Sobre um verso de poesia estrangeira

Yiorgos Seferis[1]
Em Tetradio Gymnasmatôn (Caderno de Exercícios) (1928-1937)
Tradução de Tatiana Faia

Para Elli, Natal de 1931

Feliz aquele que fez a viagem de Ulisses.
Feliz se no começo da viagem sentiu a equipagem de um amor
com toda a força estendendo-se tensamente pelo corpo como
as veias por onde ressoa o sangue.

Um amor de ritmo indissolúvel, invencível como a
música e interminável porque nasce quando nós nascemos
e quando morremos, se
morrerá connosco, não o sabemos nós e mais ninguém o sabe.

Que deus me ajude a dizer, num momento de grande
felicidade, o que é ao certo esse amor;
sento-me às vezes rodeado de exílio, e escuto o seu distante
murmúrio como o som do mar quando
se mistura com um inexplicável remoinho.  

E surge diante de mim, de novo e de novo, o fantasma
de Ulisses, com os olhos vermelhos do sal
das ondas,
do desejo amadurecido de ver outra vez o fumo que se eleva
do calor da sua casa e o seu cão
que envelhece esperando junto à porta. 

Ali está ele de pé, alto, sussurrando através da sua barba
branca, palavras da nossa língua, como a falavam
há três mil anos.
Estende a palma da mão calejada pelas cordas e pelo
leme, a sua pele curtida pelo vento do norte, pelo calor
infernal e pela neve. 

É como se quisesse expulsar de entre nós o sobre-humano Ciclope
que vê com um só olho, as sereias, que se as escutas te forçam
ao esquecimento, e Sila e Caríbdis:
monstros tão complicados que nos impedem de entender
que também ele era um homem que se debateu no mundo,
com a alma e com o corpo. 

É o poderoso Ulisses: aquele que sugeriu que se construísse
o cavalo de madeira e os aqueus conquistaram Troia.
Imagino que ele vem para me explicar como também construirei
um cavalo de madeira para conquistar a minha Troia. 

Porque fala humildemente e com serenidade, sem dificuldade, parece
conhecer-me como se fosse meu pai
ou algum desses velhos marinheiros que curvados sobre as suas redes
na hora em que chega o inverno e a raiva do vento, 

que me cantavam, na infância, a canção do Erotókritos,
com os olhos marejados de lágrimas;
era então que eu me assustava no sono ao escutar o injusto
destino de Aretusa ao descer a escadaria de mármore. 

Ele sabe quanto é difícil a dor que sentes quando as velas do teu navio
se incham com a memória e a tua alma se transforma no leme,
estar sozinho na escuridão da noite e à deriva como
palha na eira; 

ele fala-me da amargura de veres os teus companheiros afogados
pelos elementos e destroçados um a um.
E de como é estranho ganhares força conversando com os mortos,
quando já nenhum dos vivos que restam te basta. 

Ele fala... vejo ainda as suas mãos que sabiam julgar se tinha sido
bem-talhada a sereia na proa
para assim me oferecer um tranquilo mar azul em pleno coração do inverno.


[1] O verso estrangeiro é “Heureux qui, comme Ulysse, a fait um beau voyage.” Joachim du Bellay, Les Regrets.

Memória

Poema de Natalia Ginzburg
(Originalmente publicado em Dezembro de 1944 na revista Mercurio)
Tradução de Hugo Miguel Santos

Os homens vão e vêm pelas ruas da cidade.
Compram comida, jornais, dirigem-se às mais diversas empresas.
Têm rosados os rostos, os lábios cheios e vívidos.
Levantaste o lençol para ver o seu rosto,
baixaste-te para beijá-lo, num gesto corriqueiro.
Mas era a última vez. Era o mesmo rosto de sempre,
mas um pouco mais cansado. Era o mesmo vestido de sempre.
E os mesmos sapatos. E as mãos eram as mesmas mãos
que partiam o pão e serviam o vinho.
Hoje à medida que o tempo passa ainda levantas
o lençol para ver o seu rosto uma última vez.
Quando caminhas pela rua, ninguém te acompanha,
e quando tens medo, ninguém te dá a mão.
E não é a tua rua, nem é a tua cidade.
Não é tua a cidade iluminada: a cidade iluminada é dos outros,
dos homens que vão e vêm comprando comida e jornais.
Podes aproximar-te devagar da janela quieta,
observar em silêncio o jardim na escuridão.
Dantes quando choravas havia a sua voz serena;
e quando te rias lá estava o seu delicado riso. 
Mas esse portão que se abria à noite está fechado para sempre;
e deserta ficará a tua juventude, o fogo apagado, a casa vazia.


Memoria

Gli uomini vanno e vengono per le strade della città.
Comprano cibo e giornali, muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso, le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta. Era il viso consueto,
solo un poco più stanco. E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe eran quelle di sempre. E le mani erano quelle
che spezzavano il pane e versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso per l’ultima volta.
Se cammini per strada, nessuno ti è accanto,
se hai paura, nessuno ti prende la mano.
E non è tua la strada, non è tua la città.
Non è tua la città illuminata: la città illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno e vengono comprando cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco alla quieta finestra,
e guardare in silenzio il giardino nel buio.
Allora quando piangevi c’era la sua voce serena;
e allora quando ridevi c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera s’apriva resterà chiuso per sempre;
e deserta è la tua giovinezza, spento il fuoco, vuota la casa.

Poesia Portuguesa Contemporânea e Um País Em Bicos dos Pés

Devemos alegrar-nos, talvez como acontecia nos festivais dionisíacos (ainda sem pulseiras). Saltar por cima desta tristeza que aprendeu a insinuar-se até na garrafa de vinho mais premiada de Robert Parker. É que é muito raro testemunhar a edição de dois livros com a beleza e a importância dos que aqui trago em jeito de nota de leitura (ainda incompleta). Merecem, com certeza, receções críticas mais longas, profundas e, talvez, aborrecidas (sem desprimor, o insípido é uma categoria ambivalente). Espero que outros as façam, eu não tenho o vigor necessário (nem as competências dos hermeneutas canonizados), cabe-me, todos os dias, como Kant, cumprir a circunstância de tarefeiro do Estado, multifuncional e alienado, paradigma da compulsão para um gasto delirante e inútil de tempo. Noutra vida serei outra coisa (Rimbaud diferido), não sei bem o quê, espero apenas deixar menos livros por ler e não adiar conversas com quem (ou o quê, agora temos o ChatGPT) consegue apontar alguns ângulos mortos ao meu olhar.
Quer Joaquim Manuel Magalhães, quer Diogo Ramada Curto fazem crítica cultural, isto é, numa caracterização muito pessoal, analisam e avaliam o que, e como, autores na arena das artes expressaram em obras que vão da poesia ao romance, passando pelo ensaio, artes plásticas e documentos epistolares (as cartas assassinas são maravilhosas). O que disseram (análise), como o disseram (análise), com que intenção (avaliação) e repercussão (avaliação).
Tal é relevante porque acrescenta inteligibilidade aos autores e às obras, mas também porque nos coloca a par do olhar que nos últimos cerca de 150 anos os artistas, em grande medida fenomenólogos visionários, lançaram sobre a viabilidade da arte que praticavam e a distância entre expectativas de receção e o acolhimento de facto pelos seus pares (sobretudo Joaquim Manuel Magalhães) e por um país menor, menorizado, automenorizado, que prefere consumir a sua inteligência a fabricar o enquadramento mítico, vibrante mas impreciso, de destinos heróicos ou lamentar-se de uma pequenez autoinfligida em vez de resolver os problemas reais que impedem um povo e uma cultura de se realizar (sobretudo Diogo Ramada Curto). Os milhares de enunciações performativas, à maneira de John Austin, que lançaram sobre o tempo e o espaço que escolheram recortar da totalidade do universo (numa suprema bazófia, em Os Maias Ega queria contar, literalmente, uma história universal) permite esboçar retratos do humano, da linguagem e da cultura, sobretudo os que compõem aquilo a que chamamos Portugal.
Só um país culturalmente indigente pode desvalorizar, sem qualquer estratégia para lá da pequena maledicência ou de um maniqueísmo estético que aposta tudo na criação e nada na receção, a crítica em geral. Neste caso, a crítica de Joaquim Manuel Magalhães e Diogo Ramada Curto — que é também criação literária, nem tenho qualquer dúvida — permite apoderarmo-nos de sentidos originários de tempos, ações e contextos que sem eles seriam ou significados não reclamados ou significados perspetivados de forma mais redutora. Se é verdade que não há emancipação pura, que em todas as formas de libertação se insinua a alienação, também não deixa de ser uma certeza que a leitura destas obras tornará a cultura portuguesa mais ampla e complexa, mesmo que à custa de se acrescentar saber sobre a sua mesquinhez.

Na Poesia Portuguesa Contemporânea, Joaquim Manuel Magalhães reune, em cerca de 1100 páginas, tudo o que escreveu sobre poesia portuguesa até 2007 (quando percebeu «que nada mais [lhe] apetecia escrever sobre o assunto»). Publicou em revistas, jornais e livros que compuseram obras já editadas: Os Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981; Um Pouco de Morte, Presença, 1989; Rima Pobre, Presença, 1999. A pequena exceção de alguns textos inéditos das décadas de 80 e 90 não altera significativamente a ontologia da repetição, talvez com o sentido, ainda que heterodoxo, de antologia. A decisão de não-escrita podia ter sido interrompida, diz o autor, pela qualidade de três poetas que muito aprecia: Frederico Pedreira, Sebastião Belfort Cerqueira e Marcos Foz. Também a obra coletiva Alcazar (2022) quase o tirava do sossego acrítico. Mas, enfim, no livro estão reunidos os poetas que JMM mais admirou e, nalguns casos, odiou, faltando apenas, na admiração, Fernando Guerreiro, por incoincidência entre as publicações deste e a crítica daquele.
O trabalho crítico de JMM, fazendo autoridade, não é uma visão pura, desinteressada e omnisciente sobre a produção literária, sobretudo poética, portuguesa contemporânea. Devemos levar a sério o que disse numa entrevista a Hugo Pinto Santos (a quem dedica este livro) para o jornal Público em 2018: «Odiaria ser um totalitário do gosto». Mas creio que é incontornável, até para ajuizarmos contra ele, ler o que escreveu. Por duas razões principais: 1- é um bom sismógrafo poético, identifica as fendas criativas que foram aparecendo na poesia portuguesa, não todas, é verdade, mas muitas das relevantes; 2- tem um olhar certeiro, embora por vezes excessivamente cáustico, sobre o modo de ser, e parecer, português, um jornalista dececionado com os costumes, tanto os da elite académica da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa quanto os das famílias remediadas que ciosas do seu estatuto social se tornaram veraneantes no pós-25 de Abril, passando, claro, pelos jogos de receção (do silêncio à hagiografia) das produções poéticas (dos quais não se pode eximir). Além disso, constrói códigos de leitura para mais de 50 poetas, e muitas mais obras, que teremos todo o interesse, mutadis mutandis, em reutilizar, reconhecendo que não somos hermeneutas algorítmicos. E, por último, mas não menos importante, é um bom criador de sintagmas, desses que nos salvam o dia e autorizam acreditar no futuro, por exemplo: «mercenários do ideológicos»; «O fôlego incomparável dos que ganham sem correr.»; ou «Os grandes contributos de um poeta residem, quase sempre, mais num pequeno jeito com que ultrapassa a invenção dominante que lhe é anterior do que em longas páginas de conteúdos, latejos e insurreições.»
1200 páginas, Bestiário, c. 40€, mas há livrarias amigas.

O subtítulo de Um País Em Bicos dos Pés é Escritores, Artistas e Movimentos Culturais. Portanto, um livro de crítica estética e de crítica cultural, ou crítica de costumes. De como na criação estética se inventam e consolidam visões do mundo, por vezes mais precisas e importantes do que na produção científica que tem por vocação, sempre relativa e seletiva, descrever as coisas e as ações humanas (sociologia, história, filosofia, psicologia, geografia…). E Diogo Ramada Curto usa o título para nos dar um vislumbre decisivo sobre como as elites culturais portugueses desde Eça de Queiroz, é aí que decide começar a histórias dos bicos de pés, se elevaram (erguer seria um termo desajustado) sem saberem formar um verdadeiro salto, desses que entusiasmam o público porque os vê como trampolim para que o coletivo suba um degrau na escada da civilização. A inspiração veio de Jorge de Sena, que em Estrada Larga, há mais de meio século, dizia que «era necessário que deixássemos de ser um país de “anões em bicos de pés”, para, através do estudo, passarmos a ser “anões com dignidade”. Só então talvez se descobrisse “que não éramos todos anões, afinal”.» (Citei DRC).
A maior parte dos capítulos é composta por textos já publicados, sobretudo em jornais e revistas (principalmente, Expresso, Público e Contacto). Uma compilação, pois. Mas mantém-se um bom equilíbrio entre a atualidade e o poder de ultrapassar o que nela há de acidental, como Foucault pretendeu fazer na sua «ontologia do presente». São oito capítulos: 1- Eça, Batalha, Fialho; 2- Feijó, Laranjeira, Brandão, Marnoco; 3- Amadeo, Botto, Pessoa, Almada, Sarah Affonso; 4- Mulheres escritoras; 5- Intelectuais e artistas do Estado Novo; 6- Resistentes, pessimistas, lutadores; 7- Memorialismo, comemorações, história; 8- Um meio pequeno, a universidade, a cultura popular.
A introdução começa com: «Saber se há ou não uma mediocridade que nos sufoca é o propósito deste livro.» Um mediocridade alimentada pela falta de ousadia de pensamento, o que significa prescindir da liberdade de pensar. «O respeitinho pelo consenso». E isto é desde logo importante para desvelarmos no passado o código genético que marca o presente, mas também porque «através da análise do trabalho intelectual dos outros, encontramos os instrumentos necessários para o exame crítico do que é feito por nós». A crítica como motor da autocrítica. Sobre a metodologia, seguindo esta linha de raciocínio, escreve DRC: «criar distância, ganhando em objectividade, ultrapassando ideias feitas e fugindo a estafadas lógicas de comemoração.»
600 páginas, Almedina, c. de 30€, também aqui há livrarias amigas.

a lição

o professor está num salário de sessenta mil
e de vez em quando convida a poeta
a vir falar sobre poemas nas suas aulas de poética
o professor frequentemente comenta
que não entende porque é que a poeta
que ele sabe que está num salário de cerca de vinte mil
num emprego que não é a tempo inteiro
não se tenta tornar uma professora também 

a poeta normalmente responde-lhe
que não sente que tenha
grande coisa a ensinar a ninguém
e acrescenta talvez desnecessariamente
que não ter um certo tipo de salário
é o preço que ela escolheu pagar
por uma considerável liberdade 

a poeta de vez em quando repara
que não se sente
particularmente confortável
nesta amizade
mas também
não particularmente desconfortável 

o professor acha a poeta exótica
ela veio de um país estrangeiro
fala a língua dele com um sotaque
que ele a princípio teve dificuldade em classificar
e pensou até de início que ela viesse
de um destes países que estão no centro da europa
certamente não um daqueles lugares mais caóticos
um pouco abaixo da linha dos alpes ou dos pirinéus
a poeta achou que este era
mais um comentário aborrecido sobre sotaques
na vida de uma pessoa
que escolhera viver como poeta
num país estrangeiro qualquer
por razões que não lhe importava
explicar a ninguém 

a poeta não costumava pensar muito
em que tipo de relação tinha com o professor
até que um dia ele lhe perguntou
com que palavra exactamente
se poderia descrever essa relação
a poeta pensou que naquela manhã
um dos seus gatos
uma criatura de outro jeito
doce, calma e brincalhona
trouxera para casa um rato
que teve de se fazer de morto
com um grande caos na cozinha
para poder escapar com vida 

a poeta pensou em como
prendido o gato
para poder abrir a porta
viu o alívio tenso no corpo do rato
assim que ele pôde dardejar
através das vedações dos jardins
a uma velocidade luminosa  

a poeta cujo jeito para o negócio
tinha sobretudo a ver
com errância e melancolia
lembrou-se ainda
de um poema de joão miguel fernandes jorge
sobre comer a última lata de chouriço enlatado no texas
a poeta fez um ar confuso
e brindou o professor com um gélido silêncio
que ela esperou que fosse suficiente
para ele perceber  

o professor puxou a gola do casaco para cima
e endireitou os ombros
a poeta pensou neste gesto em termos
de expressões vagamente sexistas
não raro aplicadas a treinadores de futebol
no seu pequeno país um pouco abaixo
da linha dos pirinéus 

a poeta passou parte da adolescência em nápoles
e concede que às vezes pensa em certas situações
com uma violência desnecessária
pensa no mundo em termos
de enzo scanno e michele solara
a poeta entende racionalmente
que agora vive num mundo
mais civilizado do que esse
exceptuando quando não  

noutro dia a meio de uma aula
o professor sentiu necessidade de apontar
que discordava do uso que a poeta
fazia da palavra errático
no quinto verso da segunda estrofe
do terceiro poema do seu mais recente livro  

o professor notou que era uma palavra
de conotações desnecessariamente negativas
a poeta queria ter respondido
que de vez em quando era preciso aturar
muitas coisas com conotações
desnecessariamente negativas
para chegar a um pouco de verdade e beleza
mas entendeu que esta resposta
seria talvez moralista 

e comentou apenas
que era exactamente
por ser uma palavra negativa
que a havia escolhido 

o professor declarou que
there was no need to get emotional now
over such a small thing
a poeta reflectiu
já quase no fim da sua paciência
que o professor ganhava a vida
a dizer a jovens adultos
que as palavras que escolhemos contavam
mas concedeu que este talvez
fosse um pensamento
um pouco passivo-agressivo 

no elevador a descerem em direcção ao rés-do-chão
o professor aproximou-se demasiado da poeta
até o seu ombro se colar ao ombro dela
a mão dele pousada sobre a sua pasta
a poeta tornou a pensar na palavra errático
o professor olhou a poeta nos olhos
e comentou que as suas pupilas estavam dilatadas
posicionando-se diante dela
ele afastou uma madeixa de cabelo
de cima dos olhos dela
ela colou uma mão à parede e não se mexeu
lembrando-se da sua juventude napolitana
ocorreu-lhe que estavam
ambos no ângulo certo
para que apenas uma de duas coisas acontecesse
e concluiu com alívio
que seria uma joelhada fácil de desferir 

um par de horas mais tarde o professor
enviou à poeta uma elaborada mensagem
que a poeta descreveria
embora concedendo
que não muito positivamente
como poesia erótica de mau gosto
sobre gatos e pupilas dilatadas
um pequeno mapa em quinze linhas
de uma fantasia sexual aborrecida e previsível
sobre dominador e dominado
caçador e caçado
que fez a poeta pensar
no imperialismo mal disfarçado da pax britannica
e naquele poema de alexandre o’neill
aquele em que todos estamos a pensar
a história da moral 

durante várias semanas
a poeta ficou sem saber o que responder
quando finalmente confrontou o professor
ele alegou a ignorância dela
a sua falta de familiaridade
com baudelaire e murnau
com o erotismo expressionista
do centro e do norte da europa
para aceder correctamente ao significado inocente
e apenas puramente literário daquela mensagem
o professor chamou a poeta de má amiga
invocou a mulher os dois filhos
o empréstimo da casa
o casamento de vinte cinco anos
a poeta pensou que eram demasiados pormenores
para uma mensagem tão idiota 

ponderou o quão mediocremente distante se sentia
em tudo aquilo dos poemas de amor
orgulhosos e solitários de hilda hilst
até das falhas da sua própria
má imaginação melodramática
e veio-lhe à memória sobretudo
aquele verso de um poeta grego
em que ele diz que dá força
passar tempo com os mortos
quando os vivos não chegam 

pensou por fim que já não valia a pena explicar
àquele homem
como para ela não existiam
significados literários puramente inocentes
sobretudo não se havia baudelaire e murnau
lá pelo meio
que há palavras que quando usadas
mesmo nas situações mais confusas
mesmo naquelas que nos deixam mais perplexos
exigem de nós apenas estar disposto
a morrer ou a matar
uma coragem quente e simples
de viver à deriva de um sopro
com uma clareza que é sempre
necessária e difícil
para todos e qualquer um  

Amsterdão, Outubro de 2017

Oxford, 28 de Janeiro de 2022

 

Tacto

Tonia Tzirita Zacharatou
Tradução do grego de José Luís Costa

Os meus dedos conhecem duas texturas
a pele e a terra
embora nem sempre consigam
distingui-las.
É o tacto aquilo que perde
um foragido que tenha queimado
as pontas dos dedos
tendo decidido passar a viver
sem impressões digitais.
Talvez até me sentisse eu melhor
se pudesse tocar
a pele seca, a terra
sequiosa que foi a tua
uma pele que eu não sentia
com os dedos mas que se estendia
e transbordava por todos os lados
quando o mundo era ainda
uma casca de laranja
enroscada em torno do meu pulso.


O poema anterior nesta série, bem como um texto introdutório de Androniki Tasioula ao livro de que ele faz parte, Segunda Juventude, pode ser lido aqui.