Alone together

Rousseau sonhou a distância, a solidão,
para acabar com o mal que nos fazemos;
e, em certos reinos, pôs-se o sonho em prática
dum modo incrível que ainda admite o toque.

Vivi uns dias numa terra alta
onde as pessoas, juntas, estavam longe;
notava-se isso nas flexões da voz,
nos gestos e no preço do café.

Vi lá passar amantes enlaçados
com dois alpes nevados entre as almas;
senti calor humano ao ser roubado
por um bandido que imigrara há pouco.

Nunca pensei que a ideia alastrasse.
Mas sim, cá vamos seguindo Jean-Jacques
para nosso bem, para acabar com o mal.
Chamou-se a morte para impor respeito.

E o respeito reina sobre o mundo,
enquanto o amor espera paciente.
Seremos ilhas? Há pouco, no cais,
vi uma gaivota a bocejar de tédio.

28/03/2020

Parque Eduardo VII

Sentado num banco, a dominar a cidade,
deveria acalentar meus sonhos de grandeza,
ver-me rei do que avisto, até à Arrábida; em vez disso,
sinto cobrir-me um manto, um peso estranho
que traz algum alívio à raiva e à teima dos últimos dias,
nos quais abri e folheei obras curiosas
sobre como fabricar uma bomba nuclear
(coisa cara e que, confesso, não será o que me falta
para a vida, agora, pendente das estatísticas;
com a curva de estupidez a subir, vertiginosa).
Estes enormes obeliscos encimados por louros,
hão-de estar alinhados com o cais das colunas,
numa grandiosa perspectiva à la française,
(Isto suponho, não estudei o assunto),
o que sei é que andam escavadoras lá em baixo
a revolver o Tejo e a transformar o cais, talvez,
numa marina, num polo de atracção acrescida
para as hordas de turistas que (pois é, desapareceram)
hão-de voltar cheias de apetite. Deus não permita.
Entre os enormes falos coroados, havia, no Natal,
um presépio gigante, não sei se ainda há,
o que há, aqui na minha frente, é uma asserção em pedra
do pénis em ruína do João Cutileiro, bem escorado,
e que terá causado escândalo e polémica,
sem que eu me tenha comovido um pêlo.
Porque nem todos os pénis chegam a falo,
e o pobre amontoado, junto aos quatro obeliscos
altíssimos, perde à partida a luta pelo símbolo
e nem chega a ser insulto, para não falar em arte.
Que me perdoem os que amam a obra, eu amo
Lisboa e, pelos vistos, finjo honrá-la, falando.
Já vejo que a tarde não me cura totalmente
a raiva que crescia. Não me vale o peso do manto inverso,
faltam-me uns olhos melhores, dois faróis
que me lessem por dentro até eu adormecer.

17/11/2020

Quelques regrets

Nestas ruas do Poço do Bispo
que, já então, eram feias como agora,
andámos à procura duma loja de instrumentos.
Sonhávamos com música;
a loja, repleta de órgãos partidos e bafientos,
pareceu-nos a caverna de Ali Babá,
preciosa para brincarmos aos conjuntos;
enfim, eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,
queria encontrar a música nas coisas palpáveis,
queria ir ter com ela, na vida, e depressa.
Demasiado depressa. Não me acompanhavas.
Ainda nesse Verão, depois dumas horas
a tentar ensinar-te os acordes de “I love her”
disse-te o que ainda hoje dói
e já não se desdiz.
Os prédios, os carros estacionados
ficaram no mesmo sítio,
mas um grande e largo rio
de baba e ranho
correu e separou-nos para sempre.
Dizem que, aqui, o oriente de Lisboa
era lindíssimo antes da indústria.
De olhos fechados, ainda se avista esse lugar ameno,
belo como a tua amizade imerecida.

14/06/2019


O perfil de João Paulo Esteves da Silva pode ser lido aqui.