais alta de contenção
de lisonjear
de rubificar
de cobiçar
de irradiar
o calor necessário
do primeiro fogo do ano
quando quatro amigos
inventem  jogos de palavras
numa noite de chuva
que vai estrear
a noite de Halloween