Apocolocintose

1

o tomo poético
da Sr.ª Bouvard
inaugurou
um novo mercado
para indústria de wellbeing

um unicórnio meditava
em posição de lótus
enquanto a voz etérea da Sr.ª Bouvard
vacilante
tentativa
como se estivesse a descobrir
as palavras que recita
lhe massajava a alma
lendo poemas do seu livro
e assim
soltando sobre o mundo
como Pandora da sua caixa[1]
a pestilência destilada
de mantras inspiradores

há um para o despertar
outro para a digestão do almoço
outro para os casais apaixonados
outro para os casais apaixonados
enquanto se despem
outro para os males de amor
outro para retiros corporativos
outro para unicórnios
com problemas de digestão

2

por isso
a Academia de Escritores
decidiu atribuir-lhe o prémio

por permear de poesia
todos os aspectos da vida
disse um membro do júri

por inocular
com o soro da poesia
as massas
dos pobres de espírito
disse outro membro do júri

é tão moderno
isto de se ver
gente a ler poesia
no computador
disse outro membro do júri

se bem que eu acho
que a internet
é uma moda passageira
disse ainda outro membro do júri

 3

mas entre os guardiães
da Palavra Poética
houve quem rasgasse
a camisa metafórica
e bramasse
aos céus metafóricos
o dia puro e claro
foi defenestrado
ototoi popoi da!
a Palavra Poética
precisa de ser purificada

 4

o evento foi um sucesso
o presidente falou demoradamente
sobre o orçamento da instituição
sobre os muitos projectos que financia
e sobre as comissões
e subcomissões
de que era membro

a seguir
falou a directora
sobre a importância
da liberdade de expressão
a liberdade de expressão
disse
é muito importante
todos os dias gente é assassinada
por dizer a verdade
mas nós estamos aqui
a lutar por eles
a nossa coragem e determinação
não conhecem fronteiras
todos aplaudiram
e uma médium subiu ao palco
e convocou
o espírito de uma jornalista
morta numa terra distante
para entregar o prémio

a jornalista não conhecia esta gente
não conhecia o lugar
e nunca
tinha ouvido falar
da Sr.ª Bouvard
mas explicaram-lhe
que defender
a liberdade de expressão
era um dever de todos
e que ela devia estar grata
por haver
quem protegesse
a sua liberdade de expressão
falta de fibra moral
disse alguém
quando o espírito partiu
sem cumprir o seu dever

5

a premiada
foi por fim
chamada ao palco
passaram-lhe um cheque para a mão
ela agradeceu
e perguntou
se podia
ler um poema
tem de ser um dos pequeninos
disseram-lhe
e ela leu aquele que começa
Dezembro é o segundo mais cruel dos meses

depois
o assessor do ministro
(o ministro não pôde comparecer)
encerrou a cerimónia
com um discurso
sobre a importância da poesia
como a poesia é
uma coisa maravilhosa
e as bonitas recordações
que guarda
dos poemas
que leu na escola

6

a Sr.ª Bouvard
não conseguiu disfarçar
o desconforto
quando os fotógrafos vieram
e os flashes lhe explodiram na cara
e todos a usaram como adereço
não era esta
a apoteose que imaginara

depois
em directo para o telejornal
não acha
que os prémios são essenciais
para a sobrevivência da poesia?

sim
respondeu a Sr.ª Bouvard
depois de uma longa pausa
sem prémios
não haveria poesia
e acrescentou
desorientada
estamos a organizar
um festival de poesia
não nos querem enviar
um saco de livros?

sintomas
como viríamos a descobrir
da febre mental
que reclamou a sua vida
poucos dias depois


[1] Segundo a Professora Doutora Marília F.-P., “caixa” é uma tradução algo grosseira e imprecisa do Grego. Tratar-se-ia antes de um pequeno estojo, “uma boceta”, segundo a Professora Doutora Marília F.-P., “a boceta de Pandora”, deveríamos dizer”, segundo a Professora Doutora Marília F.-P.