sophia entre os constitucionalistas

Sophia na assembleia constituinte de 1975. 

Sophia na assembleia constituinte de 1975. 

podia ser que pudéssemos dispensar
com esta saia, óculos de sol, cabelo preso
entre o rigor de tantas gravatas
sobretudo se eu me imaginar depois desta cena
como o telémaco que estas discussões
impacientemente esperaram
o visitante de um país futuro
beneficiário das benesses que aqui se antecipam

e talvez tenha ficado para trás
a memória de um escudo deixado em batalha
por um poeta solteiro da antiguidade
não sei porque é que actos constitucionais
me fazem pensar em arquíloco
ou talvez saiba que muito disto seja
sobre os cacos que se amontoam
depois de um exército abandonar a cena
ao serviço de um estado
ou o que fazer com um magro salário
num tempo instável como um outono português
talvez encher uma gaveta de nulidades
indagar sobre as origens do épico e do trágico
argumentar que nada existe de erótico
no sorriso da estátua deste rapaz de corpo perfeito
cujo passo em suspenso voltará mais tarde
para que na sua pureza se afoguem
os detalhes que por vezes passam ao lado
nesta consciência que entardece e colecciona
notas sobre estados mentais
porque mais do que a imparcialidade
que convém a um discurso constitucional
nos importava libertar os cidadãos
até aqui – convenhamos – mais ou menos castrados
para uma reflexão sistemática sobre o seu papel cívico

e não sei – ou talvez saiba e me tivesse esquecido
porque é que alguma coisa disto me faz pensar em átis
o adolescente que naquele poema romano
se castra a ele próprio

fora da cidade, fora de ti
a consciência volta depois de uma boa noite de sono
acende-se e apaga-se nos faróis contra as janelas
nas sirenes dos ferries que pontuam a noite
vírgulas e pontos finais são estudados durante
horas estéreis são o equipamento de um soldado
que atravessa o texto de uma lei, não este poema

nem sei bem porquê esta imagem
de uma mulher sentada entre homens
que decidem uma constituição futura
imaginam com uma fúria quase escapista
depois de tantos anos de repressão
a cidade do futuro
que talvez não somem a um sentimento de posse
um sentido de patriotismo podre

e ela parece uma penélope que não duvidou nunca
esperou este dia não com um fazer e desfazer de fios
que mãos acostumadas
decifram mais do que os olhos míopes
mas com um humor
de quem sempre esperou
por ferramentas menos delicadas

átis entra e sai desta mesma cena
pela mesma porta
na mesma parte do mapa da imaginação
e o seu lamento é uma ruptura total
que não se confunde com nenhuma
teoria do bom selvagem
ele chora a casa e os jantares
as praças da cidade e os bancos
onde não há-de sussurrar
palavras doces ao ouvido
de mais rapariga nenhuma

que não é o que esta cena na fotografia é
embora pudesse ter sido
e eu emprego o olhar absorto dela
os óculos de sol as mãos cruzadas sobre a mesa
numa promessa de disrupção total
eu nem imagino o que vai ser
do meu telémaco burocratizado
neste tão novo país europeu
onde a memória nem sempre se desmorona
tão bem como devia na dolorosa disrupção dos factos

mas para já arrumo os livros dela sobre a mesa
prendo o cabelo, tacteio à procura
dos óculos de sol e dos cigarros
junto no instante limpo desta manhã
as partes que perfazem a insónia total da consciência
que faz vibrar em cores estridentes
todos os pormenores destas cenas
que não fosse o medo aceso nos olhos do rapaz
ao recuar junto à fera
depois do último gesto da sua própria adoração
depois do ritual que agora vai substituir todos os rituais
podia quase confundir-se
com o trabalho que ata o laço
entre o corpo, os gestos, e o exaspero
e se traduz na segurança daquele gesto de abrir
agora a caixa estudar cuidadosamente os anéis
experimentar os que pudessem servir
rever e multiplicar o mapa dos adornos
até tudo ganhar o seu verdadeiro sentido

Dois poemas de Ellen Maria Vasconcellos

Resumo da história

Um coração cheio de nortes morde o pano
encharcado de sangue gozo e lágrimas
e se arroja convicto
pela janela
levando vidros vidas e morte
sem se importar
com as veias, pele, nada
que se move ao redor dele.

Não foi assim mas isso é o que sobra
do que fez a faca à carne:
um corpo arquivo de quinhentos dias
um atlas de um país sem nome
e sem escala.

 

**

 

Ainda é cedo

olho pro céu buscando algo
me escapa o nome daquilo que sobra do cigarro
seja o que é
                                jogo longe
estou em terra nova de cinquenta estrelas
faz frio mas ainda não tremo
e não conheço ninguém por mais de vinte e quatro horas
um rosto
                 no entanto
                                   na fumaça que sopro se volta
com certa familiaridade
que sinto ter em situações de tímido desespero
brando (alguma vez já te aconteceu isso?)
e quando me vejo incapaz de seguir
olho pra ele
e ainda é cedo
falta mais música
                a dança
                              uns tragos
                              canções em guitarra
o corpo aguenta muito sem filtro
até que a noite pertença somente aos gatos
olho pra ele sem desculpa
(te tive aí, por uns segundos, em pause)
e de repente, vem o nome:
                                             bituca
                                                         guimba
(como será que diz em tua outra língua?)
e já é hora de voltar
                               ao ponto
                               de partida.

 


Amor, a partir de Tarkovski

O sonho dele é o meu, disse-me
apontando as paredes com rios
dentro – ou seriam mares
porque respirávamos a salgada cicatriz
da ferrugem nas portas arrebentadas?
 
 As paredes levadas pela correnteza,
o teto desabando enquanto dormia
para acordar soterrada, gritando,
gritando grávida de um pesadelo
em que não éramos nascidos.
 
O inverno fratura suavemente os ossos.
Na cama os lençóis enregelados.
A aragem do vazio na carne.
Os cachorros latindo enquanto uivo
metálico de uma locomotiva naufragada.
 
 Por entre os escombros, erguia
para o luar os olhos esfacelados, para
a luminosa e nula aura de insônia –
a fria dor do mármore feito carne
e o delírio do mármore feito ardor.

Teodora Cardoso leu os clássicos todos

Não que a entrevista interesse. Talvez interesse. O que chamou a atenção foi dizer-se que Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas, "leu todos os clássicos da literatura." Para além de ser algo inédito no mundo, e por isso digno de louvor, é também sintoma do alto desprezo que as elites portuguesas têm por qualquer coisa relacionada com as humanidades. Leu tudo, tanto que já nem lê o que de mais recente se vai publicando, possui colecções inesgotáveis de música clássica. Parabéns, Teodora. Este é o ano dos portugueses. Resta saber quantos são os clássicos e a partir de que ano de publicação é que um "romance", coisa pouco do gosto de Teodora, perde o rótulo de clássico e passa a ser "moderno", isto é, menor e portanto pouco apetecível em termos de leitura, ou melhor, de distracção do que realmente importa. Este é o discurso do lucro. O de alguém que não olha para o ensino das humanidades como crucial para a formação do indivíduo. Ler pode contribuir decisivamente para que nenhum Donald vire presidente ou para que não aceitemos de olhos fechados a inevitabilidade da austeridade ou da decadência ou do desemprego. Este é o discurso de quem diz que adora ler, que leu tudo, especialmente o que confere gravitas, virtus, mas que na verdade despreza a literatura, a história, a filosofia. Passos Coelho também apareceu um dia a garantir que não perdia tempo a ler romances. Lia a Fenomenologia do Tempo, ou a Fenomenologia do Ser ou do Existir - que interessam os títulos, quando o que conta é o conteúdo? Teodora leu os clássicos todos e agora lê romances policiais por diversão. Leu Tolstói. Aliás, releu Tolstói mas Dostoiévski nem ver. Com aqueles experimentalismos, não ensina a ganhar dinheiro nem a compreender o mundo. Vejam como a literatura é menor, como é pequena, contabilizável. Cabe no bolso de uma contabilista, perdão, economista, perdão, figura mundial.

Deixo um excerto da preciosidade:

A nível de literatura, não leio muitos romances, sobretudo modernos. Li os clássicos portugueses, ingleses, franceses, alemães e russos. Mas russos só o Tolstoi, de Dostoievski não gosto muito. Ainda há pouco tempo andei a reler “Guerra e Paz”, que é um grande livro, sempre atualíssimo. E li-os em geral no original, no caso dos alemães em traduções para francês ou inglês, muitas vezes com edições bilingues, porque de facto gosto muito de ler os originais. E filosofia também. Sempre gostei e continuo a gostar. Depois, há uma coisa completamente diferente destas todas e em que sou especialista, como com os chás, que são os livros policiais. Eu preciso de livros policiais para adormecer. Não é porque me deem sono mas porque me fazem desligar do dia a dia.

Lourdes Castro: dar a ver o enigma

Lourdes Castro, Odalisque  d'après Ingres (1964)

Num testemunho intitulado Sombras Projectadas e Contornos, Lourdes Castro diz-nos o seguinte:

“A sombra ainda é palpável. O contorno já não é. (…) [o contorno] é, creio, um novo olhar sobre o que me rodeia. 
A sombra projectada como contorno interessa-me muito mais do que a sua simples representação. Porque o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente. (…) Enquanto um contorno é qualquer coisa que foi feita com a presença da sombra, mas que dela se liberta. O contorno sugere ausência, verdadeira e absolutamente. E, para mim, é ir ainda mais longe. O contorno é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém, conservando as suas características.” (p. 41)

A ênfase posta no contorno mostra um importante tópico de problematização. Desde logo, o contorno não se confunde com a sombra, mas também não se revela como intenção que postule alienação ou transcendência; não sendo também marca de qualquer polarização, o contorno será o entre a total dependência que elide a diferença e a ingénua tentativa de rompimento com o referencial.

Ora, a presença do contorno faz sentir-se aqui em primeira instância no e com a visão – o tal “novo olhar sobre o que me rodeia”. Permanência no mundo, o contorno não equivalerá à circunferência, ou seja, ao limite que elide a aproximação, mas sim ao acentuar das possibilidades de (re)conhecimento. 

Porém, seria talvez precipitado encarar a visão como sentido único, ou sequer privilegiado, no que tange a prossecução do entendimento – além de que “olhar” e “ver” não se anulam. Do que se trata é da articulação de um caminho, a saber, a visão que se relaciona com “o que me rodeia”, com a “ausência” e com “o Menos”; e nenhum destes movimentos se sobrepõe aos demais. O contorno acrescenta: “é ainda mais” e “ é ir ainda mais longe”; ou talvez possamos dizer que nesta obra, o contorno é a instância que, longe de um poder judicativo, instaura o aproximar-distanciar.

Com efeito, o que “rodeia” poder-se-á materializar no tipo de espacialização que (se) disponibiliza; a “ausência” não redundará na incomunicabilidade, antes consistindo na abordagem que des-constrói o sujeito; finalmente, “o Menos” inaugura e abre. Heidegger, nomeadamente no ensaio A Origem da Obra de Arte, apresenta algumas conexões originais que se prestam a interessantes pontos de contacto com o que vamos dizendo.

Partindo da agressão (racional) relativamente à “Stimmung”, que no ensaio surge traduzida por “impressão ou disposição afectiva” (p. 18) - e note-se porventura o eco kantiano da “algemeine stimme” contida na Crítica da Faculdade do Juízo -, Heidegger diz-nos que o “aparecer das coisas” (p. 19), i.e., a sua “consistência”, deve muito à forma “como contorno” que é a tradução da “especificação” e do “entrelaçamento de forma e matéria” (p.  21). Aí, “contorno” ancora-se em larga medida no caminho que o filósofo trilha, o qual se insere na “coisidade da coisa”: a ideia de “contorno”, juntamente com a de “utensílio” ou “produto”, pretendem desvelar, em primeira linha, o teor misto da obra-de-arte como “espontaneidade” e “fabrico”. Daí decorre que o contorno em Lourdes Castro se associe mais intimamente com um outro conceito heideggeriano: “Esta fenda abarca e mantém em conjunto na sua separação (…) o traço-fenda é o conjunto unificante de sulcos do esboço e do traçado fundamental, do rasgão e do contorno” (p. 66). O traçar-fenda, o “traço-fenda”, consubstancializa, assim, um modo possível de inscrição que foge ao lugar-comum e ao “habitual”: é a “clareia” e o “encobrimento” que a obra-de-arte projecta, é um co-povoar. 

O contorno em Lourdes Castro e o traço-fenda em Heidegger não sequestram, antes convidam a instaurar, precisamente porque contrariam a dominação da resposta que se pretende definitiva. O que Heidegger veio a cunhar de “habitar poético”, e de arte como “ditado poético”, serão abordagens à finitude do homem, ao “ser-para-a-morte” que salvaguarda o “mistério” e que, por isso, não poderá cessar de questionar o como do aí-ser de e em cada um de nós. “Ver o enigma” (p. 85) é a resposta que o filósofo dá à pergunta “Em que medida arte” (p. 58): haverá arte se e quando o ser rejeitar a elipse para a qual a excessiva subjectividade pode resvalar, optando – ou tomando para si – o “círculo” que, para Heidegger, abre o indivíduo ao estar-no-mundo poiético. 

Também Lourdes Castro vê o enigma e toma para si o confronto com as forças de dissipação inerentes à vida; ser capaz de atingir a “ausência” é o “Menos”, a saber, o vestígio, e não o esquecimento. É que o contorno “conserva”, ou seja, vivifica, e o retratar feito pela artista não copia, antes celebra a identidade. Essa espécie de concentração, leia-se, o esforço de procura do húmus que desencadeia e apreende, joga concretamente com o visível, ou melhor, com o habitualmente visível – o retrato. 

Todavia, Lourdes Castro controverte o jogo: deseja o in-habitualmente visível, graças à sombra e especialmente ao contorno; atribui consistência, ou seja, dá a ver. O “entre” será o que Heidegger designa de “clarear e pôr-a-coberto” (p. 39), que na artista passa pelo clarear para pôr-a-coberto. O contorno participa no assinalar daquela relação entre os entes quese caracteriza pela comunhão atenta e que desapossa, porque como diz Lourdes Castro: “Alguns têm a mesma idade, mas nenhum tem o mesmo coração” (p. 47).