Pavões

1.

Quero poder usar a palavra espírito, disse ela. Quero nomear sem medo a penumbra e a vizinhança da carne. Mesmo que o espírito morra, quero a disciplina indolente e viva, que tanto se confunde com a própria vida, de ter e nutrir um espírito.
Estávamos sentadas no jardim debaixo da ameixoeira, observando os pavões. Observávamo-los com zelo, imóveis, para não lhes causar perturbação. Passávamos as tardes livres no jardim, o próprio terreno dos pavões, o chão que eles debicavam com fastio. Sentava-me ali com ela à sombra da ameixoeira – precisamente o lugar para onde, se numa vida paralela eu nunca a tivesse encontrado, estaria, da janela do meu quarto, a olhar – a fumar e a ouvi-la, e, se os pavões passavam perto, eu não estremecia de prazer nem de repulsa. O golpe de verde e de bronze com que o abrir de asas de um macho surpreenderia até o mais experiente observador não me intrigava – a caprichosa e rarefeita demonstração de beleza da ave deixava de conter sinais de um mundo a que eu não tinha acesso, esse mundo de que antes eu conseguia apenas, aleatoriamente, um cruel vislumbre. A beleza do pavão era normalizada pela beleza dela, da minha amiga, era engolida e explicada pela beleza dela, e já nada tinha que me assombrasse.

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Não é de menosprezar a influência da beleza nas mais íntimas, meticulosas, em teoria livres decisões que tomamos. Antes de tê-la encontrado, eu espiava os pavões com devoção imperturbável. Observava-os da janela do meu quarto, ao poente, de tal modo que os seus gritos guturais, despudorados como goelas de flores que se abrissem de um só golpe do clima, se conjugaram para sempre na minha imaginação com o cair da noite e com a poeira desolada que um pôr-do-sol deixa a descoberto, como num quarto que se abre ao fim de muito tempo sem luz. Os pavões eram para mim uma provocação, um enigma. De onde lhes vinha a beleza? Não seria do rosto – pequeno, oblongo, ladeado por linhas brancas, como que a indicar à mão o sítio por onde deveria empunhar um objecto na aparência ergonómico como um guarda-chuva. Eram as asas do pavão o seu rosto latente, um rosto sem semelhanças, que nunca chegava a revelar-se; um pano exótico e poeirento que descobríssemos sobre uma mesa, coberto por velharias e quase completamente oculto, e que nos surpreendesse com um padrão trompe l’oeil, para depois nos sossegar por ser apenas um trapo garrido, liso, sem profundidade.

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Até que ponto eu a tinha escolhido pela beleza, não era exacto. A beleza fazia com que condescendesse com trejeitos, hábitos, atitudes que noutras pessoas me teriam sido intoleráveis. Pequenas traições eram nela sinal de carácter. Se me pedia dinheiro emprestado, eu não lho negava. Se se esquecia dos nossos encontros, eu não via nisso humilhação. A sua amizade prestigiava-me, a sua companhia divertia-me, e eu chegava a acompanhá-la ao cabeleireiro, pelo simples prazer de, sentada atrás da cadeira, poder contemplá-la no espelho.

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É claro, disse ela, que o espírito deve observância à carne. A beleza da carne é um trabalho do espírito, disse.
A noite caía, inteira, sem aviso, como um bêbedo ou um trabalhador braçal caem num sono impenitente. Ela temia o colapso da sua juventude. Acabará por perdê-la, e sentirá por essa perda a pena que sente a cabeleireira quando uma rapariga lhe pede que corte curtos os seus cabelos longos. Será discreta em relação a essa perda, porque perder a juventude é um pouco como perder a dignidade.
Mas domará a carne com um ardor de mística. Hei-de afinar a minha nudez, disse. A nudez é intemporal, sobrevive à juventude. E eu pensava num daqueles aparelhos de rádio pesados, sensuais, que reuniam as famílias em redor para ouvir as notícias, durante a guerra, um aparelho grande e patético, comovedor. O pai tenta sintonizá-lo, ao rádio, de respiração suspensa – é uma arte um pouco solene. Hei-de afinar a minha nudez porque a nudez é a penumbra e a vizinhança da carne. A nudez é o mais perto que se há-de chegar do espírito. E eu quero poder usar a palavra espírito, disse. Se a nudez é o instrumento do espírito, quero poder usá-la.

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Não, não podemos excluir a beleza da equação única de cada acto nosso. A beleza suspende qualquer julgamento de que parecíamos ser capazes. Porque aceitamos o outro – o belo – sem qualquer critério, somos livres. O mesquinho beco de cada pensamento, de cada perspectiva, deixa de tentar-nos. Pela contemplação, pela prolongada convivência com a beleza, tornamo-nos puros, tolos, beatíficos.
Flannery O’Connor, que durante boa parte da sua vida conviveu com pavões, explicava a raridade e arbitrariedade com que o macho, de outro modo deselegante, incerto, como que vagamente insatisfeito consigo próprio, abria o leque da sua cauda. Era pelo menos raro e arbitrário que o fizesse diante de olhos humanos, e a escritora pôde observar nesses encontros inesperados diferentes reacções por parte dos espectadores. Ora uma negra, para quem a miríade de cores do pavão equivalia a um milagre, se ajoelhara no campo a rezar aos céus, ora um camionista, que se limitava a lançar às coxas da ave o mesmo tipo de comentário grosseiro que lançaria às coxas de uma rapariga.
Eu podia explicar tais reacções antipódicas. Eu própria vivia entre o susto e a indiferença.

 

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Estávamos sentadas debaixo da ameixoeira, pressentindo, nos gritos crepusculares dos pavões, as dores vindouras da carne, quando na penumbra irrompeu dela o riso largo: se eu me deitasse contigo, disse ela, seria com desdém, sem esforço, delicadamente. Para não te magoar. Porquê, perguntei. Porque a violência não está na tua natureza, disse ela, não está na tua natureza lutar.
Era Verão. Eu podia sentir-lhe o suor indolente das axilas. Sentada ao seu lado debaixo da ameixoeira que agigantava a promessa de escuridão, eu pensava em mim própria como numa dessas mulheres que temem e adoram os homens de grande força física, porque sabem que nem o amor que tenham por eles os impede de um dia quebrar-lhes os pulsos, de desarticulá-las.
Era Verão e ela encolhia os ombros. A sua nudez crescia e assombrava-a, como um poeta cego ou uma mulher muito bela. Existia em imanência, causa dentro da própria causa.