Lobo Antunes, Neptuno

Lês esse gajo?, perguntou-me António Lobo Antunes de nariz torcido, não escreve nicles, é um zero à esquerda, mais valia embrulhar o palavrório e enfiá-lo num sítio que sabemos. É assim que andas à noite?, inquiriu, sem sair da sombra. De robe, pantufas e cuecas e romance pobrezinho que me auxilia a gastar o tempo necessário para que os cães se cansem no jardim. Se soubesse que encontraria o génio encostado a uma parede a fumar, teria trazido outra farpela. Uma camisa azul bebé engomadinha. As feras ladravam e corriam uma atrás da outra e eu lia num dos poucos recantos alumiados do jardim, embora a cacimba, essa mistura de frio com humidade, me dificultasse a tarefa. Empanzinas-te de lixo, tolo, aproveita que o cão malhado defecou para apanhares as fezes com folhas dessa resma a que nem sob tortura me atreveria a chamar livro. Anda daí, murmurou e virou-me as costas, deixando-se engolir pelo escuro. Não carregues trampa. O livro que trouxera de casa não entrou no Renault 4 L vermelho debotado que nos conduziu ao rio. A verdadeira literatura é esta brisa gelada, a ponta do cigarro ardendo na escuridão, os cacilheiros vagando com suavidade pelas águas barrentas que nos reclamam o corpo. O que te aflige?, perguntou-me o génio com uma doçura tal que dava a sensação de falar sem mover os lábios. Não chegar aos pés de Lobo Antunes, respondi. Entrámos nus no rio. Lobo Antunes de cigarro na boca. Tenta ser tu mesmo, murmurou, um novo tu consciente de que Napoleão teve de acreditar em Napoleão para que Napoleão existisse. Quis saber o que deveria fazer em relação às pessoas que me incomodavam, aos melhores escritores do ano, segundo a revista x e y, aos premiados, aos que conheciam o meio. Desejava dar um destino à inveja e ao ressentimento. A água dava-nos pelo peito. Lobo Antunes sorria. Transforma os sentimentos naquilo que queres ser. E os outros?, insisti. Entre esses talentos existe alguém chamado William Shakespeare?, questionou. Não, disse. Continuámos a afundar-nos e os maus sentimentos e as rugas e os cabelos brancos e a miopia e a surdez e as cicatrizes desapareceram, enquanto nadávamos não sabíamos o significado da inveja, do ódio, do ressentimento ou da vaidade, o rio sujo dera lugar a um cristalino mar azul habitado por baleias, orcas, golfinhos e tubarões, e Lobo Antunes era Neptuno e guiava-me para a luz. Acordei sem Lobo Antunes a meu lado. Noite cerrada e uma folha em branco pousada numa mesa. O suplemento literário da semana anterior a meus pés. Beatas de cigarros. Copos vazios. As buchas para a depressão, coitada da depressão, que não aguenta sem os caramelos mágicos. Lobo Antunes em mim, dentro e fora de mim. Sentei-me a escrever. Risquei as primeiras frases. Recomecei a escrever sem riscar, a escrever com humildade, sem vergonha de não ser Neptuno, não parei até me passar o desejo de ser outro e o desejo de me atirar ao rio em busca de um génio existente em sítio nenhum.