Annie Ernaux, uma entrevista

Na Enfermaria gostamos muito de Annie Ernaux, foi, pois, com grande felicidade que soubemos do Nobel da Literatura, prémio que não desdenhamos, como agora é de bom tom fazer-se nos círculos restritos da mais alta inteligência literária. Há sempre «uvas verdes».

Depois de uma brevíssima introdução, deixamos-vos com uma entrevista ao jornal Le Monde, da jornalista Sandrine Blanchard, com cerca de 6 anos, julgamos que é uma boa maneira de ficarmos um pouco juntos dela, de partículas da sua realidade. A tradução é de Victor Gonçalves

Elena Medel, poeta e romancista, refere, num artigo ao El País (8/10/2022), que Annie Ernaux «transcende as etiquetas de “autobiografia” ou “autoficção”», ela própria recorreu, antes, ao conceito de «auto-socio-biografia», ela que gosta tanto de Bourdieu. Gosta também, o seu feminismo não é secreto , de Simone de Beauvoir, e, por razões agora ligadas às questões de mobilidade social e vergonha de classe, de Dédier Éribon, do seu magnífico Retours à Reims. A própria autora disse, numa entrevista a Mará Sonia Cristoff, Clarín, que «classe de origem e feminismo são dois eixos cruciais na hora de escrever, atravessam tudo o que escrevo.»

Há muito onde ir buscar na sua obra uma frase síntese, que, como é habitual em situações semelhantes, relevará tanto quanto esconderá, gostamos e optamos por esta: «Et je crains toujours de laisser échapper quelque chose d’essentiel. L’écriture, en somme, jalousie du réel.» [Temo sempre deixar escapar alguma coisa de essencial. A escrita, em suma, ciúme do real.] (Annie Ernaux, L’occupation)

 Je ne serais pas arrivée là si… [não teria chegado aqui se…],
… Se a minha mãe! E é sem hesitação possível! Foi fundamental. Pela sua personalidade, a sua força, a sua visão do mundo e em particular do mundo social. Tudo isso me suportou, e também me levou à revolta. Ela queria traçar o meu próprio destino. É largamente responsável por ele.

Esta mãe sempre a empurrou para a frente. Ela queria dar-lhe aquilo que não tinha tido?
Acima de tudo, ela queria dar-me uma vida interessante, uma vida independente — este termo era muito importante. Era menos o sucesso material do que o sucesso intelectual que importava para ela. Quando percebe que a escola está a resultar, fará tudo para me facilitar esse percurso e nomeadamente — o que era bastante excecional para as raparigas da época — impedir-me literalmente de me entregar a uma ocupação feminina. Ela tinha uma espécie de condescendência, quase desprezo, pelas mulheres que ficavam em casa porque os maridos podiam sustentá-las. Fui criada nessa imagem negativa do lar. Quando o meu pai morreu, disse-me, pouco depois, uma frase que achei terrível: «Vou limpar-te a casa». Era para me libertar desses afazeres. Isto significava «ainda estou aqui». É enorme.

Quando pensa na sua mãe, qual é a primeira imagem que aparece?
Materialmente, é a imagem do fogo. É uma mulher que, como dizia, nunca se deixou pisar. O meu feminismo vem dela. A minha mãe não tinha medo de nada. Estava sempre revoltada. Com espantosos excessos de violência. Não vivíamos na doçura na família Duchesne! Recebi muitas chapadas. Neste campo, eu sou a lenda da família!

Porquê?
Porque era fresca! Opus-me rapidamente à autoridade. Só pensava em desobedecer. Estava bastante inclinada para as questões sexuais. A minha mãe achava que eu continha todas as possibilidades do mal, e eu também estava convencida disso.

A sua excelência escolar foi para agradar à sua mãe ou porque gostava da escola?
A escola fazia-me feliz. Como filha única, encontrei finalmente colegas de turma. Era uma faladora inveterada. E adorava ler. Mas separava as minhas leituras, os livros comprados pela minha mãe e os das aulas de francês.

Quais são as suas primeiras memórias marcantes de leitura?
E Tudo o Vento Levou
[Gone with the wind] de Margaret Mitchell, que li quando tinha nove anos. A minha mãe tinha-o comprado para ela. Acho que foi a maneira como ela falava dele com os clientes na mercearia que me fez querer lê-lo. Porque eu adorava estar debaixo do balcão a ouvi-los discutir. Este livro representava um mundo para mim. Acreditava na realidade dessa história. Eu até procurei o nome Scarlett O’Hara no dicionário! Queria saber mais do que o livro! Jane Eyre, de Charlotte Brontë, também me marcou muito. Este livro na primeira pessoa é como um fio condutor da existência. Trata-se, também aqui, de viver uma vida de independência, sem dominação. Estes modelos estruturaram-me.

Quais são os seus sonhos de jovem?
Em criança, não tinha nenhum desejo específico, o futuro estava em aberto. Com os meus amigos, os meus primos, havia o imaginário do amor. Nas cartas que escrevi aos dezasseis anos sentia repugnância pelo casamento. Na época, não podíamos imaginar outra maneira de estar com um homem. Tenho a sensação, desde muito cedo, de que o casamento nada mais é do que quase o fim da vida. Talvez tenha sido a influência da leitura de Une vie de Maupassant que me abalou. Li-o aos treze anos às escondidas e fiquei completamente alterada.

Desenhava-se um desejo profissional?
Eu sabia que ia fazer alguma coisa. A minha mãe sempre me recordou de que na escola primária uma freira lhe disse: «Annie é uma futura professora.» Não falhou! Nos trânsfugas sociais, os milagrosos passam por aí; por uma profissão na qual não há necessidade de ter uma herança económica.

Desde quando tem essa consciência de classe?
Nunca foi totalmente formulada. Mesmo no meu diário íntimo. Vem da sensação e da certeza: pertenço a um meio modesto. Tenho essa consciência de classe na escolha dos amigos, na diferença que sinto perante outrem. Sei tudo o que me separa de alguns deles e ao mesmo tempo tenho essa vontade de os conhecer. É um mundo que me parece maravilhoso, porque há a música clássica, aquela que eu ignoro. A música é realmente, na época da adolescência, o signo de exclusão. É dela que eu mais me quero apropriar.

De que sente mais falta?
Muitas coisas! Mas nunca é ciúme social. É a sensação de uma falta, de uma imperfeição. A ideia de injustiça vem muito depois.

Chega quando?
Eu não sentia isso em mim, mas nas situações. Quando fiz a minha comunhão no internato católico de Yvetot, perguntei se a minha prima — que estava na escola pública — podia vir. Chega o dia, estamos em maio, ela levou o vestido mais bonito que tinha e um casaco de pele de coelho. A diretora chega ao pé de mim: «Onde está a sua prima, não a vejo?» Respondo-lhe: «Está ali.» Então, o rosto da diretora... era desprezo. Nunca me esqueci. Histórias assim, tenho toneladas delas. É a força dos trânsfugas quando admitem que o são: eles sabem muito mais sobre o mundo social, pela posição que ocupam, do que aqueles que estão naturalmente no mundo dominante.

Em que momento teve a sensação de ter mudado de classe social?
Principalmente ao morar longe dos meus pais e ao casar com um rapaz que era de classe média burguesa de direita.

O que mudou então na vida diária?
Temas de conversa; o facto de sentir a condescendência do meu companheiro pelos meus pais e meio social; as famosas maneiras à mesa e, o que imediatamente me impressionou muito, essa segurança no mundo, da qual eu estava completamente privada. Tem-se a impressão de que o mundo é feito para essa classe dominante e que lhe pertence de direito e de facto. Também está ligada ao corpo: essa estranheza de ter um corpo plebeu, um lado «campónio».

Qual foi a primeira pessoa a quem falou sobre o seu desejo de escrever?
A uma nova amiga, que encontrei quando me matriculo na faculdade de letras. Em junho, quando fui aceite na propedêutica, lembro-me de escrever inventando um nome para mim: «Anne Saint-Claire vai publicar o seu primeiro romance.» É muito estranho. Posteriormente, sofri recusas justificadas. As coisas não aconteceram de forma linear. A consequência dessas recusas é a fuga em busca de um relacionamento com um homem. Depois, uma série de coisas um tanto dramáticas, como o meu aborto. Finalmente, vejo-me casada e depois mãe. Não consigo escrever, mas nunca paro de pensar nisso. O meu marido, Philippe Ernaux, leu o meu primeiro texto, com comentários pouco agradáveis. Depois disso, nunca mais pedi a ninguém para me ler. Muito rapidamente, questiono-me sobre a escrita: não há história para contar. Não é a história que conta, mas o que estava em jogo na história. No que vivenciamos, há algo que faz avançar o conhecimento. Há mais no escrever do que no recordar.

Tinha «o desejo de visitar o planeta». Fê-lo?
Este desejo foi rapidamente canalizado pelas necessidades da vida. Finalmente, viajei principalmente por causa dos meus livros. Mas fiz uma viagem extremamente importante com o meu marido em 1972. Tinha 31 anos. Foi organizado pelo Le Nouvel Observateur (antepassado de L'Obs) para conhecer Salvador Allende no Chile. Essa viagem durou duas semanas. Graças ao contacto com as poblaciones fiz uma viagem de regresso extraordinária à minha infância.

Porquê?
Porque percebo o quanto vivi num mundo próximo do que às vezes via nas poblaciones: o bairro operário, a família da minha mãe no qual o álcool era devastador, etc. Tenho a sensação de ter coisas para dizer. E depois, a acompanhar o grupo, havia um jornalista literário do Nouvel Obs, Jean-François Josselin. Conversávamos muito com ele. Não sei como nem porquê, revelei-lhe o meu segredo: já havia escrito um texto. Além do meu marido, ninguém sabia. Jean-François Josselin queria que lho enviasse. Prometi fazê-lo. Mas não mantive a promessa. Esse primeiro texto de 1962 era muito extravagante. Eu não contava a realidade, não tinha nada de social, era uma forma que procurava. Finalmente, comecei a escrever um mês depois dessa viagem ao fim do mundo.

A política sempre lhe interessou...
Pertenço a essa geração que se alimentou das histórias das guerras do século xx. Na família, mas também na aula, na qual o meu professor de história nos leu Os Sinos de Nagasaki [Takashi Nagai, 1949]. E depois, desde a infância que ouvi falar de política, à maneira das conversas de café. No café do meu pai. E a minha mãe sempre votou. Acompanhei-a pela primeira vez a uma urna em 1945. Ela ia assistir até à contagem. Continuo à espera de uma mudança profunda. Constato há várias décadas um movimento irreprimível da sociedade em direção a uma espécie de isolamento. Não há uma real aceitação dos outros. Dei aulas em Pontoise entre 1975 e 1977. Lembro-me de uma turma difícil do 9.º ano, agitada. Debatemos. Ainda tenho em mente os discursos já populistas dos estudantes que me diziam: «A minha irmã não teve um uma habitação social enquanto os árabes tiveram.» Arrastamos a questão do racismo há muito.

Quando teve o sentimento pleno e completo de ser escritora?
Tenho antes a consciência de um privilégio, uma oportunidade de poder fazer algo que é — talvez como a minha mãe teria dito — o que há de mais belo. Não procurei fazer carreira, mas preservar a possibilidade de escrever. Aliás, é muito difícil. Perante cada livro a ser escrito, não sou nada, de cada vez é uma luta. Realizei esse sonho de escrever e ser publicada. Mas não é o nirvana, a felicidade, não é nada do que eu imaginava.

Quer dizer?
Nunca imaginei que seria um compromisso tão grande; a forma quase mística que a escrita tomaria. É preciso sacrificar muitas coisas: vida sentimental, um pouco a família também. Eu não sou uma avó muito disponível! Quando agarramos a dobra, acabou. A existência é informe e vazia sem a escrita. Não se trata de dizer «nem um dia sem uma linha», mas de procurar, de ter um projeto e de que tudo esteja centrado em torno dele. Viver com um livro que terá de ser escrito. Mémoire de fille, teria sentido uma grande culpa se não o tivesse feito. La Place, também.

«É assim que vivem os homens»: Sempre se colocou esta pergunta...
Sim. Imergi desde muito cedo numa comunidade de pessoas. Conviver de manhã à noite com os fregueses de uma mercearia-café, com pouca ou nenhuma intimidade familiar, tinha a sensação de ser atravessada, desde muito cedo, por todo o tipo de conversas e linguagens. Depois, mudar de classe social, ou seja, mudar de mundo, dispõe para a observação, a fazer perguntas. As clivagens sociais continuam muito fortes. A sociedade francesa permanece uma espécie de aristocracia com os seus fastos, o seu cerimonial, as suas categorizações...

Que lugar teve a religião na sua vida?
Um grande lugar. No internato havia todos os dias história sagrada e orações. Para a minha mãe, o importante era haver religião: acreditar em Deus e comportar-se de acordo com uma regra moral. Ela acreditava na eficácia da oração. Mas quando a minha irmã morreu de difteria, a oração não fez muita coisa. Fiquei realmente marcada pelos sacrifícios a fazer e pela culpa sexual da minha primeira confissão aos sete anos: acusei-me de ter tido gestos indecentes e recebi uma saraivada de vergastadas do confessor. Portanto, entendi que era praticamente maldita.

O que sobrou?
Resta o que poderia chamar-se hipotexto. É também como um primeiro mundo [a religião]. Mesmo estando convencida de que o nada [néant] nos espera, ajo como se houvesse algo que deve ser salvo e do qual sou a guardiã. Não é a minha alma, é o que faço. É muito diferente. Pode dizer-se que a literatura ou a escrita substituíram, de certa forma, Deus. Ou que escrever é a missão que me foi dada.

Como experimentou os ataques? [ao aeroporto Zaventem, por islamistas, 32 vítimas]
Esta manhã, no rádio, fiquei impressionada com o que um rapaz muito composto e calmo disse na France Inter: sim, há violência, mas não tanto quanto nas grandes guerras anteriores ou na Síria. Não foi dito por passividade, mas como uma espécie de sentimento do que é o curso da história. O mais difícil é tentar entender e saber que não seremos capazes de o perceber no momento presente; será mais tarde. O que também chama a atenção — e é terrível dizê-lo — é a facilidade com que integramos o que acontece. No dia seguinte aos atentados de Bruxelas, no RER [comboio suburbano] entre Paris e Cergy, um homem e uma mulher usavam apenas boatos sobre o que havia acontecido em Bruxelas. «Parece-me que algo aconteceu», dizia a mulher. Foi só isso. Esta vida que continua impressionou-me. Só falavam de trabalho, férias, filhos... Era um dia como outro.

Mudez

Esqueceram-se de contar
que a liberdade continuaria o mesmo invento
num tempo em que amar nunca havia sido tão derrapante
e, sem aviso, ser gente poderia ser uma tortura pálida.
A saída seria a porta da ignorância
porque a tolerância
entre os gritos e as gargalhadas
dos loucos, dos líricos, dos cínicos, dos descrentes
explodiria na cabeça dos afectos.
Esqueceram-se de contar
que chegaria o dia em que apenas se escutavam
vozes soltas,
o último sol da Primavera,
todos os versos seriam enterrados,
a clausura como um cerco de sombras
ao redor do coração.
E seríamos perseguidos,
seguidos, influenciados, consumidos.
Os vampiros das coroas podres,
escravos do medo e do poder,
aniquilavam a história.
Não viveríamos mais hora a hora,
pulsaríamos iguais em cada tempo,
espelhos em repetição automática.
Esqueceram-se de contar
que abafariam o som de todas as canções,
o pássaro azul não voaria mais na gabardine do Cohen,
não subiríamos aos telhados dos vizinhos,
nada de assobios, nada de mãos dadas,
nada de árvores
à beira da fulgência desaparecida.
As árvores contraídas como línguas
que um dia lamberam rios.
Renovar e criar
deixaria de ser uma possibilidade.
Respirar
a chama erótica do corpo
seria o delírio de uma artéria selvática.
Esqueceram-se de contar
o que seria de nós
quando desaparecesse
o cheiro da noite,
quando não houvesse mais ninguém
que trincasse as flores silvestres.
A morte
tornar-se-ia ruga –
espasmo quente da serpente
debaixo da pedra.

Era depois da oficina

i

Todos na casa são de vidro
na casa que não há mas que existe
Os sons das vidas que despertam
descem ou sobem até aqui
e mergulham fugitivos
neste quarto que é corpo e piscina  

Tudo se passa num décimo terceiro
andar o nevoeiro cola-se à janela
queres ver que o mundo se foi daqui
as aves grasnam agressivas
os patos ou os cisnes organizam
matinalmente com a língua
as crias no canal e há vida 

É hora do recenseamento diz o rapaz
que toca à porta mas é tão cedo para ver
num impresso a carne transfigurada
em números e letras
Eis que somos árvores
O rapaz move-se inquisitivo no hall de entrada
Quantos burgueses vivem aqui
há crianças? Vivos ou mortos?
Tem muitos mortos nos livros, coisas que se dizem,
o etéreo não lhe interessa
quer mais detalhes para o inquérito  

Vive-se aqui é-se a burguesa
nova e fresca um desejo
fazendo renda para cobrir o osso
ou a mesa que dói no polegar
de tanto tatear o pedal oculto no fundo do piano
da sua mão (de quem
que não dela poderia ela ser)
saem sis bemóis e da boca ais
e palavras em francês les bourgeois
c’est comme les cochons
ai ai ai j’aimerais boire un verre
de champagne ai ai ai  

ii

Ah, como é bom escrever poemas
quando há que comer  

Na ida diária da casa ao supermercado
havia três ou cinco sem abrigos é difícil
contá-los quando nós e o mundo
lixiviamos a vista e lixamos
de tantos a vida até a tábua ser
chata e rasa 

(há piscinas aqui com água clorada
o bairro tem biblioteca municipal
que já é mais do que tinha jesus cristo
de que se queixam então, dos deveres
a cumprir? Do longo desfile de mortos
vivos? Isso passa rápido - logo logo
a carta chega no destinatário) 

iii

À rua sai-se com a casa
é um facto conhecido
o seu peso ou leveza
marca-nos o passo e a fala  

sempre dando pra algum lado
portas e vidraças 
de dentro para fora de fora para dentro
e o mundo entra sai numa correria
de dois sentidos e a isso chama-se ver
e com um nome assim se tapa
o que há quem sabe por trás do detrás  

Que importa o que se perde se cada
dia reaparecemos de novo na casa
ainda que uns dias mais velhos 

Na rua anda-se pelo que me dizes
ser a avenida principal do mundo real
e não se cai. Isso sim é importante.
Trata-de dum dado a reter. Tudo isto
lembra aqueles versos conhecidos:
a casa não sei se a reconstruo
ou se na manhã na rua a refaço
mas sei que não a largo
 

Era depois da oficina ainda havia
mundo com gente vírus e vidas
mas que tinta a pinta? 

iv

Pudéssemos nós um dia sentar-nos
naquele banco utópico à entrada do parque
acolhendo a chuva de folhas douradas
dos dois antiquíssimos ginkgos biloba
no final de outono precisamente
a estação que passa agora
fora de qualquer linguagem  

eu sei meu amor dela não
podemos escapar
(nem do rapaz do questionário)
mesmo em ruínas ou aprisionando-nos
a fala mesmo se diversa a fala
é a nossa únicas casas

O perfil de João Vilhena pode ser lido aqui.

O nosso amigo em comum

O nosso amigo em comum meteu-se desta vez em trabalhos sérios e entregou-se na manhã de ontem às autoridades, fiquei a saber por uma vizinha nossa e queria que também tu tivesses conhecimento, tão longe que te encontras aí nessas planícies de vento e de pedra. Suponho que não conheças muito da história, por isso permite-me deixar-te aqui os traços gerais de um episódio que veio abalar, mais do que alguma vez esperado, a habitual tranquilidade do nosso bairro. Sentirás porventura nas minhas palavras algum escrúpulo em condenar abertamente o comportamento do nosso amigo, mesmo nos seus momentos mais abruptos e insensatos. Fica porém sabendo que tal se prende menos com algum tipo de avaliação condescendente das suas acções ao longo dos últimos dias, o que aliás seria praticamente impossível, considerando a sua extrema gravidade, do que com certo sentimento de culpa que desde ontem lentamente me tem invadido, firme e crescente como batalhão inimigo avançando sobre milheirais indefesos ou a primeira neve da estação fria. Não que eu tenha tido qualquer parte, moral ou juridicamente condenável, na forma infeliz como os acontecimentos se precipitaram. Ainda assim, enquanto observador atento de todo o estranho caso, bem como na qualidade de agente desencadeador do conflito criado, e verás como efectivamente o fui, não posso deixar de me sentir responsável pela perdição em que terá caído o nosso bom amigo em comum. Tu mo dirás, se assim entenderes. Não to peço, embora suspeite, conhecendo-me como julgo conhecer, que também estas linhas andam em busca de algum perdão ou paz de espírito.

Mantém minha mãe, desde que deixei de trabalhar, o feliz hábito de me vir despertar todas as manhãs às oito horas em ponto com a sua doce saudação de bons dias e o providencial amargor do café forte que só ela sabe fazer. Em meu abono devo dizer que de início por várias vezes a tentei convencer de que não havia necessidade de semelhante tratamento a fazer lembrar realezas ou tempos de infância em dias de febre. Mas ela insistiu, asseguro-te, alegando não lhe custar nada, ser até para ela uma rotina prazenteira. Insistiu e eu não me opus. Creio que no fundo é a forma de ela tratar de garantir-me uma certa disciplina de horários e não permitir que, passando eu agora a maior parte do tempo em casa, a vida doméstica não descarrile em letargia e desmazelo. Considerando que os meus projetos pessoais a seus olhos não mais parecem que passatempos ou no máximo afazeres de circunstância, ao menos um despertar a horas certas permite-lhe acreditar com alguma convicção que o filho não é aquilo a que poderia chamar-se um inútil, um desocupado. Estou em crer, como te digo, que essa maternal invasão dos meus aposentos, todos os dias à mesma hora, acompanhada do invariável procedimento de desejar-me os bons-dias, pousar o café na mesa de cabeceira e afastar os cortinados para abrir passagem à luz da manhã, é a maneira de minha mãe conservar o seu domínio sobre uma situação que não é de todo do seu agrado e desse modo não deixar que o filho se perca. Que ele não se vá abaixo, como uma vez a escutei dizer ao telefone à minha irmã. Que após eu ter recebido parte da ampla herança de minha tia eu tenha abandonado o emprego mais enfadonho da história para finalmente me dedicar à escrita do grande romance é algo que ainda não lhe quadra, eu sei, estou consciente disso, mesmo que desde muito cedo, a meu pedido solene, ela tenha desistido de mo dizer abertamente, tendo igualmente da sua parte constatado a inutilidade de quaisquer argumentos perante a minha determinada posição. Tolera-me por conseguinte a vida de recatado literato que a fortuna me permitiu adoptar, reservando-se o direito de me disciplinar horários, refeições e um ou outro abuso de linguagem. Foi por isso ela a anunciar-me certa manhã de abril, ainda eu mal acordado e pior saído de um sonho confuso, meu deus, vem ver, estão a cortar o cipreste.

O cipreste do bairro, sabes? Não sei se os tens por aí, para dizer a verdade desconheço as paisagens que contemplas ou por que arvoredo te moves. Algum cemitério triste os terá seguramente, são árvores dadas a espaços exíguos. Mas falo-te nem mais nem menos do rei do bairro, aquele colosso firmemente plantado no jardim de uma vivenda vizinha, numa rua paralela à nossa, e que eu me habituei a admirar, desde que me conheço, emoldurado pela janela do meu quarto. Destacava-se de árvores e casario em volta pelo seu denso corpo de coluna enegrecida e ao poente era a primeira forma a lançar com violência o seu marcado contorno contra o desmaio do céu. E agora, como se de um crime à luz do dia se tratasse, um bando de algozes munidos de moto-serras amputavam-lhe os grossos braços perante a chocada indignição de minha mãe. Foi o assunto do dia lá em casa e já na sala a televisão ligada sem som surpreendia por ignorar a notícia da atrocidade que naquele momento se perpretava. Ao mesmo tempo que minha mãe, possuída por repentino dever de proteção ambiental ou talvez, estou em crer, por esse tão humano instinto de resistir à mudança, se empenhava na procura de contactos de gabinetes e secretarias municipais para onde ligar a denunciar a criminosa infração, eu por meu lado tive então a infeliz iniciativa de telefonar ao nosso amigo em comum, desencadeando assim, como verás, os tristes factos que depois o levaram à perdição. Infeliz iniciativa, certo, mas penso também que inevitável, considerando a minha disposição naquelas horas, o estado de alma, como costuma dizer-se, e a sensibilidade contagiante de minha mãe, absolutamente determinada em defender a vida daquele bom gigante. E ao dia e hora em que te escrevo, consumado já tudo o que de pior se poderia imaginar, julgo entender com maior clareza, tanta quanta vai já faltando à jornada que termina, a importância daquele cipreste no bairro, e de todas as verdadeiras árvores à face do planeta.

A permanência. A permanência, digo-te, muito para lá de qualquer convicção ecológica. O que nos perturbou lá em casa foi essa constatação de uma permanência subitamente demolida pela decisão caprichosa de um qualquer insignificante indivíduo. Insignificante e temporário, impermanente. Como suportar o insulto de uma constância ameaçada em nome da vontade de alguém que daqui umas décadas já não andará por aqui? Aquele cipreste, simbolizando a cadência justa e equilibrada dos meus dias passados à secretária do avô, em busca da palavra justa no lugar mais acertado, aquele cipreste, repara bem, agora pura e simplesmente sonegado à nossa rotina, desfeito em toros de lenha e amontoados de folhagem sem vida, deixando no horizonte uma lacuna do tamanho de um monte escuro. Tudo isto fiz ver ao nosso amigo em comum nesse fatídico telefonema, com o exclusivo objectivo, acredita, de partilhar com ele a minha revolta, envolver no assunto um amigo, um outro membro da comunidade, para que se juntasse a uma qualquer onda de reprovação, não mais que isso, uma vez que pelo que podíamos verificar pela janela já pouco ou nada poderia ser feito para salvar o cipreste do seu funéreo destino. Mas imagino que o devo ter apanhado num dia de maior susceptibilidade, digo-o em minha defesa. Acontece às vezes, não? Uma palavra dita no tom exacto, no momento crucial, ao ouvido da pessoa mais sensível para a escutar. Talvez tenha sido isso, espero um pouco, que o tenha levado a reacções tão extremas, mesmo considerando a gravidade do crime que se cometia.

Conto-te um pouco do romance que ando a escrever, tens paciência ainda? Não imagines grande disciplina de trabalho da minha parte, pois infelizmente me acho bastante dado a dispersões de todo o tipo, alguém que me telefona, pequenas tarefas domésticas ou simplesmente essa tão recorrente incapacidade de me sentar à secretária e verter tinta sobre papel, desbastar a brancura a golpes de texto, escrever um parágrafo qualquer, por mais escasso e desconexo que seja, para assim pelo menos partir, sair do sítio, que é o contrário de ficar preso, retido, aprisionado no mesmo lugar. Penso que é medo. Medo de escrever. Ou medo de começar e não saber para onde, por onde. Medo de abandonar a segurança do tempo e do espaço anterior ao texto, ou então, muito provavelmente, terror de descobrir até onde as palavras me podem levar. Conto-te então a história, o início da história que há-de ser? Um jovem casal, Teresa e Alexandre, decidem um dia abandonar a sua agitada vida urbana, repleta de compromissos profissionais e sociais, e vir habitar uma casa de província, na orla de uma floresta. Buscam tranquilidade, tempo. Buscam talvez até algum estado primordial, no qual a existência humana se manifeste simplificada, liberta da violência do pensamento. Mas quem lhes disse que ali junto à floresta, longe da gente e da cidade, poderiam encontrar o que buscavam?

Termino já, não te aborreças, fugiu-se-me a carta do propósito inicial. Nem cheguei a perguntar como estás, que coisas contas da tua vida remota, quando planeias voltar a casa. Tu me contarás em resposta a isto, peço-te. Em todo o caso, ficas por mim informado que no passado dia 14 de Abril, o nosso amigo em comum agrediu a golpes de machada os três funcionários da empresa contratada para nesse dia abater a maior árvore do bairro, eliminando-a assim para sempre da nossa paisagem. Após a bárbara agressão, de que felizmente não resultaram mortos, ainda que dois dos indivíduos tenham sofrido ferimentos considerados graves nas costas e membros superiores, o nosso amigo abandonou o local na sua viatura, tendo andado fugido às autoridades durante três dias, precisamente até ontem de manhã, altura em que decidiu entregar-se. Diz-me minha mãe que será amanhã apresentado ao juiz.

As nêsperas

Ainda não tinha visto a Primavera cá de casa.
No terraço ao lado há uma grande nespereira.
Lembro-me de comer nêsperas e gostar
do sabor meio doce, meio azedo,
e de a minha mãe dizer que as nêsperas
faziam nódoas.
Há certas pessoas
que são como as nêsperas que comemos –
não sabemos porque falamos nelas
se há toda uma vasta botânica.

O perfil de Ana Freitas Reis está disponível aqui.