OU!

 

Io sono un partigiano.

A Gauguin, o cão que nunca viu os sassi1 e a Giorgio, que os partilhou comigo.

1.A cidade escondida

Em Matera, vive-se de fora para dentro. Não de um fora para dentro em que o dentro é mercado, reboliço, azáfama, gente que corre, motocicletas velozes, tomates pelo chão, pregões de vozes cheias ou cães vadios que cheiram e lambem os pés. Em vez disso, um fora para dentro em que o dentro é como uma pérola, fechando-se a cidade como concha sem a olhar, aconchegando-a sem a tocar, protegendo-a sem o (se) saber.

A concha, cinzenta, dura, ondulada, às camadas de cebola presas umas às outras com cola forte, tem em torno de si o mar (as colinas), os peixes (as cabras), as algas (a urze), as bolhas de dióxido de carbono que ascendem (o ar), as correntes fortes (o vento africano), as ondas (de calor?), as rochas (as rochas). No seu interior (vale?), a pérola. Um conjugar de beleza branca e brilhante intacta, ainda que de cabelos (paredes) acinzentados, com a tranquilidade opaca de um Alentejo em dia de sol, plácido, quente, estanque, com esparsos anciãos que conversam sob uma oliveira, de boina na cabeça e cajado paralítico, dia, após dia, ou ainda dias, que são sempre os mesmos dias, porque duram para sempre e se estendem como a planície. Um museu do calor que tanto sobe do centro da terra como viaja (voa) em ventos africanos, em que a arte se constrói escavando montanhas, pouco a pouco, como um grande formigueiro sobre a terra, ao acaso, por acaso, sobrevivendo ainda que de areia e, por isso, criando magia. Isso é Matera: uma pérola tranquila e velha, numa planície quente alentejana, guardada por uma ostra cebola, que a esconde de quem passa.

 

2.A cidade imaginada

Em Matera, os sassi estão vazios. Para um observador externo, este nada oferece uma cena montada à espera das luzes e das personagens. A primeira frase de uma história que será o leitor (viajante) a escrever. O cenário está montado: as casas sucedem-se encavalitadas, encruzilhadas, labirintadas, desaparecendo de dentro para fora umas das outras. Matera oferece-se assim, estática, como se vivesse apenas para servir a imaginação. Alberga infinitas possibilidades: pelos seus caminhos tanto poderiam correr bárbaros, como extraterrestres. As suas portas abrem-se em túneis contínuos que contêm em si movimento e ruído invisíveis, mas sentidos. É um era uma vez, um alçapão para um sótão desconhecido, uma arca do tesouro cujo conteúdo pode ser tudo o que quisermos. Uma viagem no tempo instantânea às histórias que têm modelado as vidas de por quem lá passa. Nada mais está entre a cidade e este transporte a-espacial senão a vida de quem a vê, os livros que leu, os filmes que viu e o imaginário que transporta.

Para um observador interno, porém, o guião para este cenário já esteve escrito. Sabem como se vivia, em que direção se caminhava e de que janela se debruçava quem. Este cenário vazio não é um mundo de possibilidades infinitas, mas antes a memória das possibilidades que finiram. Como uma instalação de homenagem ao abandono, é uma lembrança constante do quão silencioso é não ter vida(s) dentro de si.

Em Matera, eu fui uma observadora externa. Para mim, foi bela porque me ofereceu papel para os meus contos de fadas. Imagino burros, rios de excrementos, mulheres fortes e redondas, vegetais que chegam em carroças, fardos de palha, festas com vinho jorrando diretamente da pipa para enormes canecas de barro, danças iluminadas por fogueiras.

Entre mim e quem de Matera a olha, está uma das dicotomias mais cruas do turismo de passagem. Onde se sente abandono, vêem-se contos de fadas; onde a memória dói, o futuro é consumível; onde a precariedade se entranha, a beleza é descartável. O viajante seguirá para outras paragens em branco, ainda que talvez não tão disponíveis para a viagem dentro delas como esta. O Materano permanecerá, olhando a cidade de frente com a memória e virando-lhe as costas com o que há-de-vir.

Ele sabe: a verdadeira cidade não se olha, vive-se. E não se faz de casas vazias.

 

3. A cidade libertada

A águia perdera-se. A aranha também se tinha perdido, ainda que, tendo-se perdido, tenha encontrado um novo lugar onde, na verdade, estava muito melhor. Desta forma, depois de se ter perdido no verdadeiro sentido literal da palavra, a aranha perdera-se também num sentido um pouco mais figurado da palavra, embora na mesma verdadeiro. Perdera-se de ser uma aranha, e transformara-se em ser numa formiga. Não por maldade, ou por querer gozar da comida com que a alimentavam as outras formigas. Nem sequer por apropriação cultural do universo das pobres formigas, mais pequenas e indefesas. Apenas porque era uma formiga, e não uma aranha. Pertencia a um mundo diferente, sob uma pedra, comendo migalhas.

Talvez em vez de se ter perdido, a aranha se tenha encontrado, na verdade. Porque se uma aranha não está presa ao lugar ou à família de aranhas em que nasceu, ela não está sequer cativa de ser uma aranha. É livre.

Talvez a águia encontre uma cidade onde pairar. Uma em que as casas tenham todas uma cor que se assemelha à sua. Talvez encontre esta cidade, e permaneça para sempre como a única águia em Matera, olhando-a do cimo, imóvel. Talvez a águia se transforme em falcão (muito mais comuns no céu materano) e se encontre depois de se ter perdido, tal como aconteceu com a aranha. Ou talvez continue mesmo sendo águia, ainda que só. Majestosa, enorme, voadora, corajosa: símbolo, para todos os habitantes de Matera, de que se pode sempre encontrar-se depois de ter perdido, de qualquer forma, em qualquer lugar.

E, mais importante, de que, tal como a aranha ou a águia, também eles são livres.

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1 Sassi: Casas pré-históricas escavadas nas montanhas de Matera, na Basilicata.