Querido ministro dos desportos,

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Monty Python, The Philosophers' Football Match

Lisboa, 20 de Março de 2017

 

            — Havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, umas atrás das outras, ou só uma, sim, era só uma, e depois todos os outros corriam, corriam muito depressa, o mais depressa que podiam, não tudo de uma vez, porque este animal tinha de parar, como todos, e depois havia dois blocos, duas redes, e diziam, uma é minha a outra é tua, então eu tenho de enrolar tudo até à minha, não, diziam, até à tua...

— à tua?

— Sim, à tua, só assim poderás deixar de correr e começar aos saltos, mas se mostrares o umbigo vem alguém com cores...

— Com cores?

— Sim, alguns chamam amarelo, mas se já tiveres um dão-te cabo da cabeça, não podes mais rolar...rrrolar... fazer rolar, isto é, sim, se já tiveres um nunca mais andas atrás de coisas redondas, pelo menos durante aquele tempo...

— Tempo?

— Sim, minutos, segundos, um dois três, percebes, é como números só que estão aqui...

— O quê?

— sim, o tempo são números que se repetem só que reais

— os números não são reais?

— sim, mas só se forem tempo

— mas, e o tipo, o que lhe aconteceu?

— não viu cor nenhuma, então, por inerência, continuou a andar atrás de coisas redondas.

— ai sim?

— sim, claro que sim.

— mas porquê é que ele andava tão obcecado com isso?

— Nós somos animais, amigo, não sabes?

— Ai somos?

— Sim, claro que somos, temos de andar sempre atrás de qualquer coisa...

— Ai sim?

— Claro que sim, temos de nos manter vivos, e então alguns de nós para se sentirem vivos têm muito de ver os outros a estar vivos e a correr atrás de uma coisa redonda...

— Só um?

— Não, tens razão, vários, muitíssimos, mais do que um, menos do que doze

— doze?

— Sim, parece que é um número interessante

— Doze tempos são interessantes?

— Pelos vistos, não te sei responder a tudo, neste caso posso dizer-te: havia alguém que andava atrás de coisas redondas, muito redondas, que rolavam, e que bem que rolavam, e quando chegava perto, pum, lá vai disto, a coisa redonda eleva-se, elevava-se, elevaváva-se, e pum, ele dizia, toma, e saltava, não mais do que um animal salta, mas mais do que o normal, saltava, e pum, dizia, toma lá, toma lá, ouve lá

— mas toma o quê?

— perguntas bem, julgo que se pode traduzir por ‘toma lá esta coisa (neutro) que era minha e agora está dentro da tua’

— da tua?

— sim, de tua, da tua, de certa forma há algo nisto tudo que me soa estranho...

— Duvidaste?

— por momentos, sim, perdi-me, já não sei quem falava...

— era eu?...

— claro, desculpa, ele foi, ele foi muito, fez coisas com a coisa redonda várias vezes, para aí mil números, dez mil, passou muito tempo,

— então?,

— sim, para este animal mil é muito tempo

— e dois mil?

— dois mil também

— e cem mil?

— sim, ele talvez tenha rolado a coisa cem mil vezes até lá...

— e um milhão?

— já não sei

— e números e tempos sem acabarem?...

— ó pá, não sei, não me estejas sempre a interromper, assim é cansativo, sei lá, pôs marcas muitas vezes

— marcou?

— sim, é isso, pôs marcas muitas vezes, tantas vezes que disseram, este aqui rola muita bem, marca muito bem, faz tudo muito bem, e olha vai lá daquela, dão-lhe muitos números

— muitos números, como assim, muitos dez, por exemplo?

— sim, dão-lhe muitos números de dez

— como assim, dinheiro, coisas de dez?

— sim, isso mesmo, dão-lhe milhões de números de dez...

— mas porquê? Dar é um verbo  tão generoso...

— Ora, não te acabei de dizer, porque rolava muito bem coisas redondas

— mas tu não és capaz?

— sim, mas tens de fazer rolar muito bem

— ai sim, e como é que sabes?

— olha, sei lá

— ... e se rolares muito bem e ninguém te estiver a ver?

— ora que pergunta...

— ... e se fores o melhor a rolar a coisa e nunca o conseguiste fazer porque morreste?

— ah, entendo, acto-potência

— claro, claro que sim

— bem finalmente percebeste, acto-potência, isto aqui é acto... quer dizer, toma, lá vai disto, já lá mora, acasalou com as redes, fez-se amor no rectângulo

— isto também tem a ver com geometria?

— não te falei em números?

— sim

— então, claro que sim, números, formas, tempo, vai dar tudo ao mesmo

— então o tipo era um matemático

— sim, pode dizer-se que sim

— e porque se haveria de dizer que não?

— porque na realidade ele só fazia coisas redondas rolar

— mas os matemáticos não fazem muito mais do que isso?

— então, mas já não concluímos que ele era matemático?

— sim

— então deixa-me continuar

— ah sim, mas então quando é que tudo começou?

— não sei

— não foi quando ele começou a chutar

— chutar?

— sim, deixa lá, lembrei-me disso para descrever o que acabaste de dizer

— sim, gostei muito, chutar, sim, foi quando ele acabou de chutar

— ele já não chuta?

— está quase a deixar, depois, vê, sabes, há coisas que voam e aterram, isto é, são coisas muito grandes, como aves muito grandes, aviões, aviãozões

— é pá, que pássaros tão grandes

— sim, mas estes não são animais, são feitos de metal

— e pá! então como voam

— matemática, amigo, matemática

— devia ter suspeitado

— pois devias, mas desde o princípio não me deixas falar

— qual princípio

— já sei, devia evitar estas expressões, continuando, está quase a deixar de fazer esse verbo que inventaste

— chutar

— esse mesmo, está quase a deixar de o fazer e então disseram: lembras-te há muito tempo do sítio de onde saíste da vagina da tua mãe, claro que ninguém se lembra, é só uma forma delicada de fazer alguém recordar-se do sítio onde ainda sem saber estava a viver

— pois, já tinha sentido que às vezes não sabemos bem o que estamos aqui a fazer, basta olhar nos olhos de um animal muito, muito pequenino

— ah, és tão perspicaz, parece que é o mesmo autor que está a escrever isto

— que disparate

— olha, às vezes quando menos acreditas, tumba, já foste, estás a ser escrito e vives só na imaginação de alguém

— tenho medo disso

— não tenhas medo, crê somente, mas olha, o outro entretanto já não começava a rolar a coisa redonda como antes

— coitado, o que lhe aconteceu

— o tempo

— ai sim? e depois, o que seria dele

— ninguém sabe

— ninguém? então não morreu também?

— bom, quer-se dizer, toda a gente sabe, há-de morrer

— que pena!

— tens pena dele?

— tenho pena de nós

— eu também... mas quando começaram a aterrar grandes aves todos disseram: ai que bem que ele chutava!

— porquê?

— porque o sítio onde ele nasceu e onde as grandes aves aterravam era o mesmo

— que alegria deve ter sido para ele

— sim, mas depois morreu...

— oh! que pena!

— pois, é uma pena. Mas chutava muito bem.

 

Com os melhores cumprimentos

Pedro Braga Falcão

"Leis" da narração

Na revista francesa de divulgação filosófica Philosophie Magazine, Fevereiro de 2017, John Truby considera que a Odisseia e Breaking Bad obedecem a regras estéticas atemporais, e por isso semelhantes, já presentes, por exemplo, em Aristóteles, Hegel e Nietzsche. O autor complexifica, porém, as velhas leis aristotélicas (unidades da acção, do tempo e do lugar, servindo a mimésis de uma acção edificante que suscitando piedade e medo desenvolve processos catárticos), considera necessárias vinte e duas etapas para se escrever uma boa história (cf. Anatomie du scénario, 2017). Etapas que podem ser resumidas assim: “haver uma linha clara de desejo, a de um herói prosseguindo um objectivo definido, que para o atingir se confronta a um conjunto de situações, a que chamamos intriga, e que são principalmente testes morais, aos quais responde bem ou mal, até que surge a derradeira tomada de consciência, marcando a sua transformação íntima, e, idealmente, oferecendo ao público um momento de revelação profunda.” Desta forma, uma boa personagem incarna simultaneamente problemas psicológicos e morais, as suas fragilidades são atacadas por adversários, até ao ponto de ruptura capaz de revitalizar e decidir a vitória do protagonista. Daqui pode nascer uma revolução capaz de criar novos códigos morais mais apropriados a um mundo justo. Portanto, o centro nevrálgico faz-se com um plano de desejo e ataques e contra-ataques morais ao longo de uma linha de desenvolvimento que conduz ao final feliz (mesmo que não haja festa e contentamento simplório, pode até morrer-se saciado de vida). É verdade que algumas obras, como O Estrangeiro de Albert Camus, parecem desviar-se dessa estrutura, mas isso mantém-se na grande maioria dos casos. Por exemplo, mesmo na Metamorfose de Kafka, apesar do desvanecimento de sentido e da quase impossibilidade de se conjurar essa falha, deseja-se saber o que vai acontecer à personagem.

A ficção cinematográfica ou televisiva funciona de forma similar, excepto nos trabalhos de autor, que, por natureza, terão de afastar-se dos horizontes de expectativa dominantes, “Um filme de autor explora um mundo [possível], não segundo as esperas do público, mas de acordo com a visão do autor.” Mad Men ou Breaking Bad, e outras obras superiores (The Wire, Six Feet Under, Sopranos...), seguem a velha estrutura mas adicionam-lhes outros arranjos narrativos, reduzem a tensão maniqueísta, complexificam algumas personagens, deixando-as muitas vezes à deriva no meio da ambivalência, amplificam as virtudes empíricas contra as ambições idealistas, protegem zonas de obscuridade que noutras produções são resolutamente iluminadas, escancaradas, às vezes com deuses ex machina fanfarrões totalmente inverosímeis, uma banalidade desoladora e desastrosa, apesar de febril. De qualquer forma, se as más histórias são moralizadoras, as boas colocam sempre questões morais, “ou a questão da moral”. Mas também neste caso há excepções, John Truby dá o exemplo de Tchekhov, cujas personagens são “incapazes de compreender e de mudar. Elas repetem perpetuamente os mesmos erros.” E quando ficam conscientes, acabam por “obter exactamente o contrário do desejado.”

Assim, uma boa história, já tendo em conta os desvios que podem gerar obras de arte, “estiliza e compreende momentos cruciais da vida”. Desenvolvendo uma economia do desejo em direcção a um fim, indo por trilhos minados, onde novos Ulisses se safam com astúcias frenéticas, cheias de suspense e efeitos especiais, e no final obtêm a ambicionada superação que eleva as personagens heróicas e, se houver tragédia, também os espectadores (a célebre catarse trágica interpretada por Nietzsche, elevação em vez de purgação).

Pausa para sexo ou mais um teste falhado à maturidade racional

Fotografia do jornal Libération

Fotografia do jornal Libération

Há uns dias, um político Sueco propôs uma pausa de uma hora no trabalho para sexo (os objectivos são aumentar a natalidade e contribuir para o bem-estar da população, o jornal Libération explica, mas também o Le Monde, recepção jornalística francesa de “referência”). No início, pareceu-me mais um delírio progressista (este termo precisa de atenção crítica), desses que quase ninguém leva a sério mas que fazem a fortuna dos sítios de notícias exóticas, emerge mais um fait-divers na realidade, como uma pequena irrupção de sem-sentido visando, sem convicção, mudar alguma coisa para que tudo fique exactamente na mesma.

Contudo, deixem-me envolver esta proposta com linhas de racionalidade, querendo resgatá-la da irrelevância em que caiu pouco depois dos risos iniciais na taberna e sorrisos na pausa para café de trabalhadores sensatos e empenhados. Houve também quem mantivesse o siso intacto e achasse novamente, comprovando uma suspeição herdada, que o mundo não tem remissão. Aconselho estes guardiões da inteligência lógica e dos valores morais abraâmicos a abandonarem prontamente a leitura do texto, a Webesfera está cheia de coisas graves, não percam o vosso precioso tempo com ligeirezas.

Vou então, para os que ficaram, cruzar a notícia sueca com um artigo (íntegro, apesar de tudo), já com alguns meses, do El País: “Assí cambia su cuerpo cuando deja de practicar sexo”. Nele, Kristin Suleng convoca vários estudos científicos para mostrar como o abandono da prática sexual nos fragiliza. Vamos aos factos (ou ao que se aproxima disso), de seguida, quase automaticamente, veremos que o político sueco não é, afinal, um louco ou um carente de projecção mediática. Concluirei que quase 80 anos depois da morte de Freud, a sexualidade continua a ser mais mitificada do que analisada (abrindo as portas ao obsceno, ao pornográfico ou ao paródico, percepções toldadas pelos preconceitos sobre o corpo sexuado, capazes de uma autoridade implacável, exercida numa espécie de novilíngua dedicada à sexualidade, dificultando toda a respiração inconformista).

1- O artigo do El País citado acima é um modelo de bom jornalismo, quase todas as afirmações contêm uma hiperligação que conduz o leitor até à entrada do estudo que as sustenta, é verdade que há pouco contraditório, mas tendo em conta a actual tabloidização da informação, devemos felicitar estas bolsas de qualidade. O texto revela que há três domínios onde a actividade sexual influi positivamente: a cardiovascular, a neurológica e a do sistema imunitário. Daqui não resulta imediatamente, tem o cuidado de realçar o autor, que a abstinência (nunca havendo uma anulação plena da sexualidade, entende-se esta como a falta de práticas sexuais orientadas para o orgasmo, apesar do desejo de as ter, trata-se sempre aqui de abstinência involuntária) tenha consequências negativas para o organismo, dos benefícios da prática (porventura sobrevalorizados) não se segue que haja prejuízos na ausência dela. Bom, mas parece consensual que o sexo é benigno para a tensão arterial, espoleta ou acelera a produção de dopamina e serotonina e, devido ao contacto físico, fortalece o sistema imunitário. Além disso, também afecta positivamente a autoestima. A isto junta-se a diminuição da agressividade, segundo um estudo longo e vasto, “as sociedades mais agressivas são as mais abstinentes ou reprimidas.” Como remédio caseiro, podemos recuperar um dos soporíferos mais antigos ao decidir enrolarmo-nos na cama em vez de vermos televisão ou respondermos a e-mails. Há ainda um trabalho académico que relaciona a pobreza sexual com a diminuição da inteligência, visto que o sexo incentiva a neurogénese, sobretudo o desenvolvimento celular no hipocampo. Finalmente, uma vagina pouco utilizada (para o sexo) cai em hipotonia e se o homem deixar de ejacular aumenta o risco de cancro da próstata, além de promover a disfunção eréctil.

2- Depois deste vasto leque de benefícios comprovados da actividade sexual, e prejuízos do seu contrário, quem se atreve ainda a criticar o político Sueco? Se é um caso de saúde pública (coloquemos a questão nestes termos), então justifica-se, até por razões económicas, que a famigerada pausa seja considerada um imperativo legal que todos deveriam cumprir. Talvez surgissem alguns problemas de fiscalização (como verificar que a pausa era exactamente usada para esse fim?), de crítica social (apontando-se o dedo a quem não contribuísse para um bem-estar individual que, por acumulação, se alarga sempre ao geral), de discriminação das minorias assexuadas ou presas ao colete de forças religioso... Mas parece-me que tudo acabaria por entrar na rotina da população, sobretudo nos jovens ousados e robustos (talvez se pudesse isentar parcialmente os mais idosos da sistematicidade calendarizada). O resultado, virados os preconceitos ao avesso, seria mais bem-estar, individual e social, e aumento da natalidade (aqui compreendem-se as reservas dos ambientalistas).

3- Certo, parece tudo bastante interessante, mas, ao mesmo tempo, numa auto-contradição de voltagem média, incapaz de sair de um registo jocoso, mais apropriado às utopias alucinadas do que a uma via iluminada que se leve ao Parlamento para ser legislada. E isto quase somente porque continuamos a rodear de preconceitos ancestrais os órgãos e a embriaguez sexuais. Claro que os primeiros são discriminados devido à potência dionisíaca que parecem concentrar, mas ninguém se lembra de banir o cérebro ou o sistema endócrino das conversas honradas só porque eles também participam no jogo sexual. Isto quer dizer que também na sexualidade há uma economia do bode expiatório (pénis e vagina carregam com as culpas). Mas mais sério do que isto é a constatação de que continuamos cheios de tabus – sendo que neste caso, em antinomia, uma franja da população coloca aí o seu totem. Apesar da intensa sublimação (não no sentido freudiano) desses órgãos, e da tese de Michel Foucault sobre a Modernidade não cessar de falar, científica e vulgarmente, de sexualidade (revelação iconoclasta presente no primeiro volume da História da Sexualidade). A tese da potência libidinosa do Id, a quase constatação da importância decisiva da passagem fecunda dos estádios sexuais, os complexos de Édipo e de Electra... em resumo, toda a analítica sexual freudiana continua, um século depois, a ser esmagada por preconceitos, sobretudo religiosos. Em geral, um sexismo primário fia narrativas de posse e domínio enaltecendo um machismo básico. Por seu turno, o espectro religioso vislumbrou na sexualidade (esse extraordinário dispositivo filogenético mas também esse superior traço de civilidade emergente no amor-paixão) uma embriaguez extasiante que pode concorrer perigosamente com grande parte da cultura ascética, seria uma saída vital, a do sexo, contra uma saída mortífera, a evangélica. Venceu, pois, a noite das trevas, sem estrelas dançantes. Talvez por isso se gritasse ao megafone por todo o Maio 68 sexualmente activo que “fazer amor era uma forma, mais uma, de fazer a revolução”.

 

Notas sobre Friedrich Nietzsche (o caminhante inactual)

Nietzsche por Edvard Munch

Nietzsche por Edvard Munch

Quem pensou o mais profundo, ama o mais vivo.” (Hölderlin, Sócrates e Alcibíades)

Há um toque metafísico no “inactual” de Nietzsche (conceito que ganhou lastro com a publicação das quatro Inactuais, Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-1876), ou no mínimo uma recusa em permanecer refém do tempo capturado pelas ninharias do dia-a-dia (ser inactual é pôr em perspectiva o presente, confrontando-o com passado e o futuro, agarrando um qualquer tipo de eternidade). Mas, leitores de actualidades, onde podemos encontrar hoje protecção contra o dilúvio de informações tóxicas despejadas sobre o mundo (e não são apenas as fake news)?

Separar-se do ruído de massas histriónico para higienizar a mente (logoterapia), quem consegue pensar sacudido por rajadas de discursos irrelevantes, axiologicamente igualitários, onde o bom se perde na amálgama quantitativa que nivela e atrofia? O meu reino por uma comunicação viral, fama efémera, sem o tom iconoclasta que lhe imprimiu Andy Warhol. Liturgia para massas. Nietzsche criticou o igualitarismo rousseauniano, ainda por cima falso (julgava-se meio-génio), por ter destruído as boas hierarquias: valores, gostos, pensamentos... ficaram dispostos horizontalmente, dinamitando o vislumbre de uma civilização adequada aos “espíritos livres”, cheia de embriaguez trágica, contendo sempre mais vida do que morte. Uma cosmologia fisiológica. Uma teodiceia do corpo e da Terra. Um fatalismo não ataráxico e resignado, amor fati dionisíaco e alegre. É por isso que o solitário de Sils-Maria preferia Voltaire, a quem dedicou Humano, Demasiado Humano (1878-1880), a Rousseau (apesar de se encontrarem no gosto pela solidão, única condição de exaltação pessoal, e nas caminhadas vitais). Voltaire tinha uma nobreza de espírito (“noblesse d’esprit”), um estilo refinado, gosto linguístico, mas também bom humor (para Nietzsche mais importante do que se pensa) e recusava visceralmente as crenças religiosas, reino das boas consciência estupidificadas.

O estilo aforístico nietzschiano revolta-se contra o pensamento pesado e longo, fastidioso, empenhado em fabricar demonstrações tão completas que o leitor, ainda a meio do texto, sente que já pode morrer. Pelo contrário, ele exige um leitor activo e inventor. Reafirmar este tipo de pensamento parece uma pequena nota de rodapé na história da filosofia. Mas, na verdade, a mim afigura-se-me mais como um milagre dionisíaco, encontrar um pensamento simultaneamente tão lúcido, preciso, rico, intenso, veloz e irónico... é uma bênção rara, raríssima. E depois, mesmo quando tudo lhe parece irremediável, combate o niilismo que preenche cada bolsa de ar do Ocidente (ele próprio se considera niilista), hoje e sempre, pelo menos desde que Sócrates justapôs a verdade e o bem, secundado depois pela devoção quase erótica do cristianismo pelos mais fracos (que finalmente, pelo número, se tornaram os mais fortes: “É preciso amar sempre os fortes contra os fracos”, “Anti-Darwin”, Fragmento Póstumo, 1888). Nietzsche nunca se cansou de compor hinos à vida, sem cariz metafísico, à vontade de viver, que é sempre auto-superação, de cada um dos impulsos orgânicos. Contra a ascese cristã, escreveu milhares de páginas sobre uma espécie de religião da vida onde se louva sem reservas a Terra. Zaratustra é o profeta de outro homem e de outro tempo, o sobre-homem e o eterno retorno, que vão habitar o novo mundo sem Deus, isto é, sem qualquer cântico que chame permanentemente o Além e disponha uma tábua de valores que impõe uma consciência triste. É a vitória da vida (como vontade de potência, não há nele nem metafísica, já o disse, nem um biologismo redutor, tanto mais que Prometeu, Édipo ou Antígona venceram, afirmaram-se pelo aniquilamento exemplar, a vontade de potência sobreviveu à morte biológica, e continua a arrepiar-nos sempre que os lemos ou vemos representados, bastando para isso proteger-se do “dilúvio” que referi acima).

Como pôde, repito, acontecer este milagre? Hipótese: porque Nietzsche deixou a Universidade, porque era um bom filólogo e porque tinha um pensamento temerário, intrépido e lúcido. Haveria, pois, de denunciar os próprios limites da razão (sem o semi-deus ex machina kantiano), percebendo desde muito cedo que só conseguia pensar bem enquanto caminhava, decretando que o corpo passaria a ser a “grande razão” (sem hipertrofia racional, defendendo continuamente um processo diferente de produzir verdades pelo jogo dos instintos, o logos nietzschiano nunca apaga o enigmático), ele foi o pensador mais cintilante do século xix, um fluxo de raios contra o torpor crítico. Descobrindo como o niilismo percorre, depois de Sócrates, toda a história da humanidade, que há outros valores além dos velhos e viciados bem e mal, compaixão, humildade... e que o homem vai desaparecer para que nasça o sobre-homem, solitário (por isso é inconcebível colocar Nietzsche no fascismo de massas nazi) e legislador, não um fazedor de leis para os outros, mas um ser reservado que se vai compondo a si mesmo, ciente das linhas de fuga que não o deixam petrificar, mantendo vivo o trabalho de se tornar aquilo que é (o célebre “torna-te aquilo que és”).

Nietzsche nunca quis, e esta é uma das críticas mais frequentes, prolongar as queixas dos oprimidos (Guy Debord: “ceux qui sont toujours prêts à prolonger la plainte des opprimés”). Detestava, sem remissão, os predicadores da morte, que medram no reino da vitimização. Instigadores da escravatura voluntária (“antes querer o nada, do que nada querer”, Para a Genealogia da Moral, III), a vida vivida como desvanecimento. Por isso, a questão irremissível que se levanta quando se lê Nietzsche com alguma lentidão (a boa lentidão filológica, ruminar paciente) é acerca do nosso estilo de vida. Nietzsche não saiu dessa interrogação durante, pelo menos, os últimos anos da década de 80, tudo o que pensou e escreveu nesse tempo prendeu-se com a pergunta “que faço eu da minha vida?” Ecce Homo, autobiografia evangélica (um evangelho pagão, “é preciso renaturalizar o homem!”, diz o autor frequentemente), celebração de si mesmo, concluído imediatamente antes de cair na loucura, é um auto-elogio sincero (não enuncia sobranceria ou confusão mental), um “valeu a pena viver esta vida!” Tanto que, enquanto mestre do tempo do eterno retorno, “quero vê-la retornar infinitamente”. Relembremos que nos últimos dez anos de vida mental activa, Nietzsche caminha quase todos os dias, várias horas, ora nos Alpes, ora em Turim, ora nos montes por detrás de Nice, ora... Nietzsche é um caminhante obsessivo (“a minha única forma de existência possível – fazer caminhadas”, carta a Peter Gast, 1879). É isso que lhe permite escrever as grandes obras da década de 80 (Gaia Ciência, Zaratustra, Para Além Bem e Mal, Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, e um sem número de notas que, com toda a certeza, dariam lugar a mais um livro, não, noutros termos, à montagem pérfida que a irmã fez de A Vontade de Potência, mas a um onde a arte viesse conjurar todo o niilismo mortífero, fechando assim o círculo que iniciou em O Nascimento da Tragédia, 1872). Outra forma de propor uma teodiceia dionisíaca, encenada a partir das velhas tragédias gregas (Ésquilo e Sófocles), conjugando o vital e o sublime. Escreve enquanto caminha, escreve a toda a hora, em qualquer lugar, mas sobretudo quando lança uma perna atrás da outra, músculos retesados, porque “só os pensamentos que temos enquanto caminhamos valem alguma coisa” (Crepúsculo dos Ídolos, 1888). Escreve linhas extraordinárias e ninguém percebe, a indiferença é quase total, “alguns nascem póstumos”. Está tudo ocupado a produzir moraleira, tricotando o bem e o mal para os últimos homens (a acreditar em George Steiner, George Orwell quis chamar a 1984 O Último Homem na Europa). Enquanto ele revela o fundamental para termos uma vida que valha a pena, uma vida terrena, agarrada à Terra, mas sem raízes, para podermos exercer um nomadismo vital, para, como o “grego dionisíaco, querermos a verdade da natureza em toda a sua pujança.” (Nascimento da Tragédia). Para nos esquivarmos das setas envenenadas (com o pior dos venenos: o anodismo) que caiem sobre o presente.

O veneno do nacionalismo

George Steiner

George Steiner

Nunca percebi (dentro da inteligibilidade que envolve o nosso tempo) a palavra (ou frase) de ordem que coloca a “soberania nacional” como o desígnio máximo de uma comunidade, sinto sempre que há um oportunismo revivalista invocando o Leviathan hobbesiano ou a Vontade Geral rousseauniana (correspondendo vagamente à direita e à esquerda políticas, respectivamente), que como sabemos são conceitos, ou signos mais difusos, que acabaram por aquartelar-se numa performatividade dramatúrgica em vez de traçarem com a clareza possível os elementos que configuram o sentido de pertença a uma população que originalmente parecia atomizada pelo vírus do egoísmo.

Sei bem que é uma frase para cartazes, que se insinuam em cada rotunda com uma evidência inquestionável, poupa reflexão e alimenta a pequena veia nacionalista. Mas é também reaccionária e perigosamente beligerante, lógica tribal e ódio/medo do estrangeiro (o conhecido contra o estranho e o medo de perder recursos, no celebrado “vêm roubar-nos os empregos!”).

Como manifesto anti-nacionalista, aconselho este texto de George Steiner, escrito na longínqua década de 70 do século xx (provando que a actualidade revisita o passado mais vezes do que se pensa), um ensaio do The New Yorker traduzido para português pela Gradiva (George Steiner, The New Yorker, trad. Joana Pedroso Correira e Miguel Serras Pereira, 2010).

O nacionalismo é o veneno da história do nosso tempo. Nada é mais brutalmente absurdo do que a tendência por parte dos seres humanos de se atirarem às chamas ou de se matarem uns aos outros em nome da nacionalidade ou movidos pelo sortilégio pueril de uma bandeira. A cidadania é um pacto bilateral que está, ou deveria estar, sempre sujeito a um exame crítico, sendo, se necessário, revogável. Não há cidade humana pela qual valha a pena incorrer-se numa grande injustiça ou numa grande mentira. A morte de Sócrates pesa mais do que a sobrevivência de Atenas. Nada enobrece tanto a história de França como a vontade que levou franceses a raiarem a queda colectiva no abismo, a enfraquecerem radicalmente os laços da nacionalidade (como sucedeu, na realidade), por ocasião do caso Dreyfus. […] A pátria de cada um de nós é a parcela de espaço comum e corrente – pode ser um quarto de hotel ou um banco no parque mais próximo – que a cerrada vigilância e perseguição dos modernos regimes burocráticos ocidentais ou orientais ainda consentem ao nosso trabalho. As árvores têm raízes, mas os seres humanos têm pernas que lhes permitem partir depois de em consciência terem dito ‘não’. (p. 53)