Três melómanos

Às três e meia da madrugada
na Rua da Bica de Duarte Belo
três melómanos discutem música e metafísica.
Já tanta cerveja foi tragada
que nem sempre é rigoroso
um ou outro elo

no encadeamento lógico do discurso.

«A música é
a cara chapada da divindade.
(Não há melhor maneiro de o pôr!)
Ainda ontem, a ouvir Gang of Four,
num segundo me ocorreu o postulado.
Aquela sensação de
eu conheço o sujeito de algum lado

A cara chapada da divindade.»

A segunda respondeu:
«Tu devias ter mais tino.
A ser a música de Deus alguma coisa
não será a cara mas o intestino,
órgão que absorve
elementos de si simples
— ritmo harmonia silêncio histerias —
e os transforma em intrincada energia

que nos aquece,
nos alumia,
nos agarra pela gola.
É um pouco o que sucede com o Piazzolla.

Não a cara mas o intestino.»

E o terceiro:
«Não é bem assim.
A música é é o labirinto que
Deus tece sem fim

pra passear e se perder pra sempre,
para inventar câmaras e antecâmaras
e corredores e novos pátios
e escadarias que dão para certas matas.

Não me surpreende
que vocês isto não alcancem, vocês
que continuam presos ao ardil
do CD. São
coisas que só se entendem em vinil.

Pra passear e se perder pra sempre.»

Passou um gato com um guizo. O guizo
tilintou duas vezes, calou-se,
tilintou a derradeira,
o gato foi-se.

Deixou uma saudade
de som de guizo de gato
reverberando pela
Rua da Bica de Duarte Belo
acima e abaixo.

E acabou a conversa.

Porque
a música é o remoinho que engole a própria metafísica.

De Da Madragoa a Meca, &etc, 2013