Alienação

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                                                                   © sonja valentina

- Para que serve a caixa de fósforos?

Era a quarta vez que ele dormia lá em casa. E como em todas as outras ocasiões, tivera um pequeno gesto que a intrigara: colocava na mesinha de cabeceira, à distância da mão, o telemóvel e uma pequena caixa de fósforos. Desde o primeiro momento que sentira uma enorme empatia e cumplicidade com ele; mas a cada dia que passava, a cada conversa, a cada abraço, a cada sorriso, sentia que estava mais próxima de se apaixonar irremediavelmente; com ele, sentia-se acompanhada e compreendida, apoiada, mimada. Sempre receara a palavra mas, por vezes, dizia-a a si própria, baixinho, embrulhada num sorriso: sentia-se um pouco amada. Quando passavam a noite juntos, tudo corria com uma naturalidade que a inebriava; não acontecia nada de extraordinário mas sabia que a verdadeira felicidade era composta por banalidades; o que importava era que cada uma dessas banalidades fosse partilhada com a pessoa adequada; não interessava tanto o acontecimento mas a companhia. Tudo corria bem, portanto; e apenas aquela insignificante mas enigmática questão da caixa de fósforos na mesa-de-cabeceira a impedia de se apaixonar definitivamente; era um foco de incerteza mínimo e inexplicável, quase disparatado; mas que existia.

E por isso, perguntou. Tinham jantado, tinham visto um filme, tinham rido, tinham conversado, tinham feito amor. Depois, ficaram enroscados, partilhando o calor e a penumbra do quarto; tão próximos quanto possível, os corpos aconchegados e entrelaçados, escutando e cheirando a presença do outro; lá fora, chovia com intensidade, talvez se aproximasse uma tempestade. E ela perguntava-se: será demasiado cedo para lhe pedir que venha viver comigo? Perguntava-se e queria perguntar-lhe. Mas havia a presença da caixa de fósforos a perturbá-la, ali mesmo ao lado; um foco de apreensão que poderia contaminar a sua felicidade. Não resistiu a perguntar, portanto: para que serve a caixa de fósforos?

Quando ouviu a pergunta, o corpo dele não se manifestou, não denunciou contrariedade ou receio. Não viu o seu rosto mas suspeitou que talvez tivesse sorrido; e isso serenou-a.

- Não receias a escuridão? -, perguntou ele.

- A escuridão? Claro que sim.

- Eu também.

E depois explicou.

- Penso nisso muitas vezes, há muitas perguntas que me bailam no espírito. Por exemplo. Como conviver com a escuridão? Não tanto com a escuridão que nos envolve, a escuridão do mundo, mas principalmente com aquela que existe dentro de nós, que trazemos connosco, que alimentamos e perpetuamos pelo simples facto de estarmos vivos; como aprender a conviver com ela e torná-la uma presença positiva e construtiva? Penso nisso, por vezes. E preocupo-me um pouco com esse eterno duelo entre luz e escuridão, que é travado no interior de cada pessoa. Afinal, de que é feita a luz? Como se forma, como se multiplica e reproduz? De que se alimenta, como se alimenta? E, no fundo, como a reconhecemos? Nunca te interrogaste sobre isto? Nunca te perguntaste: que parte de mim é feita de luz? Nunca te perguntaste: e se um dia, sem querer, permitir que esta luz que existe em mim se extinga e desapareça? Como seria viver na escuridão? Para onde nos empurraria, de que forma nos condicionaria? Afinal, porque vivemos tão obcecados pela busca da luz?

Começou a sentir-se desconfortável com aquele inesperado discurso, quando na verdade esperara uma explicação disparatada, que a fizesse rir; escutava-o e sentia que, de repente, ele se transformara em algo diferente (no seu verdadeiro eu?), como se se esquecesse dela e falasse consigo próprio. E era desconfortável porque sentia como se estivesse a surpreender alguém que se imaginava sozinho, que fazia algo que nunca faria se se soubesse acompanhado, observado, avaliado, julgado. E escutava a sua dissertação sobre luz, sério e pomposo, quando, subitamente, se fez sentir o primeiro relâmpago da anunciada tempestade, invadindo inesperadamente o quarto com uma luz fantasmagórica durante um fragmento de segundo; e apeteceu-lhe rir, na verdade custou-lhe um pouco engolir o riso. Mas ele nem reparou na sua ameaça de riso ou no relâmpago, de tão embrenhado que estava na sua seriedade.

- Preocupo-me com a ténue fronteira que existe entre luz e escuridão; em tentar perceber onde começa uma e termina a outra. E a verdade é que não podemos fugir à escuridão, não podemos fugir àquilo que somos; e, do mesmo modo, não devemos procurar a luz no exterior mas dentro de nós próprios. Por isso, é importante conseguirmos ver para além de nós, afastarmo-nos, para nos vermos melhor, para nos conhecermos verdadeiramente. Já tentaste fazer isso? Ser espectadora de ti? É preciso perceber que a verdadeira luz reside em nós, é em nós que temos que a encontrar e, depois, protegê-la, alimentá-la, perpetuá-la. E é aqui que entra a simbologia da vela. Nunca te falei disto, pois não?

Vela? Devagarinho, o desconforto transformou-se em incómodo. Sentia-se distante e sentia-o distante, como se lhe fugisse; como se estivesse a assistir a uma espécie de alienação, a uma entrada noutro mundo. Um mundo – o seu verdadeiro mundo? – que a excluía, de que na verdade não queria fazer parte.

- É como se trouxéssemos uma vela acesa dentro de nós, que devemos cuidar como algo precioso e vulnerável; uma vela encaixada entre o fígado e o estômago e as costelas, frágil e periclitante como apenas uma vela pode ser. Consegues imaginar isto? Uma vela que nos ilumina interiormente; e se alguma vez permitirmos que se apague, extingue-se a nossa luz e seremos apenas escuridão interior. Esta vela ilumina-nos e guia-nos, se desaparecer é como se ficássemos cegos; apagamo-nos por dentro e deixamos de ver, sentir, ser. Percebes? É uma pequena luz mas, por mais minúscula que seja, faz toda a diferença na imensidão da escuridão. Basta um pequeno foco, que depois poderá sempre crescer, para aniquilar o poder da escuridão; um foco que é um início, um ponto de partida; e uma forma de resistência, também. Nunca poderemos, portanto, permitir que este foco se extinga. Este foco, esta luz, esta vela metafórica, é, no fundo, a nossa alma. Aquilo a que chamamos alma.

- E a caixa de fósforos?

- Um outro símbolo, claro. Andar sempre acompanhado por uma caixa de fósforos é um forma de nunca esquecer que a minha vela interior é frágil, exige o meu esforço e empenho permanente para se manter acesa. É uma segurança, também; lembra-me que detenho as ferramentas para me manter sempre iluminado. Enfim, tenho consciência de que tudo isto é uma coisa um bocado esotérica, um bocado simbólica. Aceito isso. Mas todos temos os nossos pequenos e inofensivos estratagemas para manter um certo equilíbrio, não é?

Ela ficou calada, sem saber o que responder. Sentia o corpo dele (o corpo iluminado dele) envolvendo o seu e pensava: isso não é uma coisa um bocado esotérica, é uma coisa profundamente estúpida; não é uma forma de manter um certo equilíbrio mas a manifestação de um enorme desequilíbrio. Pensava: é muito simbolista, este homem; ou será simplesmente doido? E de repente (é impressionante como estas coisas acontecem sempre de repente), percebeu que se tinha enganado totalmente, que se tinha iludido infantilmente; percebeu que tudo aquilo fora uma forma de fuga à realidade, uma alienação. (Afinal, a alienação é uma fuga ou uma procura?) Claro que não estava apaixonada. Como seria possível estar apaixonada por um homem que, depois de fazer amor, fala de velas interiores e caixas de fósforos metafóricas? Como fora possível percebê-lo tão mal? Na verdade – uma verdade que compreendia enquanto ele ainda a abraçava –, não houvera empatia e cumplicidade nenhuma, apenas ilusão e equívoco, fantasia; carência. E um pouco assustada, questionou-se sobre o que teria acontecido se não tivesse perguntado pela caixa de fósforos; ficariam abraçados, foderiam ao som da chuva e acabaria por lhe pedir para se mudar para sua casa. Passaria, então, a viver com um homem que oculta uma vela perto do fígado. E ao pensar isto, não quis conter o riso. Pensou: afinal, a caixa de fósforos, que para ele representa luz, fora o único ponto de dúvida, o foco de escuridão, que corroera a claridade ilusória em que me deixei envolver. E riu, riu tanto que teve um ataque de tosse; e depois da tosse passar, continuou a rir, enquanto a tempestade se aproximava.