As Aventuras do Senhor Lourenço (§16 entre Joaquim e Manuela)

[em terra de cegos é-se rei com um olho. Mas às vezes parece que ninguém quer reinar, falta aos portugueses uma dose maior de arrivismo, conformamo-nos facilmente com a mediania]

Joaquim foi ganhando poder sobre Lourenço, não por uma vontade de domínio exacerbada, neste capítulo Joaquim assemelhava-se ao resto do país, uma moleza de espírito, talvez tecida pela moral das virtudes que refreia as forças conquistadoras dos portugueses (não o cinismo). É verdade que temos os “chicos espertos” e os “patos bravos”, mas depois de construírem a mansão com colunas dóricas e piscina quase olímpica, depois de fazerem férias num hotel tropical e de comprarem um SUV espampanante, depois desta trilogia, acalmam-se e contentam-se com uma churrascada junto dos amigos, tudo aos berros, e camarote num dos estádios dos três grandes.

No que se diferenciava era quando sobrevalorizava a força do livro, digo bem, “quando”. Ouvi-o muitas vezes dizer também, contra ele próprio, que os livros secavam a vida, criavam meninos de colégio, inibiam a imaginação, atrofiavam os músculos... Mas era a sua forma de justificar mais um ditado popular: “quem desdenha quer comprar”. Ou talvez um dos excessos instigado pela solidão. Joaquim, sendo tendencialmente boa pessoa, podia facilmente transformar-se num anjo sinistro, pronto a desbaratar tudo o que os outros construíam, mesmo o belo e o amoroso. O seu niilismo, traiçoeiro quando odiava as pessoas, alimentava uma imensa inteligência que adivinhava a força do negativo. A anti-vida que, à semelhança da anti-matéria, perpassa o pulsar de cada molécula orgânica. Cheio de cicatrizes narcísicas, projectava nos outros o mal que agora vivia em si, muitas vezes de forma tão soberana que sentia vergonha quando dava os bons-dias a Lourenço. Este, como venho demonstrando, tinha qualidades, não de herói, penso também que isso ficou claro, mas as mínimas para, se for caso disso, entrar no Céu (sem o saber, Lourenço apostava como Pascal).

No campo mais racional, Joaquim, apesar dos danos causados pelo haxixe, tinha uma cabeça disciplinada, mesmo quando punha os pés nas nuvens ou andava à cata de neologismos. Se Manuela se colocava ao seu lado, numa composição que remitia sempre para a Bela e o Monstro, sorriso de modelo feliz no momento da consagração fotográfica, inventava um enigma lógico e desafiava metade da sala de professores a procurarem a solução. Dizia que devíamos treinar para sermos Édipo, destruirmos com a espada da razão a intoxicação neoliberal. Claro que tudo isto faz pouco sentido, mas não se esqueçam dos dez anos ligados à droga. Por outro lado, Joaquim achava, baseando-se em fórmulas perfeitas da história económica, que se tinha perdido quase totalmente o sentido do profundo mistério do 25 de Abril. Mistério que indica, antes de mais, o imperativo de se amar incondicionalmente a Revolução, qualquer Revolução, até as Contra-Revoluções conservadoras. Não que acreditasse numa felicidade desregrada, já que talvez não exista a grande felicidade sem grandes e irredutíveis interditos. De qualquer forma, nas horas de maior solidão, Joaquim sentia sempre que o Universo era infinitamente rigoroso e por isso não se podia preocupar com a sua infelicidade.

Por seu lado, Lourenço continuava a sofrer de uma enorme falta de auto-estima. Por exemplo, achava que uma ponte magnífica o ligava a Manuela, mas uma ponte levadiça que no momento do encontro se levantava para deixar passar um navio cheio de contentores chineses. Por isso, certo dia, na cama, saiu-lhe: – Quando te penetro sei que não te toco.

– Vamos ficar em silêncio, meu amor. As palavras têm uma grande força, foi isso que me ensinaste, tu e o Joaquim, apesar de eu não gostar muito dele; mas há coisas maiores. Não temos de explicar tudo, aliás, como costumas dizer, isso é impossível. No nosso caso, temo que quanto mais falamos mais portas fechamos. As almas unem-se em silêncio.

[nunca Manuela se aproximara tanto do sublime. Dir-me-ão que não esteve assim tão perto. Certo. Mas experimentem dizer uma coisa com esta intensidade depois de um mini-orgasmo]

Apesar das dúvidas e hesitações, Lourenço e Manuela viviam algo grandioso e belo, tanto quanto se pode conseguir numa época de cinismo e mesquinhez. O problema maior estava em Lourenço querer a todo o custo discutir a autêntica verdade da relação. E creio que isto se alimentava das forças coscuvilheiras da escola. Além do corte e costura habitual, demasiado fastidioso e vulgar para o reproduzir aqui, tinham agora a mania de construir profecias, fazendo-o, técnica aprendida com o Professor Cabinba, num piscar de olhos. No olhar que lançavam para o futuro vislumbravam um quadro negro, sobretudo quando Lourenço deixasse de ser herói e Manuela visse finalmente o aventesma por quem se apaixonara. Seria ela capaz de fabricar uma indulgência à altura da situação? Ninguém acreditava nisso. Embora nas épocas de simplicidade mitológica tenham acontecido milagres que uniram heterogéneos aparentemente inconciliáveis. E quem sabe se eles não conseguiriam ficar fora das regras da vida social e amorosa (o amor acontece quase sempre em respeito pela luta de classes e repartição desigual das riquezas), sem outros desejos além de vestir e despir a tanga?

Mas o futuro, como a eternidade, só pode estar vazio, ou melhor, é feito de forma e intensidades sem conteúdos.

[“o que não podemos atingir de uma só vez devemos obtê-lo coxeando.” A escrita ensina-nos isso mesmo]