Dois textos de Eduardo Quina

EN 236 – 1

“Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo.” HERACLITO

Dentro do vazio o silêncio: a mudez é o espaço único do vazio.

O corpo rodeado de fogo: um exorcismo doentio. O que pode o humano contra os devaneios do diabo? O que pode o humano contra a falsidade de deus?

Os gritos dentro do medo: porque todo o medo é um grito retraído.

O olhar abismado dentro do fim do mundo. Deus em forma de fogo ou apenas e só um diabo lancinante, inesperado, contra a natureza inofensiva de deus: quem comanda quem?

O corpo afogado dentro do negro do alcatrão.

O olhar preso dentro de um carro: abraçados na construção de uma eternidade resignada: os corpos escondidos dentro da desesperança viva do asfalto.

Não conseguimos respirar na silente inscrição deste prelúdio indizível.

Eclipse insano deste estranho mundo onde calcinamos o corpo sem cálculo, em desafecto imperfeito, sem carícia neste conceito inacabado de deus.

Um caminho de horror onde todos sucumbiram dentro do próprio medo contra o negro da solidão desesperada: contra o alcatrão.

A noite traz a aflição do olhar cativo: um crime bárbaro, sem dono.

Através do olhar um pai e uma mãe abraçados a um filho: o medo dentro do medo: um medo que ninguém escolheu, que ninguém quis.

Um medo que o fogo não apagou.

Morremos à míngua. A língua negra electrificada pelo fogo. Os dentes cerrados para reter a dor.

O coração silencioso, silenciado, nesta asfixia de todas as flores.

Tudo era incandescência neste prodígio do fogo ou clarão impiedoso ou perversa encenação.

Afinal não há purgatório e a condenação única é o fogo primitivo que tudo une, que tudo desfaz.
 

MORTE EM DIRECTO

“Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente explica-se pelo fogo.”

G. BACHELARD, A Psicanálise do Fogo

Uma mulher pétrea de mãos postas conduz um credo há muito esquecido. Invoca em vão um deus. Esse mesmo e insignificante que tudo devora.

Tem as mãos calcinadas pelo fogo. Ardem-lhe com uma precisão invulgar todas as feridas. Está só.

Está rodeada de fogo por todos os lados. Desconhece os poderes desta purga.

Castigo? Inoperância? Desafio? Quem comanda quem?
Erigimos o fogo à custa de relâmpagos.

Debaixo da pele cresce a organicidade do medo. Hoje a dor escreve a cinza: Preta. Negrume altíssimo. Inquebrantável.

A inóspita violência do medo. Ali estamos inimaginavelmente. Encurralados dentro do fogo. Do pânico. Da angústia. Da revolta. Da falta de fé.

Ardemos todos até à incompreensão. Ardemos até à dor mais pungente. Em urgência demoníaca.

Ardem em nós todas as inoperantes palavras ditas e silenciadas.

Arde em nós todo o fogo de contrários. Toda a repulsa da insónia que nos atormenta violentamente, doentiamente.

Rodeada de fogo e de silêncio por todos os lados uma mulher pétrea reza de mãos postas, calcinadas.
Desconhece o som e o silêncio de deus. Está só. Tremendamente só. Num horror impronunciável. O corpo aprisionado dentro das imagens.

Já não podemos regressar à infância porque o fogo perdeu o seu fascínio.