O Faulkner do Algarve

Página de um manuscrito do Faulkner real

Página de um manuscrito do Faulkner real

Escriba virtuoso, com pancada para o narcisismo e a estracinhar a mioleira com uma obsessão suicida que a medicação acelerava, Franz Santos  —  o Santos herdara do pai drogadinho e o nome Franz fora roubar a dicionário de pseudónimos achado na biblioteca da junta de freguesia —  anexou nota biográfica ao manuscrito enviado a editora de renome, mas não uma nota de somenos, padronizada, antes um punhado de violáceas palavras que resumiam os seus sentimentos a respeito de si mesmo:

“Franz, nascido a 13 de Setembro de 1978, autor de linhas que em estilo e em génio se equipara a uma espécie de Faulkner metido numa casa de putas.”

Lambido o envelope, enviado o manuscrito, rumou ao café da esquina a trincar cigarro, a cuspir fumaça e a convencer-se de que daquela vez é que era, que terminara o tempo do anonimato, que livro tão fibroso e rendilhado como o que escrevera seria o trampolim para uma boa editora, depois para os jornais literários e para as entrevistas e para o Prémio Nobel e para a imortalidade. Apesar de tantas rejeições. Tantos nãos. Apesar dos séculos a alimentar o ego em isolamento, a idealizar o estrelato, a dizer ao espelho tens talento, tens talento. Apesar da pistola no bolso a servir de comprimido SOS, pronta para resolver por via de balázio súbitos anseios relacionados com o paradoxo que era ambicionar conquistar o universo e, ao mesmo tempo, possuir míseros tostões para um bitoque e uma noite quase bem passada em espelunca na companhia de uma romena com tantos calos nos dedos dos pés como dentes na boca. 

A tasca do senhor Fernando, ou melhor, Nicole, esfinge oriunda do Maranhão, empregada da dita tasca, era o centro de todos os escritos oferecidos à humanidade por Franz. Portento de oitenta quilogramas a rebentar pelas costuras, loira de um loiro caseiro (tinta loiro claro, sete euros no minipreço), abonada em termos de peito e de borbulhas, Nicole, de certa maneira parecida com um pónei, figurava nas páginas de Franz como uma guerreira pela pobreza injustiçada, que enfrentava as adversidades abrindo o decote e levantando a saia a troco de dinheiro num prostíbulo. Ao raspar ao de leve no braço do escritor, Nicole, invariavelmente feia e sorridente, ocasionava imaginativo conto de cariz autobiográfico em que Franz se imaginava num quarto vermelho, a lançar notas ao ar e no marmelanço com a brasileira. As suas histórias eram vira o disco e toca o mesmo, Nicole de perna aberta, Nicole a roçar-se, Nicole assim, Nicole assado. Às cartas de editores a aconselhar mais diversidade temática, Franz respondia professorando que, para além de não ter culpa de amar mulheres feias, os seus estudos ficcionais e não-ficcionais em torno de Nicole eram secundários, dado que o que sobressaía ou merecia ser louvado ou apreciado, como música clássica, era a escrita lírica, faulkneriana, mais faulkneriana do que a própria escrita de Faulkner, que nascera na rica América, e ele, Francisco no berço, Chico durante a infância, pertencia ao Algarve. E o pior era não ser compreendido pelos editores, acabar calado, com um copo e uma caneta à frente.