Desculpa

"Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo.

Escreve-te outro, que nem tu.

Parecem as linhas formar versos,
mas eles são apenas formas
onde despejam letras. Eles.

Quem não nos ouve espera:
e repara, nunca nos ouvem. Estão.

Quem?

E quem? Aqueles que estarão vivos
quando eu e tu que inventei agora
formos pó e sombras. Plurais,
quase tanto como esta sombra.

Sai-me do sangue. Sai-me do sangue.

Peço-te ou afirmo?
Dizer duas almas na mesma,
para além de um pedaço de escrita.

Gosto de voltar aqui, quando me ausento
e tu surges, sabes como te levantas
quando as palavras brincam consigo.
E contigo. Pesadas. Básicas.
Esdrúxulas. Graves. Sós.

Sabes, nunca te disse,
mas a solidão não é só.
É um universo por domar,
como se domam os cavalos nas clareiras.

Como se fazem os sentidos nas trevas.
Como crescem as árvores.
E se já viste uma árvore crescer,
sabes que elas não choram. Quase nunca.
Nem morrendo se regam.

Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo.
Alguém toma conta.
Todos tomam conta.
Não somos todos aqui? Transfigurados.
E como se transfigura a noite?
A noite transfigura-se, mas não varia.
As variações somos nós que as ouvimos,
apesar do escuro,
é sempre possível ouvir a noite,
sabes, ou melhor, é sempre possível ouvir o negro.
Ouvir o negro.
O azul não se ouve, nem o vermelho.
O negro não se ouve, e não é silêncio.
O branco é silêncio. A luz é silêncio. A voz é silêncio.
Só o negro fala porque pode ser toda a cor.

Crescem.

Crescem.

Crescem.

E agora ouve-me bem. Desculpa-me.
Desculpa às vezes falar-te em silêncios.
Desculpa calar-me à espera que faças vento.
Desculpa saber que não conheces a cor do vento.

É que eu também não... E porque continua este poema?
Porque o céu e o que não é falam ainda.
Não que o céu tenha som. O som não tem espaço.
Por isso existe silêncio, sabes,
tu que me lês, tu que eu amo,
sabes que tudo isto tem silêncio, tem espaço.

E olha-me, finalmente percebo que escrevo para ti,
tu que me lês, apesar de poderes ser homem
serás sempre uma mulher.

É quando uma mãe diz quando tu não existias.
Sabes então que ela pode perfeitamente também
nunca ter existido.
E então é como se todo o infinito nunca nos tivesse tido,
como os milhões e os milhares e as centenas e as dezenas
e aquele que nunca há-de existir.

Mas tu hoje ouves-me. Ouvir-me-ás.
Ouvir-me-ás?
Porque insisto neste verbo, ouvir?
E eu bem sei como é melhor colher flores,
por mais triste que seja matá-las.
Oferecer flores mortas enquanto estamos vivos,
que sabiam bem que a cor é de tudo
menos o negro.
O negro não.

Desculpa-me oferecer-te este silêncio
que não sou eu.

Desculpa toda a música ter de acabar.

Desculpa este poema terminar assim,
como começou.

Desculpa, mas nestes silêncios
não sou eu que escrevo."