Eram 3 da madrugada

Entrou no carro, sentou-se e atirou as chaves para o assento do lado. Eram 3 da madrugada, bebera mais do que a conta, tinha os olhos esgazeados e o sono já se fazia sentir, mas nada disso o incomodava. Fixava um qualquer ponto que estivesse na sua cabeça, algures ali perdido nas ideias dele, e era assim que nenhuma das luzes da noite lhe penetravam retina adentro e o acordavam do transe. Pensava num amor, pensava na súmula de quase um ano sem trabalho à caça de biscates aqui e acolá, na maioria das vezes ilícitos, para poder sustentar a sua vida, e a enviar currículos por e-mail com cartas de motivação insossas anexadas e, com o seu envelope encarquilhado, a entregá-los de porta a porta em estabelecimentos que lhe pareciam ora decentes, ora decadentes. Por esta altura, pouco lhe importava. Estudara e trabalhara na área de estudos que agora parecia rejeitá-lo. Fora para o estrangeiro uma temporada, sacrificara a relação com a namorada, não logrando absolutamente nada. Intentara de retomar com a namorada, mas também em vão, não se sentia uma prioridade na vida dele, “nem secundária, nem terciária, nada”. Tinha a sensação de ter feito todas as escolhas erradas na vida. Estava bem quando se encontrava com os amigos, faziam-no sentir-se melhor, anestesiavam-lhe a dor entre chalreios e copos. O problema era o caminho para o carro, aquele moroso rebobinar da vida, de coração na boca e de mãos apertadas na garganta. Foi assim que chegou ao carro, alucinado, pronto para voltar para as quatro paredes de sua casa que pareciam amachucar-se e prestes a cair-lhe em cima a qualquer instante. Ultimamente pegara no volante neste estado, como se desafiasse a morte, e ciente disso. Era ele e o sono que lutavam por uma existência, efémera e prolongada ou eterna. Queria testar a sua sorte: nas estradas desertas, na ponte, nas bermas, nas localidades, tentar não esbarrar-se nos passeios, passando por cima das tampas soltas das sarjetas, ou uma poça de óleo na estrada que lhe desgovernasse o carro. Foi enquanto isto que voltou a si e reparou na aranha que pendia do retrovisor. Lembrou-se das palavras de um poeta: “tal como a aranha, sê paciente”. O caraças, é o que é, resmungou, que me sacudam com o chinelo. Ligou a ignição e seguiu caminho.

A utopia dos livros 

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Por vezes, brincando com uma ideia imaginária do homem que poderia ter sido, exteriorizo com a esposa, coitada, delírios de felicidade, sonhos suburbanos, de quem medrou na pobreza, como passar os dias de robe e pantufas numa casa com piscina, a soprar fumo de charuto, a ler Proust, a combinar as férias em Punta Cana. Estes são escapes mentais, maneiras de me idealizar noutra vida, talvez noutro corpo. Não sendo Tony Soprano, nem fumando charuto, é-me mais conveniente uma utopia proposta por Kafka, quando anota que a melhor forma de vida consiste em encerrar-se numa cova funda com um candeeiro e o material necessário para escrever. Escrever em paz, longe de vozes, livre do trabalho, eis uma possível utopia de quem escreve - a utopia de um dia vir a ter as condições perfeitas para criar (no escuro, no silêncio, na torre de Montaigne) a obra magistral. Outro sonho de quem se dedica aos livros é ler ininterruptamente, ler sem paragens, ler como se a leitura fosse acto inseparável da escrita, como se substituísse a comida e a bebida e pagasse as contas. Ler de maneira a que a leitura transforme este mundo de cansaço num mundo de Borges, no qual tudo, inclusive um dicionário, uma namorada, possa ser lido como ficção. Ler como se uma mulher, a nossa, pudesse ser parte da leitura. Kafka, explica-nos Ricardo Piglia em O Último Leitor, constrói uma leitora atada aos seus manuscritos, uma figura sentimental que une escrita e vida, em suma, uma mulher perfeita, uma leitora fiel, que vive para ler e copiar os manuscritos do homem que escreve (aliás, Felice Bauer, essa criatura transformada numa leitora de cartas e manuscritos, desperta a atenção de Kafka por passar a noite a ler, por ler até tarde na cama). 

Tentativa e erro

David, pormenor do rosto

David, pormenor do rosto

A primeira vez que tentei estudar italiano foi em Lisboa, onde tive uma professora de Nápoles acabada de chegar de Buenos Aires, onde tinha vivido vários anos. Ela não parecia muito feliz de regressar à Europa, não falava uma palavra de português, não nos deixava tirar uma única nota por escrito (algo que a mim me enervava), e o meu colega de carteira, ocasionalmente, era o lendário cantor José Mário Branco, que uma vez a meio de um teste, não sei bem como, vendo-me derrapar no acto de soletrar Michelangelo me corrigiu amavelmente. Não tendo isto sido o início de uma bela amizade, tenho, no entanto, com José Mário Branco a dívida anónima de nunca mais ter incorrido no pecadilho de soletrar erradamente o nome de um dos maiores génios da Renascença. Michelangelo está sepultado em Santa Croce em Florença, ao lado de uma série de outros génios do Renascimento, tantos que parece um pouco banal dar com o seu túmulo ali. Uma pessoa erra de um lado para o outro no amplo espaço daquela Basílica no meio dos turistas, até acabar cá fora, num túnel subterrâneo, onde do chão ao tecto repousam várias lápides datadas do romantismo, de gente que morreu jovem e de febre, de tuberculose, em acidentes pelo menos tão acidentais e aleatórios quanto acidentalmente se vive. Há uma grande ausência no centro de Santa Croce, que na verdade preenche toda a Florença. Numa posição no centro da Basílica está o cenotáfio de Dante, algures entre Leonardo da Vinci e Michelangelo. Fora das suas rotinas, os vivos vêm aqui apreciar os mortos, de máquinas fotográficas em punho, os seus passos ecoando pelo mármore.

Como Dante sabia, às vezes no meio do caminho da nossa vida podemos dar por nós absolutamente surpresos. Então, do nada, ocorre-nos subitamente a suprema graciosidade de alguns dos esboços menores que antes de dar com o David em toda a sua glória, uns quarteirões mais abaixo na galeria de destaque da Academia, se pode ver nos corredores desse museu. São uma série de esboços de figuras que se contorcem e se dissipam incompletas na pedra. Michelangelo teimosamente a lutar com a forma, tentativa e erro em loop. Quanto é preciso errar para chegar à forma certa.

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Em An Art Lover’s Guide to Florence, Judith Testa dedicou algumas linhas a estas estátuas menores:

Those who go to see David today must first make their way through a museum of mediocre paintings and then down a long gallery lined with unfinished sculptures by Michelangelo, remnants of several of the artists ill-fated projects. Those shadowy figures seem to be struggling to break free from the blocks of marble that imprison them. Then, at the end of the corridor, the David looms on its pedestal, as fully realized and free from its stone block as any statue ever made... (p.242)

Notas de segunda-feira: o fim-de-semana

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Sou um cidadão atípico, às vezes parece que me construí a partir dos meus próprios actos, uma auto-construção cheia de erros e definindo vias de desenvolvimento inverosímeis. Apesar disso, sou um burocrata competente e abafei quase totalmente o lado temperamental que ninguém, na devida altura, domesticou. Assim, nunca soube bem o que significava o fim-de-semana, ou melhor, ignorei sempre as euforias dos dois dias que cortam, num armistício social e emocional, a série do labor, desse estar no mundo para trabalhar. Isto ou me ilustra como um workaholic inveterado ou um hedonista sem juízo. Em boa verdade, não sou nem uma coisa nem outra. Estou no limbo, sou um ser do “entre”, não tenho qualquer território determinado, nem geográfico, nem discursivo, nem vital. As minhas tautologias são dinâmicas, o meu solipsismo, embora íntegro, está cheio de exteriores, tenho um fogo interior que tanto me ilumina como me devora. O que faço mistura prazer e dever, trabalho e festa (mesmo quando festejo sozinho, a maior parte das vezes). Se escrevo fisiologicamente ao fim-de-semana é porque passei a semana a catalogar palavras e frases. O meu calendário é impecavelmente disforme, revelando-se sistematicamente como a-sociológico, talvez a-psicológico.

Hoje é segunda-feira, milhões de indivíduos foram freneticamente atirados para a rua, logo ao despontar da aurora – e não há nenhuma poesia nisto. Eu não fiz qualquer intervalo, vivo no eterno retorno. Mas sou abanado de todas as formas, sem piedade. Seres sonolentos prontos a explodir conduzem ao meu lado, julgam-nos adormecidos e inofensivos, mas eu sei que ao mínimo contratempo vão dilacerar alguém.