Que fazer, senhor juiz?

De mindinho em riste para melhor saborear o café, revela um imberbe quase trintão que pondera ser juiz. Anos de privação semearam-lhe um complexo de inferioridade que o leva a desbaratar o dinheiro que não tem em futilidades tais como telemóveis equiparáveis a naves espaciais ou relógios da dimensão de meio braço. Em virtude de nunca ter entrado numa universidade e de não ter convivido com o que apelida de “gente elevada”, tenta a todo o momento provar que não é por falta de inteligência ou de conhecimentos que não está onde julga que merecia. Não obstante careça de pensamento crítico, garante o folgazão ter lido a obra completa de Foucault e jura ter fruído de diversas páginas de Kant, mesmo que decepção seja a palavra que lhe ocorre quando lhe perguntam se aprecia algum trabalho dos referidos autores. 

Depois de comprar um carro, uma vivenda e de se revestir de pequenos luxos patrocinados pela Lacoste ou pela Apple, cursar Direito e ascender a juiz talvez corresponda nas fantasias deste escravo da cobiça a uma coroação que a muitos encherá de inveja. Não admitindo opiniões que enfraqueçam esta sua infantil forma de pensar, não parece que o comova saber que sete ou oito dos nossos melhores escritores (Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, Mário Cesariny ou Eugénio de Andrade, por exemplo) não concluíram qualquer curso universitário, e muito menos exerceram cargos na administração da Justiça do Estado. Mais do que desenvolver um talento ou aprender a desempenhar um ofício, o candidato a juiz suspira por ser admirado por quem nunca o admirou. Alimenta-o um exibicionismo e um desejo de vingança contra o mundo e contra si próprio por não ter sido desde início o que agora pretende ser. Dificilmente a acumulação de medalhas, diplomas ou dispendiosos objectos aniquilará as suas mais tenebrosas memórias. És juiz, e agora? Não deixaste de ser quem eras. 

 Expressões como “aprende a amar-te” não iluminam corações mergulhados na escuridão.  A auto-ajuda não funciona, entre tantos outros motivos, por se esgotar numa sucessão de frases esvaziadas de sentido. Forçamos os sorrisos, como nos é pedido pelo phd em felicidade, até nos tornarmos sorridentes,  e substituímos o pessimismo pelo optimismo, e atiramo-nos da ponte. Existe nestes livros uma obsessão com a alegria, tropeçamos num ror de dicas e passos a seguir para perdermos a sisudez. Mas a vida prática precisa da filosofia, da história ou da literatura. A procura do saber ou, como diria Ortega y Gasset, o incessante esforço para encontrar convicções acerca das coisas, do mundo e do universo, é o caminho que nos ajudará a escapar deste caos chamado vida. Num texto intitulado A Missão da Universidade, assinala o espanhol que cabe à universidade o ensino de uma cultura que não seja mero ornamento, pois é a cultura que salva os homens da sua tragédia, que os ensina a viver no seu tempo: não basta estar preparado para exercer uma profissão, é preciso viver à altura dos tempos. O homem que não vive à altura do seu tempo, acrescenta Ortega y Gasset, vive aquém do que deveria ser a sua própria vida. Como resolvo a minha vida, como me poderei começar a aceitar? Comprei tudo o que o dinheiro poderia comprar, segui uma série de fantasias que descambaram nesta tristeza, que fazer? Que fazer, senhor juiz, se não corremos para conhecer?