Dois poema de "Um dia serei humano" de João Vilhena

no fundo da lata busco o prazo
dois do três de dois mil e quatro
tu entras e sais do televisor
como uma notícia vista
em todos os canais
e ris-te da minha precisão
que diferença faz
um dia a menos um dia a mais

na taça já pouco resta da fruta enlatada
no sofá o teu corpo quase morto
é o eco da imagem retida na foto

é difícil tirar os mortos dos vivos
as sombras não têm prazo
nelas está o arrepio dos astros


O dia revelou-se pouco a pouco
sem nunca se mostrar inteiramente
Esticas os lençóis a noite
é uma memória que a tua mão alisa
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Nada se abre a estas horas nem eu nem tu
nem a padaria do lado ser a peça inútil
que resta dum armário montado à pressa
ou dum jogo abandonado de criança
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Isto vem tudo melhor e claramente explicado
numa página exata quem sabe a 44
de um livro talvez por mim em tempos lido

Visões de troia

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Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo

A pele da Europa revisitada das alturas

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A superfície do mar vista do avião
parece a tua pele ampliada à lupa 

não minto se digo que desta altitude
está seco ao meu olhar o corpo do Atlântico  

como chora um corpo líquido
senão cuspindo pedras conchas
corpos para quem foram inúteis
as tábuas que também dão à costa 

ii

a abóbada da europa abate-se
sobre os mares e oceano
e sobre as espáduas do Atlas
enfraquecido agora pelos aromas das flores
que em terra se abrem atrozes 

não sobra quase espaço
entre a terra e o mar
e os corpos não param
de dar à costa devolvidos
por terem defeito
ou não agradarem aos compradores
(escolher a opção que melhor se aplica) 

tudo se repete e a cada novo rapto
se soma mais uma gota de violência

Paris à noite revisitado

Ainda ontem tudo era estranho
hoje já me habituei ao barulho das ambulâncias
e às patrulhas da polícia 

viver na grande multitude
também pode ser isto
as coisas irem desaparecendo
com os dias  

acasacados apagamos em cada corpo
uma multitude de vozes e à noite vamos
ao teatro ver as vidas
que o olhar na cidade
teme ou recusa captar 

já não estão aqui os três ou quatro emigrantes
dormindo sobre a grelha do metro
debaixo da ponte de Stanlingrad
onde por vezes ainda nos espia o ténue brilho vigilante
do foco de luz da torre eiffel (ai fel) ou das iluminações
do grand palais (grã pá lê) 

segundo as redes sociais a polícia dispersou o pequeno acampamento
com gás pimenta
especiaria que os portugueses trouxeram da índia