Não morras tão perto de mim

Não morras tão perto de mim. 
Tenho medo. Que me lembres. 
Que me faças lembrar, não do futuro, 
mas do passado.  

Nunca do futuro. Do passado. 
O que foi morre-te muito mais, 
morre diante de ti, como tu, 
perto de mim. Não morras, 
meu amor, não morras.  

Tinhas um ar lilás ou havia rosas. 
Choraste sobre o meu ombro. 
Mas não eras um rio.  
(Não havia sombra.)  

Talvez por isso, 
pensei, pensei eu, não quero, 
tu sabes, tu sempre soubeste, 
não quero que morras  
onde não possa morrer contigo.

Bastardo, de Victor Prado (recensão por Victor Gonçalves)

Leitura do belíssimo, intenso, subtil e inovador, livro de Victor Prado, Bastardo (Urutau, 2016).

A vocação da poesia é a de agitar a linguagem e o sentido, quebrar a esclerose dos hábitos de pensamento, quase dizer o indizível, abrir a porta ao que está para emergir, e produzir uniões à sua volta. Mas também viajar entre o superficial e o profundo. E isto Victor Prado fá-lo muito bem, surpreende a vida quotidiana no seu aparecimento, desarmada, e captura com palavras algumas das raízes que a ligam a qualquer coisa de imutável, a um sentido para lá da própria língua que agora a traz à presença. Victor Prado aponta gestos originários que desenham parte do nosso mundo, gestos toscos, porque nascentes, difíceis de fixar pelas ferramentas do poeta, que luta constantemente para apanhar fluxos de vida e plasmá-los em poemas, que terão também de ser fluxos poéticos. Às vezes confessa os impasses que se levantam, outras vezes desiste mesmo, sublimando-se numa meta-poesia que compensa a dificuldade de poetar. Esta honestidade é o verdadeiro caminho para os mais altos cumes da Arte, só quem se rasga de desespero, quem fracassa no limiar da vitória, pode subir a “6 mil pés de altura”. Por isso, não conseguimos evitar um frisson quando lemos Bastardo, não como um soluço, meio caprichoso ou meio snob, mas como um safanão que nos retira a esperança de tudo entrar nos eixos mais tarde ou mais cedo.

Enquanto leitor, procurei os meus próprios ritos de contemplação, em filigrana, sabendo que a poesia cresce sobre as ruínas dos afectos e dos sentidos que oleiam a normalidade. A poesia de Victor Prado faz guinchar as peças das engrenagens intersubjectivas, quebra consensos comunitários, apunhala as subjectividades que a abraçam à espera de consolo. A sua poesia é uma casca de banana debaixo de sapatos bem engraxados. No mínimo, deslizamos e quebramos a perna que nos ajudava, sem o sabermos, a ir geometricamente de um lado para o outro, daquele lado para aquele outro, peripatéticos assoberbados por tantas coisas inúteis.

Seguem-se algumas das inúmeras portas de entrada para Bastardo, há outras, talvez até mais importantes ou luminosas.

Renovação da língua, experimentação extrema do que se pode dizer, com o corpo. Muitas vezes o corpo, mais espinosista do que cartesiano, deste Victor.

Sexta-feira  

Eu estou nuvem pontiaguda

Cada ponta relampeja em mim

e trovoa-me

Cada relâmpago de mim

te guia pela escuridão

O dia é duro e estático,

mas

o tempo é borrachudo

entre os dentes

Teu corpo é fluido em minhas mãos.

Actualização linguística ancorada no português-brasileiro que habita nas ruas, praças e cafés, língua de conversa, às vezes fiada, íntima e pública, mais performativa do que semântica (“Onde está a palavra quando / fingimos a nós?”), produtor de sentido porque nos sacode mais do que nos guia numa linha clara de significações (“Misturando com o cheiro de querer fazer / algo inovador de transcender a linguagem / e conseguir se comunicar”, “Epifania”). O poeta elege uma estética da força em vez de uma do belo, tudo faz para reactivar a sensibilidade, envolta em ritmo e vibração. Por isso, prefere desaprender a aprender (a vertigem da primeira é substancialmente superior à da segunda), entrando novamente no mundo incógnito (mesmo desejando por vezes apanhar solidez e vida harmoniosa com as mãos), talvez só assim alcance a tão procurada “Narrativa surrealista de acontecimentos reais”. E para começar, recusa os cortes semânticos das palavras, junta-as para ver o que dizem de novo: “e apareço a ti com olhosboca, ouvidosboca / e um coraçãoestômago” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Arquitetura de Percepção 2

[…]

O mundo incógnito constrói-se

através das insignificâncias

Eu desaprendi

a ser tantos

Ela aprendeu-me pela prática.

Mas o excesso cansa, conspurca, Victor Prado tem a noção exacta dos elementos linguísticos necessários aos jogos de sentido que quer compor, quase não há palavras ou sílabas a mais, a sintaxe é sóbria e respeita a oralidade, o livro tem a amplitude certa, mesmo quando por momentos atinge a incandescência. Compreende-se, pois, que diga:

 Caleidoscópio

[…]

A moça no jornal diz tantas

palavras desnecessárias

que me parece pornografia.

[…]

Leia-se também a magnífica dança de equívocos, provocada pela surdez e outras barreiras comunicacionais, no poema “Visita”, onde múltiplos significados bailam a partir do capricho soberano de cada subjectividade, de cada sujeito evanescente por falta de exterior (blindar o íntimo chama a loucura).

Victor Prado assegura uma tensão criativa entre o exterior e o interior, ora analisando, ora reflectindo. E olhando-se para fora com os demónios do interior acordados baralha-se a geometria da identidade, já que tudo é fundamentalmente pulsional, ondas de forças fulgurantes:

Precipitação

[…]

Os pássaros fizeram ninhos nos prédios

de frente e sempre há um gosto salgado

quando engulo minha saliva.

Aprecia-se o paradoxo vital (“Às salinas é inevitável / que se formem para / estancar feridas.”), porque o amor e o desejo, talvez menos deleuziano do que pretende Carla Carbatti (óptima prefaciadora) explodem, apesar de confinados em possíveis já destinados, aqui, contra outras visões suas, Victor Prado afirma-se “unipolar”.

Confissão

[…]

meu mundo não é globalizado

ele é unipolar.

e curtas infinitas são as estradas todas que levam a você

[…]

No mesmo lugar, fala dessa eterna laceração que o amor, e a falta dele, induz nos pobres implorantes que se querem unir, com o exclusivo de uma força brusca e incontrolável, frustrados pelo poder da gravitação universal:

[…]

desmantela-me e esfumaceia as coisas

teu estado ausente.

 

sou resquício de algo que era.

sem ti, rapidamente, me implodo.

Por isso, diz esse apaixonado que julgamos ser Victor Prado: “Quero-te.” Recusando os códigos de pontuação que enfatizam palavras para preservar a ignorância sobre se este querer é tão amplo que tudo fica suspenso à espera de uma resposta, ou se é já a última etapa de um desejo derrotado pela indiferença do objecto amado. Entramos, pois, no trágico civilizado, onde ninguém morre por interromper, ou ser interrompido, a linha que vai da Terra ao Céu, do Eu ao Tu, do Dentro ao Fora, hoje o trágico só baralha a velha cisão entre bem e mal. Este “Quero-te” é uma descarga de consciência, uma catarse a priori, impossível de levar à cena, mas não para espectadores, esgota-se em si mesmo, uma autofagia em lume brando. Isto porque “a vida não é mais do que poderia ser.”

Ao mesmo tempo, Victor Prado cambaleia e dá um rim (meia esperança de vida, note-se) por visões assentes nas palavras “vertigem”, “inquietação”, “profusão”, “heresia”, “abertura”, “choque”, “acaso”, “grito”... porque, di-lo logo a seguir em “Profusão de Cores”, por vezes “os amores são reais / e o corpo não está submerso / dentro de si mesmo / e essas vidas podem ser vividas / sem medo da Inquisição”, isto leva a que “a boca perde o medo de falar / os olhos de olhar / o peito de bater / a cabeça de pensar”. Multiplicidade selvagem, indomável, que cura aquilo que a sensatez e o medo tinham lenta e suavemente apodrecido, para que haja “encontros” entre “Pontos vagos / desconexos”. Daí a vontade de partir e recomeçar:

Domingo

[…]

De deixar a fila

Sair do mercado

            De recomeçar tudo

            em outro lugar

            em outro tempo.

de novo.

Mesmo quando “o destino da folha é o chão” (“Augusto”).

Há uma delicada atenção ao tricô da vida quotidiana, gestos insignificantes cheios de biografia, completos, mesmo que banais. Talvez não seja uma “beleza líquida”, mas têm a força de serem o que são. Trata-se de infiltrar a poesia com todo o tipo de pulsões do dia-a-dia, sem conjurar nada: “Não há como ajudar /alguém a carregar / uma metáfora viva / que resida em seu sangue.” (“Caleidoscópio”) Victor Prado transforma facilmente sensações banais em sensações poéticas.

Domingo 2

[…]

O senhor pesa suas batatas

            e vai embora

            (a fila aumenta)

Eu sou o próximo.

Mesmo se ela que o “olhou com olhos d’água / por um ínfimo de eternidade” lhe diz, depois de aguentar as investidas de um Casanova inoportuno, “Prefiro sonhos a concreto.” (lembramo-nos de Bernardo Soares, dos seus sonhos mais completos do que a realidade). Mas, claro, o “mercado” é eficiente, “Ele está pouco se fodendo / pros teus olhos castanhos, / menina.”

Por tudo perpassa o tempo (em todas as fissuras e continuidades do espaço), esse velho desmancha prazeres, tão necessário quanto escusado. Podemos viver a vida a arranjar calços para todas as peças assimétricas, querendo nivelar até à perfeição o que prefere dissensos e outras guerrilhas, mas:

Travessa

[…]

Tu tens alimentado um monstro:

            o tempo.

E ele engolirá o teu clamor

e a todos nós, no mais inoportuno

dos momentos.

Victor Prado convoca também uma geopolítica poética, forma de denunciar injustiças, presentes desde logo nos discursos mais escorreitos e “sérios”. Será uma poesia engajada? Pode a arte maior da palavra curar as intoxicações do mundo? Pode um “Abraço ao Terror” substituir o “odiar quem odeia” (velha dialéctica estéril), envolver de bons afectos e ritos antigos quem se extremou tanto que quer voar despedaçadamente até ao transcendente mortífero? Sabendo-se que é preciso viver as derrotas como um privilégio irrepetível, o autor afasta com as mãos em sangue “esses bruscos sopros / do descontentamento” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Os leitores devem mastigar e engolir os poemas, é porventura no estômago que melhor se faz uma hermenêutica adequada à escrita de Victor Prado. Como descodifica os sistemas-língua dominantes, não se espere poder caçar facilmente o sentido com os gestos gastos da leitura compreensiva, “A construção dos significados / dos / sentidos /azul e / eles / nada além / de reflexos” (“Não-Sei-Onde 3”). E há muitas palavras indigestas, algumas provocam vómitos, aliás o poeta também se vê compelido a essa expulsão das entranhas, mais radical ainda, já que ele se quer vomitar a si próprio:

Mal-Estar 2

Eu quero vomitar-me

            vomitar-te de mim

            vomitar tudo de mim

[…]

Tanto mais que “Nada disso é teórico e é difícil não se engasgar.” (“Constante”). E mesmo o leitor Victor Prado, quando se põe em modo autofágico diz: “Não gosto nem de reler meus textos; Bate uma / vontade de rasgar a folha” (“Do cansaço I”).

“Não consigo alcançar o silêncio” (“Do cansaço II”), refere o poeta, como se procurasse a linguagem adâmica, quase não-linguagem, no preciso momento do acordar linguístico, primeiro movimento para a formação de fonemas e grafemas, desenho inicial do pré-verbal que descreve tudo sem se fragmentar ainda nas particularidades linguísticas, o livro do mundo inteiro numa arqui-escritura sem identidade, a plenitude do sentido. Trata-se de enunciar quase fora da enunciação, sem mediações, comunicação directa, não como em Alberto Caeiro entre o humano e a natureza, mas entre o poeta e a esplendor das coisas ainda incodificadas, sem cultura. Noutros casos, uma rede subterrânea cria ligações significativas capazes de constituir um discurso poético perfeitamente inteligível. É também por isso, creio, que Victor Prado nos confessa a sua dificuldade em escrever: “Não consigo escrever. / Não mais como / antes. Como eu costumava fazer.” (“Do cansaço I”). Esta revelação negativa, inscrita mais ou menos sanguinamente em todos os poetas, assinala que a quantidade pletórica de palavras criou uma cacofonia insuperável, o uso despudorado da linguagem fê-la funcionar ao contrário. O esclarecimento só pode agora estar no silêncio.

Apesar disto, Victor Prado é um artífice das palavras, da sua forja saem exemplares únicos, belos, mesmo quando foram fabricados para distorcer o apolíneo, em geral criteriosamente precisos, apesar da sua força ampla e destemida de esboços livres. Ser forjador de palavras responsabiliza-o por amar um exército de leitores, que ele não quer submissos. É isso que se cumpre exemplarmente em Bastardo

António Marinheiro

António Marinheiro sempre fôra António, mas não consta que em momento algum houvesse sido marinheiro. Assim era conhecido e já nem o próprio se recordava de onde saíra tal epíteto. Gostava de mergulhar no mar de quando em vez, nem sequer muitas vezes, de sentir o corpo envolto em água fria, resistir ao esmagamento que ela provocava e regressar são e salvo à tona como um verdadeiro herói. E isto foi o máximo de contacto que manteve com o mar. Também numa ou noutra ocasião cruzou o rio de cacilheiro mas enjoou em todas elas e de nenhuma guardou boa lembrança. Contudo, gostava de ser tratado assim, António o Marinheiro.

As manhãs, passava-as tentando recordar as façanhas da infância e juventude, mas nada havia para recordar e portanto criava façanhas na sua cabeça, façanhas medonhas, por vezes, de tão inventadas, sendo que há hora do almoço já o seu orgulho transbordava do corpo de tão imenso. A fraca figura ajudava a transbordar mais rapidamente.

Num dia de Maio anormalmente chuvoso, decidira comer uma refeição decente pois recordava-se do prazer que o havia inundado das poucas vezes em que isso sucedera. Pensou no restaurante do velho amigo Alberto que, em certa ocasião, não demasiado longínqua, aparentemente fôra simpático para si: além duma boa refeição ainda aproveitou um casaco um pouco gasto e de mangas demasiado curtas, mas que em si assentava que era um primor. Só precisava agora de recuperar a coragem de outrora já que tudo o resto havia de sobra, incluindo a fome. Arrastou os pés até à porta do restaurante cujo nome “A Caravela” lhe soava a ironia, deteve-se alguns instantes até que a dita coragem o pegou pela mão e o fez entrar. O ruído era muito, não que o da rua a que estava habituado fosse menor, mas ali estava mais concentrado e distraía-o do seu propósito. As mesas estavam quase todas ocupadas, e eram imensas, apenas uma situada ao fundo da sala junto a uma das janelas se encontrava vazia. Os empregados moviam-se de uma tal maneira urgente e disparatada que acabava por se tornar divertido observá-los.

Ah!, Alberto acabava de sair da copa em tom apressado. António Marinheiro tentou fazer-se notar levantando a mão e agitando-a no ar freneticamente, mas acabou por não ser visto apesar de Alberto, segundo lhe pareceu, ter olhado para si momentaneamente, foi essa a sensação com que ficou. Ao invés, dirigiu-se a dois cavalheiros que haviam entrado logo a seguir. Cumprimentou-os com reverência e sentou-os na mesa vazia junto à janela. Foi uma decisão muito sensata e compreensível, pensou, pois os fatos que vestiam eram realmente bonitos e limpos. Não haver mais lugares sentados não foi caso para o impedir de voltar a levantar mão na direcção do amigo Alberto e acená-la mais uma vez, mas a convicção era de facto inferior. Lá se agitava no ar a sua mãozinha encardida mas não havia maneira de ser visto até que acabou por desistir. Baixou-a pesarosamente e foi quando um dos empregados, pelo menos vestia-se como um empregado, o empurrou porta fora com maus modos.

António o Marinheiro ficou sem saber como agir. Já não chovia; o sol reinava agora num céu completo de azul como se as nuvens se houvessem esgotado. Errou algum tempo pela cidade até que uma forte dor o obrigou a sentar-se no chão encostado à parede dum prédio. Colocou as mãos sobre o peito que subia e descia cada vez mais pesada e dolorosamente. O sol aquecia-lhe o estreito rosto moreno. Nos seus últimos instantes recordou-se sorrindo das alegrias de infância, assim como das façanhas de juventude, ainda que não houvesse nenhumas para recordar.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§28 nas nuvens)

Alfred Stieglitz, 1925

(cont.)

A inspectora considerava-se uma nostálgica, vivia a utopia e a esperança ao contrário. Como o passado mítico remete sempre para uma ordem harmoniosa, tendia, por vingança contra o presente, a castigar severamente os incumpridores da educação, professores falhados, indolentes, maltrapilhos, estúpidos, no máximo estultos... Formavam uma galaria de informes que deviam ser expulsos do ensino. Frutos podres da decadência actual, sem valores fortes e precisos. Por isso, apesar da cordialidade, aprendida no convento mais do que no mundo secular, com que tratou Lourenço, soube desde o início que lhe daria um castigo pesado. Tanto mais que ele tivera todos os deuses do seu lado para formar uma referência ética na classe dos professores, banir os maus olhados e o desdém com que metade da população vê, impulsivamente, aqueles que ensinam e, sobretudo, avaliam, às vezes arbitrariamente é verdade, gerações de neófitos sem vocação para anos de aplicação monótona a troco, muitas vezes, de um emprego mal pago e com pouco sentido. Lourenço comentou comigo logo no início que a inspectora tinha uma vontade grande de parar o tempo, parecia-lhe ver nela a insegurança dos que não sabem envelhecer, dos que ao olhar para diante antecipam apenas rugas, sofrimento e morte. Tanto mais que uma pele de Branca de Neve indicava que veria no bronzeado mais uma futilidade da nossa época. E como se sabe, bronzear é um dos principais passatempos sérios dos portugueses. Era, portanto, contra o Portugal presente que a inspectora agia. E Lourenço fora uma amostra do país, com a sua falta de rigor e coerência assustadoras na narrativa de heroísmo que, voluntária ou involuntariamente, constituiu.

– Dois meses suspenso sem ordenado! Dois meses? Injusto, totalmente injusto, arbitrário, infundado. – Lourenço continuou a desfiar acelerada e ininterruptamente um conjunto de asneiras que não pertenciam ao seu vocabulário. Pergunto-me onde terá ele aprendido esse jargão de taberna, e por que razão usá-lo agora. Nada havia a fazer, e não me pareceu útil, disse-lhe mais tarde, destilar toda a sua frustração ao pé da Directora, que devia estar mais satisfeita do que um leão depois de comer a presa.

Tudo em vão. Foi para casa, na verdade um quarto arrendado numa casa velha da Duque de Loulé, escadas sem luz, soalho com buracos, teto com várias marcas de inundações, e uma senhoria que “queria companhia” enquanto via a novela da noite. Lourenço feito refém das circunstâncias que ajudou a criar. Daí que uma energia negativa ganhava cada vez mais o seu ser. Fui lá um dia com o Joaquim e saímos deprimidos. Nós que compreendemos muito bem o niilismo, assustamo-nos com o poço sem fundo onde Lourenço tinha caído.

[fico agora na posição de narrador omnisciente, mas compreendo que duvidem do que vou dizer]

Por seu turno, como quase sempre depois de castigar, a inspectora sentia-se harmoniosa, sensual, quase bela. Mas desta vez havia uma pequena insegurança que a consumia. Continuava a amar antes de tudo as nuvens de Stieglitz e os céus de Turner, era lá em Cima que estava a sua ambição, agora sem a presença de deuses parecidos connosco. Um amor sem condições, como, por curtíssimos períodos, tinha tido por Deus, não o do Universo desencarnado, antes pelo seu filho, pregado na cruz, abdominais exemplares e a beleza facial triste, apropriada à dor sobre-humana. O belo símbolo do bem. Apesar desta espiritualidade, permanecia nela o prazer eléctrico que vinha do poder que tinha por ser inspectora, sabia-lhe bem infligir um certo medo. Mas o processo de Lourenço tinha mudado qualquer coisa nela, às vezes parecia ver parcelas da sua figura desenhadas nas nuvens. Nada de muito claro, pequenos indícios que provocavam micro-inquietações. Perguntava-se, talvez pela primeira vez, se teria sido justa, se aquele colega, desfeito pela incapacidade de corresponder às exigências do heroísmo, conseguiria aguentar mais esta desfeita. Além do mais, sabia que tinha dado um enorme prazer à parvinha da Directora, cheia de si dentro da maior das vacuidades.

Decidiu, por isso, ir a casa de Lourenço.

Animais políticos numa sexta-feira à tarde: Algumas notas

1.    Há uns meses que ando a ler o jornal sem pagar. Ao fim do dia o rapaz na estação de comboio simplesmente não quer saber. Depois das quatro da tarde os jornais são apenas mais uma das tarefas que o esperam antes de fechar o estabelecimento, que, como todos os cafés de Inglaterra, fecha cedo, deixando a estação aos cães, aos últimos passageiros do dia e à indolência de carruagens que se alongam por estações cada vez mais desertas. É na fantasmagoria das estações de comboio deste país que melhor se entende o amor que une Inglaterra a um dos géneros literários nacionais, os romances policiais.

2.     O verão em Inglaterra pode ser mais ou menos insuportável, mas sobretudo mais ou menos inexistente. A meteorologia entra no mais completo descontrolo, como um barómetro avariado. A ilha simplesmente não foi desenhada para suportar o calor, são precisos vários dias de chuva para que se produza um dia quente, a que imediatamente sucede, claro, mais água. Foi Karl Ove Knausgaard quem escreveu, no primeiro volume de A Minha Luta, que os humores humanos são como a meteorologia, estão lá sempre, não é possível livrarmo-nos deles, a que se devia acrescentar que há uma ligação indelével entre humor e meteorologia, que quanto mais solar ou mais cinzento o tempo, assim de vez em quando o temperamento.  

3.     O humor é a atmosfera da empatia. Actos básicos de gentileza serão repartidos pelos dias segundo as flutuações desta moeda. Virtude (palavra que talvez só exista em sentido moral) é controlar o humor. Ausência de controlo resulta ou em injustiça ou em poesia ao género da do neo-romantismo, ao gosto de um Feliciano Castilho ou Bulhão Pato. Sabiam-no os estóicos e os epicuristas. Dois sistemas filosóficos, de resto, para os quais nunca tive muita paciência, sobretudo por me parecer que estão desenhados para contradizer os impulsos vitais mais básicos, que alguma coisa neles traduz avant la lettre a lógica de pecado e punição do catolicismo, e mesmo que isto não seja certo, T.S. Eliot tinha razão quando escreveu que o passado é constantemente alterado pelo presente, a nossa leitura dele pelo menos. Assim a minha embirração com os estóicos, olhando para eles depois de Cristo. Manter o nosso humor sobre controlo, sim, mas até isso com moderação.

4.     O moderado rapaz da banca do jornal, no entanto, tem um trabalho difícil e de um modo geral pouco apreciado. Por exemplo, não é raro trabalhar turnos invulgarmente longos, desde as seis da manhã até às seis tarde. Não é fácil aturar os transeuntes desta estação, dos adolescentes de uniforme aos ocasionais skinheads da English Defense League, consumidores de cerveja às 7 da manhã. O rapaz da banca de jornais, no entanto, parecendo que não, a sua vai tornar-se para mim uma dessas presenças silenciosas com quem se troca poucas palavras de cada vez, e que no entanto se sabe que, quando olharmos para trás, essa mesma presença há-de voltar como uma espécie de símbolo de toda uma época da nossa vida. Afinal, ele tem estado aqui desde o primeiro dia.

5.     O rapaz da banca do jornal reparte pequenos actos de gentileza pelos dias, de que deixar os passageiros ler os jornais que sobram ao fim do dia talvez seja apenas uma manifestação ínfima. A rotina das cidades condensa isto: há estranhos que se nos vão tornando cada vez mais familiares. Quando um de nós falhar este breve encontro diário, o outro notará essa ausência. O que permanecer há-de atentar na instabilidade introduzida pela ausência do outro.

6.     O futuro são as pessoas que comparecem às suas rotinas diárias. Nem tudo numa rotina é anestesia da repetição. Tudo o que se repete pode deixar-nos em guarda para a repetição excessiva. A banalidade de alguns gestos prepara o dia seguinte, traz o capítulo seguinte. O tecido das sociedades em que vivemos, o nosso conhecimento dos outros, assentam no reconhecimento prévio desse guião. A maior parte dos trabalhos que nos rodeiam são mais ou menos invisíveis.

7.     Parte da minha rotina implica esta estação de comboio e, assim, encarar mais ou menos diariamente com as primeiras páginas dos tabloids britânicos, o que garante que raramente me falta uma dose diária de indignação. Todos os jornais na Grã-Bretanha, do The Guardian ao Daily Mirror são abertamente facciosos.

8.     Talvez nada tenha clarificado este ponto para lá de qualquer dúvida como o período que antecedeu o referendo que ditou a vitória do Leave. As intenções de voto podiam ser facilmente previstas pelo jornal debaixo do braço. Boa parte do que se confunde ou não se confunde com jornalismo neste país serviu para ditar que esta votação não foi produto de uma reflexão sobre factos, mas sobre emoções, com a raiva e o descontentamento a explicar que se pudessem encontrar nas caixas de comentários de jornais pérolas como: “I’m voting leave: Muslims out!” Ou o meu prazer culpado de ler as crónicas da Marina Hyde no The Guardian, com a certeza de que aquela que esta colunista dedica ao último dia de Cameron no Parlamento foi escrita para mim, nemesis por outra manhã numa página de Orwell.

9.     Não que não haja margens para a surpresa, como encarar com a primeira página do Daily Mirror no dia anterior ao referendo, e ver a versão mais populista de um slogan a favor do Remain que nenhum partido de esquerda neste país se atreveu a cifrar: for your jobs, your NHS, for your children. Quoque tu, Daily Mirror?

10.  Nada me deixou entender tão amplamente as reservas que Platão mantém em relação aos poetas na República como a actuação dos políticos pro-Brexit nesta campanha, no sentido em que bons autores de ficção, poetas do calibre de um Farage e de um Boris Johnson, serão sempre bons a manipular as emoções dos cidadãos. É o grande ponto fraco da democracia. Uma explicação ética dos factos, segundo Aristóteles, bastaria para compensar esta limitação. Esta campanha demonstrou que basta as falsas opiniões circularem livremente, sem um contraditório que as prenda aos factos, para um milénio de fé na capacidade dos humanos para o bem ruir como um castelo de cartas. Penso que não deve haver teoria moral que sobreviva a um descontentamento podre em que um populista possa tocar com um dedo. Os mais pessimistas entretém comparações com a Europa dos anos 30.  

11.  Há um elo entre a banalização de tudo e a hegemonia da opinião sem factos que explica a ascensão (e esperamos que a queda) de um Donald Trump, de uma Marine Le Pen, de um Boris Johnson ou de um Nigel Farage. A opinião e o oportunismo dependem ambas de curtos intervalos de tempo e servem para alimentar o barulho que para os mais manipuláveis (ou os mais dispostos a serem manipulados) limita todo e qualquer espaço que pudesse ser dedicado a uma séria reflexão. A falta de tempo que nos instrumentaliza em casa e no trabalho é também parte deste problema. Quanto menos tempo mais raiva e menos reflexão, mais expostos nos tornamos ao populismo e ao oportunismo.

12.  É possível entender o descontentamento que a União Europeia provoca e não é algo que vem de hoje. Pode-se invocar a crise dos refugiados, ou recuando um pouco mais, a fraca resposta à ocupação da Crimeia, num país que afinal se manifestou pro-UE, ou a austeridade, ou muito antes disso, invocar lugares agora mais distantes, algures na Sérvia e na Jugoslávia. Surpreendentemente, nenhum destes argumentos ditou o resultado desta campanha, na qual de resto não se conduziu uma reflexão atenta acerca dos muitos problemas da UE hoje, uma que explicasse para lá de qualquer dúvida porque é que o caminho social e político aberto pelo Brexit seria tão mais preferível (sabemos agora que se ignora mais ou menos totalmente o que é este caminho ao certo). Onde as sondagens se viraram indecisamente para o não foi quando a emigração se tornou uma questão no referendo e, ligado a esta, o falso argumento da soberania. Mas a Inglaterra mantém-se um país soberano, com um parlamento com o poder de chumbar ou aprovar leis, e, até ver, o poder de controlar a sua emigração era mais forte enquanto estado-membro. É bastante improvável que a Inglaterra mantenha acesso ao mercado livre da União Europeia sem aceitar a livre circulação de pessoas. O último encontro entre May e Hollande parece confirmar esta ideia. Aí a grande mentira do Leave. Quando ouvimos Marine Le Pen em França descrever isto como uma vitória da democracia (uma vitória de 52% aliena apenas 48% da população de um país), sabemos que o populismo bateu tudo o resto aos pontos. 

13.  A banalização de tudo, que está ligada a esse furor da opinião que não questiona os factos, tem outro shortcoming, talvez mais preocupante do que os enumerados acima: é que arrasta a nossa empatia pela lama, torna-nos menos dispostos à gentileza sem a qual o mundo seguirá sendo a selva onde os fascistas de hoje, alguém como Trump, Le Pen, ou Farage, serão os últimos guardas da fronteira para lá da qual jaz tudo o que nos é alheio e que por isso deve ser exterminado ou deixado para morrer nos muros. É o movimento de nos virarmos para dentro, de irmos sendo cada vez menos cosmopolitas, que deixa adivinhar o fantasma do nacionalismo a pairar sobre a bandeira do patriotismo. Os patriotas que orquestraram o Brexit, com falsas promessas de mais dinheiro para o NHS, de resto, reconheceram todos a necessidade de correr de volta ao lar, abandonando a cena apressadamente  

14.  Na sexta-feira, 15 de Julho, encaminhando-me para a banca de jornais, paro e atento na capa de um dos tabloids. É tão conspícuo porque a imagem ocupa a capa toda. A princípio parece ser a estreia do filme da semana, um qualquer melodrama hollywoodesco, mas é uma fotografia tirada no passeio em Nice, na noite anterior, que atinge os transeuntes sem aviso. Vê-se um jovem casal estirado no pavimento, só um deles vivo. Uma imagem tirada de um pesadelo atirada para a banalidade sórdida de fazer vender tantos jornais quanto possível.

15.  Os últimos passageiros abrandam por instantes e seguem na indolência vagamente contente de sexta-feira à tarde para os vagões que os levarão às suas casas. Levinas escreveu, algures em Ética e Infinito: Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

 

Oxford, 19 de Julho de 2016