Ele entrou no quarto a pedido dela. Apontou os olhos aos quadros, poucos, que revestiam as paredes. Uma velha fotografia reteve-lhe mais o olhar concentrado e metódico. Ela arrumava a mesa-de-cabeceira como sempre fazia antes de se deitar. Tal como a sua cabeça, não tardaria a encher-se de tralhas dispersas. Ele percebeu que ela passava as mãos pelo lençol, arrumando a cama sempre desalinhada. A cama e a mesa-de-cabeceira resumem o seu quotidiano; restos de horas passadas: telemóveis, copos de iogurte, revistas especializadas nas pobres vidas de famosos ricos, alguns medicamentos que esses patetas-alegres também tomariam para não deixarem de o ser.

Ele sentou-se na cama. Ouvia-se o mar disse ela. Ele não conseguia ouvir; apenas o rumor agudigrave que tinha armazenado na cabeça. Uma luz ténue de candeeiro criou sombras familiares. Viu-a reflectida no espelho alto no canto do quarto. Preparava-se para se despir. Ela disse qualquer coisa que ele não percebeu. A cegarrega que tinha na cabeça ensimesmava-o ainda mais. Depositou interesse num livro em formato de calhamaço. Pesou-o com a mão e lembrou-se de Adília a fazer o mesmo na TV. Oitocentos gramas de lixo para consumo de leitores que nunca o seriam. As palavras não deviam acumular-se em lixo. Quem o faz é um criminoso com lixo na cabeça. Palavras.

Ela não lera nem uma página. Perguntou-lhe se ele se importava que ela se despisse à frente dele. Ele acenou que não com a cabeça e disse qualquer coisa que indiciava a banalidade do gesto. Ele olhou para o livro, escusando-se a ver os seios pendurados pela força anti-gravítica dos braços esticados que, com dificuldade, faziam passar a cabeça pelo buraco da t-shirt. Ela não se importaria se ele olhasse. Ele lia um parágrafo ao calhar e concentrava-se no ruído que a sua cabeça sintonizava. Ruído e lixo. Ela perguntou-lhe se ele podia ler-lhe umas páginas. Gostava de o ouvir ler. Sentia-se levada pela voz grave, de tom ligeiramente sarcástico. A voz penetrava-a como uma droga. Ria como uma criança quando ele exagerava a entoação de um trecho mais humorístico. Entrou na cama. Ele adivinhava-lhe a camisa de dormir a subir pelas pernas acima e ela a compô-la com a destreza do costume. Ele sorriu-lhe. Ela também. Um sorriso de miúda feliz. Ele gostava mesmo daquele sorriso amplo e disponível. Ela fechou os olhos para ouvir melhor. Duas páginas depois e ela já tinha sido tomada pelo sono. Ele deu-lhe dois beijos na face quase repleta de fios compridos de cabelo. Terminou a leitura. Ficou um bocado a olhar para ela. As minúsculas crateras de acne exageradas pela sombra. O nariz amplo mas não desfigurante. O rosto esculpido. O sono ainda ia leve; ela estendeu-lhe a mão em busca de segurança. A âncora buscando o fundo. Ele deu-lhe mais alguns beijos na cara num gesto de incontrolável carinho. Os lábios dela moveram-se, como que retribuindo. Ele mexeu-se para se ir embora. Ela não deixou. A âncora tinha sido lançada; não queria voltar ao mar revolto. Puxou-lhe a mão e encostou-a a si; junto do seio carnudo e quente. Ele sentiu-o não indiferentemente. Beijou-a de novo. Sentia a rigidez provocada pelo corpo dela. Quase adormeceu. Quando viu que Morfeu já a tinha levado consigo nos braços, ergueu-se com cuidado para que ele não a deixasse cair. Sentiu uma humidade desconfortável. Aproximou os lábios do rosto dela. Beijou-a. Lembrou-se dos acordes de uma canção de embalar. Trauteou-a mentalmente. Moveu-se com passos moles de ladrão. Abriu a porta da rua, desceu as escadas e saiu do prédio. Parou para ouvir o mar e sentiu a humidade salgada nos lábios. Olhou para a janela do quarto de onde saíra, e penetrou na noite.