Uma carta a propósito do Adriano da Tatiana Faia

Minha querida Tatiana,

   hesitei bastante sobre o formato desta apresentação. Pensei naquela vez em que apresentei o teu Quarto em Atenas, e em como a medida de uma carta foi claramente desajustada. Lembro-me bem de como o teu editor me olhava de lado, à espera que me calasse; nem esperou pela primeira frase para ficar aborrecido. Ainda assim, talvez sem a prudência que me recomendaria o amor-próprio, decidi repetir o formato, e correr o mesmo risco. Sinto que só numa carta te poderia falar sobre o teu Adriano, dirigindo-me a ti, com a intimidade de dois poetas que sabem que nunca falam sozinhos um para o outro.

Sabes, enquanto crescia tão mal como tu, e aprendia a arrancar sons de um instrumento que sempre se defendeu de mim, fui-me apercebendo de que havia em certos compositores uma qualidade indefinível, que nada tinha a ver com génio ou técnica. Tinha a ver com uma indizível presença de estilo. Bastam-nos três compassos para sentirmos a música de Bach. Uma sequência harmónica para reconhecer Chopin. Um compasso para sabermos que é Leonard Cohen que canta, mesmo antes de ouvirmos a sua voz. Acredito que a poesia é apenas mais uma forma de compor. E por isso, ao conhecer cada vez melhor os teus livros, Tatiana, tenho cada vez mais a certeza que estou perante um desses estilos irrepetíveis e, portanto, indefiníveis. Consigo até dar-te exemplos dessa tua idiossincrasia estilística, mas há sempre algo que ficará por explicar, que não define a tua voz tão própria. Por exemplo, posso-te falar sobre o teu modo particular de jogares com a expectativa da forma, contorcendo-a como te apetece. Fico sempre com a impressão que queres deixar o teu leitor descoroçoado, quase revoltado perante uma engrenagem que parece emperrar a meio do poema. Julgo que alimentas conscientemente essa sensação, com uma intenção quase sádica: gostas de lhe dar, quando menos espera, um murro do estômago, com aquela violência particular que só os versos têm. Vem-me à memória aquela tua estrofe magistral, sensivelmente a meio do livro, em que falas de

“um mistério irracional

 que Adriano tenta explicar

com dificuldade

 ao longo de todo o romance

 e que talvez não esteja muito distante

 de outro

 ainda mais difícil de entender:

 como exatamente se passa

 da infelicidade à felicidade”

e que serve como mote para o poema que se lhe segue. Esses versos acabam por ter o fôlego que têm porque são preparados por outros tantos maçudos, quase prosa académica, de uma insólita crítica literária à obra de Yourcenar, que não nos deixa adivinhar o que daqui viria. Grande parte do teu estilo tão particular decorre precisamente daqui, de uma tensão permanente entre o liricismo que tantas vezes te parece seduzir, da elevação das tuas referências literárias ou até da descrição dos teus gatos, e o teu enjoo e tédio por tudo isso. Tudo acaba por explodir numa torrente ilegítima de versos, longos, narrativos, tragicamente desassossegados. Sinto que te reconheceria numa qualquer antologia anónima do século XXI, pejada de poemas de megafone ou de intervenção, e de analogias pós, pré e anti-românticas, desabitadas de milénios. Descobrir-te-ia nesse livro, onde quer que estivesses. Talvez por isso fales num dos teus versos de uma “maturidade de estilo / para poetas”. Mas o que faz da tua voz uma voz tão particular, suspeito que jamais o vá saber exactamente. Deve ser por isso que nunca nos cansamos dos grandes compositores.

Devo-te, porém, confessar que li com uma certa clemência o texto que escreveste no final do teu livro, a prosa com que talvez tentasses explicar o processo de escrita do livro. Muitos compositores contemporâneos o fazem, especialmente aqueles cuja música ninguém entende. Tu, minha amiga, não precisas de o fazer. Até porque, como bem sabes, o teu Adriano é necessariamente diferente do meu – e a beleza da autoria está precisamente nesse processo de apropriação a que cada livro obriga. Aliás, se não tivesses escrito que Fernando Pessoa e o seu Antinous tinha sido uma referência para este teu livro, jamais o adivinharia. Nunca li esse texto e a minha intenção é nunca o ler. É quase uma heresia, mas alguns textos do Pessoa aborrecem-me de morte. Especialmente aqueles em que ensaia um classicismo que me parece mais pedante que clássico. Se conheço bem a prosa de Ricardo Reis, é apenas porque me obriguei a isso por motivos académicos, uma razão que é sempre uma razão de merda para se ler um poeta.

Enfim, com isto quero dizer-te que o teu Adriano já é tanto teu como meu. Transformou-se na minha própria reflexão sobre estátuas de mármore, e sobre “o afogamento talvez acidental” não de Antínoo, o belo jovem que desenterrastes em Delfos, mas da nossa própria experiência humana. Devo-te, ademais, dizer que para mim, Adriano é uma personagem acessória, quase fortuita, no teu livro. Uma ficção como qualquer outra: uma mentira tão grande como eu ou tu. Vejo Adriano como o pretexto do mármore, um pretexto de intimidade. Foi aliás o teu primeiro poema que me guiou nesse sentido; li-o como uma peça programática, que me serviu de bússola para todo o livro. Deixaste nele por escrito três vezes a palavra “memória”, que é verdadeiramente o leit-motiv do teu magnífico livro. Mas a tua memória não é semelhante àquela memória de musas, ao estilo de Vergílio, Mūsa, mihī causās memorā, uma memória que se conta a si mesma na patranha da humanidade, não, é uma memória de algas, é uma memória de arqueologista, que descobre no fundo dos oceanos a beleza corruptível de um jovem mancebo: a memória de um tempo cuspido, a memória vencida pela morte – a morte que venceu Antínoo, e que por pouco tempo iludiu Adriano, até o deixar também em mármore, ou mais precisamente, em quarenta estátuas de mármore. É a memória de uma mesma pedra – a do imperador, a do amante e a tua. É também a minha memória de jazigo, companheiro da tua morte, como tu és companheira da minha. É este, aliás, o clímax do teu primeiro poema, uma engrenagem implacável, contida até ao limite, e que explode quase no final:

“estive vivo poucas vezes

penso que é o que concluiu Adriano no fim

e para estar vivo esta talvez seja

a suspeita mais necessária”

Que versos fantásticos. E com que terror te ouço dizer no fim deste mesmo poema: “espero enfim com alegria / tudo o que de certeza me desapontará”. Que crueldade, minha amiga. Sabes, o teu poema inicial lembrou-me pouco Roma, e bem mais o início de um filme de Terence Malick. O segundo andamento de uma sétima sinfonia de Beethoven em que a câmara se vai afastando do sofrimento de um pai que perdeu um filho para todo o cosmos, para todo o tempo, para toda a universalidade da criação, para chegarmos a uma mesma conclusão, inevitável, constante: tudo é sofrimento, ou como diriam os budistas, dukka: o mais pequeno instante do tempo e toda aquela matéria negra, que nem os cientistas sabem explicar, têm a mesma essência atómica da dor humana, da nossa presença adiada neste mundo. E tu, minha querida amiga, tens o bom gosto de nunca procurares redenção no teu livro para porra nenhuma do que somos. Aliás, a tua poesia tem sido até este momento a-teológica, ausente de qualquer coisa sobre-humana ou sobrenatural. Nisso és muito diferente de mim, que tanto animo os deuses como o deus. Ao ler-te tinha tentado reconstituir no pensamento aquela famosa citação, que pensava eu que era de Yourcenar, que falava sobre o tempo de Adriano, na fronteira entre o culto rígido dos deuses romanos e o Deus cristão, supervisor do pecado. Andei doido à procura dela, e não a encontrei em lado nenhum. Foi com a cumplicidade de um sorriso que a descobri no teu texto final. Afinal não tinha sido Yourcenar a escrevê-la, mas Flaubert: “mesmo quando os deuses tinham deixado de existir, e Cristo ainda não tinha vindo, houve um momento único na história, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem esteve sozinho”.

É aí que tu vives como poeta, minha querida Tatiana, na solidão desses séculos, nas tuas próprias palavras, “ler para ti foi sempre / a única forma de rezar”. Isto leva-me a outra questão. Tu e eu sabemos que essa treta do classicismo é muitas vezes apenas classismo, ou ainda pior, um vómito escolástico de gente que nunca teve o prazer erótico de morrer na boca de Homero. Mas tu e eu também sabemos que Adriano é apenas a nossa própria transfiguração, como quando Pedro vê Moisés, Jesus e Elias, e se lembra apenas de lhes construir três tendas. Três tendas, o pobre tolo! Pois o teu livro é também isso: uma tenda ridícula, uma proteção fatalmente provisória contra o risco do esquecimento, o risco do mármore, o risco do museu, o risco de Delfos – o risco de não vivermos o tempo dos clássicos como eles o viveram, e de morrermos a sua exacta morte.

Julgo que o nosso amor partilhado pelos clássicos tem mais a ver com este reconhecimento de que os antigos decidiram dar uma forma musical a esse terror. Nesse sentido, o teu Adriano é não só um guia para os perplexos, como tu e eu somos perante a frieza outrora pintada dessas quarentas estátuas, mas é também um grito verdadeiramente clássico de revolta contra o horror, parvo, pequeno, agreste, da mentira da perfeição, da memória social, da imbecilidade humana – de gente que passa anónima e inerte, como todos esses soldados que percorrem o teu livro, mesmo o teu único soldado com um nome, Vittorio Sereni, um triste professor de latim – como eu! – alistado para matar, preso dois anos numa masmorra argelina, encerrado no enigma do mal sem redenção nem propósito.

Nesses oito poemas a que chamaste “Um italiano em Atenas”, não sei se te apercebeste de que as personagens principais nem são Adriano, o graeculus aficionado pela cultura grega, nem Vittorio Sereni, mais um títere da Segunda Guerra Mundial. Não costumo nem gosto de falar em presenças femininas na literatura ou chavões inconsequentes do género; acredito que a poesia é um contínuo universal que sofre apenas da contingência do tempo, mas não há como negar que é a voz da mulher o verdadeiro fio condutor destes poemas. Há uma presença constante destes versos que não é a de Adriano nem de Sereni: é a tua, a de uma mulher que se ancora, reage e dialoga com outras duas grandes pensadoras da humanidade, Martha Nussbaum e Margarite Yourcenar, que são as verdadeiras protagonistas destes poemas, juntamente contigo. São mulheres fortes e densas, tão difíceis como tu. Aliás, foi de ti que me lembrei enquanto lia esta tua estrofe, eivada daquela ironia que te é tão idiomática:

“em a fragilidade do bem

Martha Nussbaum

nunca menciona Adriano

e tenho de concordar

que não sei que o imperador

teria a dizer sobre filósofas

de repúblicas romanas do presente

e do frio nos seus olhos

quando elas acendem os cigarros

e da voz rouca

e cheia de estilo

com que imagino

a leitura em voz alta desse livro

de onde transcorre a aceleração

dentro dos quartos

da força com que é preciso viver”

A tua relação, porém, com essas mulheres fortes que convivem contigo nestes poemas não é uma relação de subserviência – nem o teu temperamento to permitiria. Muitas vezes pressinto que te irritas com Yourcenar e com a sua tonelagem clássica – como se te revoltasses contigo própria – que te faz ler as suas Memórias de Adriano como de um tragédia de Ésquilo ou Racine se tratasse. Imagino-te a ler em voz alta os teus poemas, e rio-me daqueles versos em que dizes que os críticos contemporâneos de Yourcenar gabavam o estilo da autora como “digno de um homem”. Aliás, Nussbaum e Yourcenar, e por vezes até a Tatiana Faia, acabam em alguns momentos silenciadas por uma presença feminina bem mais trágica e abrangente, porque mitológica. Refiro-me, claro, a Hécuba, a troiana que é a grande vítima da miséria da guerra, da mesma guerra que continua a ser a actividade preferida dos machos miseráveis do nosso tempo, dos Putins que espalham os cadáveres de Heitor à volta das muralhas de Tróia, sem o bom-gosto de o fazerem em hexâmetro dactílico.

Já me alongo demais, talvez. Vou-te só contar as circunstâncias em que reli o teu Adriano, porque há algo nelas que é quase oracular, e tu bem sabes que cada um tem a pitonisa que merece. Há cerca de três dias esteve um dia lindo. Em vez de te ler no escritório, decidi pegar na bicicleta, e fazer um percurso de que gosto muito, ao longo do Douro, pelo lado de Gaia, até chegar à Barragem de Crestuma, e daí regressar pela margem do Porto. Saí de manhã e só regressei ao final da tarde. Fiz três longas paragens ao longo do percurso. Na primeira, li a primeira parte do teu livro, a que chamaste “rua adriano” e o interlúdio que se lhe segue, “os gatos da rua de adriano”, não sem o espanto de considerar que investiste todo o teu estro de pintora não nas estátuas do imperador, mas num gato que vivia num prédio em obras. Demorei-me muito nessa tua rua. Daí, fui até Crestuma, para uma praia fluvial que naquele final de manhã era habitada apenas por uma jovem e os seus banhos de sol. Foi aí que li o “italiano na grécia”. Aquela mulher tinha a desconfiança natural de quem está demasiado sozinha ao pé de um tipo de barriga gorda e enfaixada numa ridícula licra colorida de ciclista, com óculos de massa e olhos diminuídos, lendo um livro de poesia com um lápis na mão. A companhia daquela solidão fez-me pensar, por violento contraste e como se de uma epifania se tratasse, que, pelo contrário, a tua poesia é um lugar habitado por gente a quem tu nos queres apresentar. A tua poesia tem quase sempre os pés numa rua qualquer, como já era o teu quarto em Atenas – um nome que nunca era aquele que o teu livro devia ter, cada vez percebo mais porquê. Foi uma revelação ler o teu livro neste tipo de movimento, porque tu és precisamente uma poeta de itinerância, mas que fica nos lugares para onde vai: viaja, não parte. Talvez por isso tenhas algo que é talvez o que mais me comove na tua escrita: a atenção do viajante. O teu mais longo poema – que para mim é o mais lúcido e bem construído, a par com o primeiro – é o oitavo e último poema do “italiano na Grécia”. Diriges-te a uma pequena moeda que percorre aquela humanidade que gemia já no primeiro poema. Tem a contingência da imagem de Antínoo, e completa o círculo da dor de Adriano, acorrentado ao amante morto no Nilo. Mas é também o círculo da dor de Sereni, que culmina no lamento de Europa, o de Hécuba, que repete serenamente a nossa violência, e é fundamentalmente o círculo da nossa própria dor, que tem o tempo todo enterrado naquela moeda. Julgo que é neste poema que se condensa toda a força da tua poesia: a força irónica da narrativa que se confunde com o verso, como cenário da nossa tragédia: “a possibilidade / de a morte vir à minha procura”, como tu escreveste. Vejo nele também a tua idiossincrática exigência realista, que te leva ao pormenor da oxidação do metal que deixa o cheiro nos nossos dedos, dos episódios absurdos da vida quotidiana dos intelectuais que estudam o minúsculos dos minúsculos sem se aperceberem do universo que encerra o pormenor, de todos esses temas que se vão articulando cada vez mais intestinamente com o tema maior de Adriano, isto é, o da memória, a tensão histórica entre o ontem e o hoje, a memória vivida no absurdo de um “alguém” que usa a moeda de Antínoo para comprar “uma cerveja numa viela suja”, uma memória que é também um gosto pela história da carne que vai percorrendo os teus livros, a história dos nervos, da tua própria encarnação num quotidiano que te obriga a usares essa mesma moeda num táxi amarelo, uma angústia que é também a angústia da poesia perante a força física da indiferença, aquele sentimento de impotência – a mesma do soldado a caminho do holocausto – perante a máquina do mundo, que constitui o nosso tão pequeno e necessário grito de revolta. Como tu dizes:

“uma palavra num poema

 devia poder deslocar facilmente

 um sentimento como um osso

 com precisão e alarme”.

Bem sabemos que não pode, minha querida amiga. No epílogo do teu livro, que li na última paragem antes de chegar a casa, já o sol se punha, enquanto escavavas Antínoo, disseste-me, aliás, uma coisa de que nunca mais me vou esquecer. É a imagem do arqueólogo que destrói o passado enquanto o procura, que faz desaparecer camadas de tempo até chegar ao artefacto que em equívoco julgava tratar-se do objectivo último da destruição da terra. Minha querida Tatiana, talvez seja esse um dos lugares mais certos da poesia, se é que os há. A arqueologia indefesa da nossa própria vida.

Enfim, gostava de ter uma frase bonita e redonda para acabar estas linhas, redentora, clássica. Também sabes que não sou de citações nem epígrafes. Sei que sou apenas mais um vulto que passa discreto na tua rua, habitada por tanta gente. Agradeço-te apenas a forma tão inquieta como sempre a edificas, de livro para livro. Agradeço a tua encarnação.

Bem hajas, minha querida amiga.

Pedro Braga Falcão

Vila do Conde,

7 de Outubro de 2023

Carta-Convite 

 

A Tatiana Faia

 

Quem chega pela Rio-Santos, sentido Rio de Janeiro, e vira à direita para cair na avenida antipaticamente batizada com o nome de algum figurão da região, vai descer uma ladeira, passar pelo shopping center (esse já com o nome simpático de Piratas Mall) e então virar à esquerda na avenida Caravelas – nesse momento, ele já estará visível à distância. Agora é preciso explicar um pouco mais o entorno. O mar está à esquerda, a cerca de 50 ou 100 metros do asfalto (perdão: nunca fui boa em estimar distâncias), à direita, a cidade avança para o norte e noroeste, espremida pelos morros ao fundo, morros sobre os quais a ocupação humana continua a avançar em formas precárias e violentas que preocupam a Defesa Civil e a Polícia Militar e até me lembram, para o meu aborrecimento, do Third World daquele professor holandês que me irritou tanto. Daí do topo da Av. Caravelas (pois ela começa com um pequeno declive), a 400 metros de distância (dessa vez, usei o Google Maps), você vai ver lá embaixo, cercado pelo colorido da favela nos morros das redondezas, o glorioso Acrópolis Marina Hotel. A primeira coisa que achei engraçada no bendito foi justamente essa sua posição em relação à paisagem circundante: se, na acrópole ateniense, a que fomos juntas pela primeira vez há uns anos atrás, a cidadela é mais elevada do que a mancha urbana que respeitosamente a envolve, no caso do hotel angrense, a situação foi invertida, e a ‘acrópole’ local ficou no fundo da cidade, bem no nível do mar, com risco real de afundar de vez, uma hora ou outra, quando as calotas polares acabarem de derreter. E não é só o nome desse hotel que me faz lembrar de Atenas, mas também sua baixíssima frequência, mesmo em alta temporada, um abandono não tão radical quanto àquele do Classical Acropol Hotel, de nossa segunda visita à Grécia, mas que rapidamente me faz pensar nele, com seus cinzeiros repletos de cinzas, as louças sujas dos últimos hóspedes ainda espalhadas pelas mesas, feliz cenário para o Non-Visitor Center de uma exposição de arte quase impossível montada na zona da exclusão de Fukushima. Quase impossível, mas que, no entanto, está lá, como nós mesmas podemos testemunhar... Ou não? Don’t follow the wind. 

Por falar em radioatividade, se você vier, também quero te levar à Praia do Laboratório, vizinha à usina nuclear. Pelo que eu entendi, a usina utiliza a água do mar para resfriar os reatores e é por isso que a água de lá é deliciosamente tão morna, uma verdadeira jacuzzi marítima. Dizem que os tubarões também curtem a temperatura e vão àquelas águas para criar seus filhotes. Mas quem há de ter medo de tubarões bebês? A praia, além do mais, tem correntes fortíssimas, redemoinhos presumidamente causados pelo sistema de captação de águas da usina. Nada disso, é claro, nem mesmo o perigo de um desastre, é capaz de afastar os banhistas de águas tão mornas e tão azuis (assim como não afastará a nós, tenho fé). 

Falando francamente, Angra, enfim, é só um canto como qualquer outro no mundo, tão acolhedor quanto insuportável. Mas entre a necessidade de novidades e o pavor das coisas inteiramente novas, o equilíbrio é decididamente delicado, e aqui há pelo menos a vantagem das coisas semiconhecidas: breves semelhanças com outras paisagens já visitadas, o eventual alívio de uma anagnórisis engraçadinha. Então, por favor, não demore, deus sabe quanto tempo mais eu ficarei por aqui, quanto tempo mais você estará por aí, e é sempre bom que a gente se encontre às vezes, nem que seja para observar, com galhofa, a desolação ao redor. Prometo que posso até maneirar no papo de catástrofes e abandono, mas venha, venha logo. Temos aqui uma Grécia de ponta-cabeça à espera de nossas risadas.