Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Dedo nosso entrando em ferida nossa

Abre-se a boca, a luz entra na garganta feita clarabóia, e tudo principia. O corpo dá-se à claridade, dilata-se para receber a manhã iluminando as suas entranhas. O seu reflexo torna-se também visível, bem como seu lastro. Imbuído por essa claridade, não fica, ainda assim, vazio, por muito que se esvazie. O vácuo aberto pelo derrame é preenchido por uma nova forma de vazio, um vazio que não é letárgico, que não é ausente, mas que é ocupado por uma outra forma de estar no espaço, uma outra forma de materialidade.

            Por onde se abre, o corpo também se deixa invadir, torna-se porto de passagem de forças aparentemente ocultas, misteriosas. E assim, ele conquista a sua própria escuridão. Saindo do corpo, o que move o corpo aproveita a maré de luz exterior para com ela partir rumo à descoberta do interior do lugar onde morava. Encontra os seus elementos primeiros, as suas estruturas, os seus mecanismos, mas também as pinturas rupestres sobre as grutas, o bolbo soterrado das imagens cravadas na carne dando envolvência e peripécia à viagem, perturbando-a, tornando-a ainda mais explicitamente provisória.

            Não é, contudo, um prado em plena ebulição da juventude, nem a cidade consegue esconder as feridas da guerra. O que desconcerta é como irradia aquilo que Thomas Bernhard chamaria uma manhã sem destruição, um momento em que a natureza encara a sua própria violência com ternura, como um impulso redimido. 

             É a célebre pintura de Caravaggio “a incredibilidade de São Tomé”, Tomé olha a chaga de Cristo, quer tocar-lhe.  E Cristo, lânguido e prostrado, aceita ver-se penetrado pelo dedo céptico de Tomé.  O triunfo sobre a dor é a prova da divindade, e isso teria desconcertado aquele que não cria. Como poderia uma criatura ser indiferente à sua própria dor, deixando que um dedo penetrasse a sua ferida como se arrumasse... fósforos numa caixa.

            Ver figura humana ajudando a perfurar sua própria carne é como ver poeta que nos fala dos seus sentimentos, alheando-se da sua presença e evidenciando seu abandono. Eles são-nos visíveis, estão-nos oferecidos como ferida aberta sangrando tal qual se espera dela, mas a ausência de propriedade (ou de proprietário) arrepia-nos, como se pusesse em causa a própria fundação da nossa identidade: as nossas emoções mais puras.

            Quando Miguel Royo nos sugere que somos apenas orifícios que comunicam, encontramos aqui, como na pintura de Caravagio, um estranho fenómeno de anulação do ego. Mas enquanto Cristo de São Tomé se anula porque sabe consusbtanciar-se em algo que o transvaza, o alheamento do poeta parece-nos porventura mais bizarro, pois joga com um revólver na cabeça a efemeridade da sua própria morte.    

            O inventário do que nos compõe continua, dir-se-ia que o escritor tomou o lugar do fisiologista e que analisa com meticulosidade cada elemento do que compõe a carne humana. Não necessariamente para organizar um compêndio que possa ser inserido numa rede de transmissão de conhecimento. O seu regresso à materialidade é quase místico, porque tornando a matéria plástica consegue evidenciar tudo que dela emana, a sua própria sensualidade, a sedução de uma vertigem que sabe ser o desejo sublimado da queda.

            Mas ao anular-se, o sujeito procura anular aquilo que Freud dizia haver mais íntimo e fundacional: sua dor. Ainda que depois mergulhe nela, através das palavras, porque, muito embora elas se prostituam como palavras unindo as nossas ilusões de contacto, a sua duplicidade faz delas tão dignas de interesse quanto o corpo: a sua falsidade, a sua escuridão é a sua ficcionalidade, é aquilo que as torna bífidas, capazes de serem campos intensivos produtores de sentido, estimulando o nosso desejo.

            As palavras revelam-se a fundação do canto. Não se sabe bem como é que surge um corpo profundamente telúrico capaz de cantar. Nem de onde vem esse canto, se é um grito de agonia de alguém que asfixia momentaneamente, se é um fenómeno milagroso sem origem sondável, se é, como outros, um fenómeno natural da paisagem. Sabe-se, apenas, que é indagando a carne e suas feridas, que é encostando-lhe o gume como ameaça, que o canto começa.

            Talvez importe aqui, relembrar, o título do livro Na Pedra a Luz Afia o Gume, porque a estarmos perante uma teoria geral sobre as coisas da vida, não podemos deixar de notar a equivalência entre a luz e o canto. Sendo, por isso, válido questionarmo-nos tendo em conta o que faláramos sobre a escuridão do corpo - se o que se procura com o canto não será desvelar alguns dos mistérios dessa sombra.

            Se esta hipótese fosse verdadeira apunhalaríamos mais um fantasma do sentimento da identidade, porque nem o canto, ou o discurso poético, seria a prova de algum tipo de instância singular, de propriedade não-partilhada com mais nenhum corpo circundante. Este canto, assemelhar-se-ia mais a um coro do que a uma ária, ainda que invoque a primeira pessoa do singular recorrentemente, como uma espécie de cobaia que é atirada na praça pública, para experimentar o espancamento de uma multidão.

            Quando nos é dito sou o sonho do cavalo dentro do homem/ castrado da sua natureza aérea é logo rapidamente rebatido mas sou  o punho/ no teu ventre arrependido/ a mão na pedra que se recusa a abrir/ por não revelar nada a não ser/ a disponibilidade total de um membro, ao que é acrescentado mas sou a dentadura da morte/ o único árbitro que sorri no escuro. Ainda que seja ensaiada uma espécie de definição identitária espiritual, um sujeito como algo que precede e extravasa a carne, ela é logo de seguida desfeita: o sujeito é rapidamente subsumido em matéria corporal e despersonalizado, constituído enquanto entidade comum.

            Mas este não é o único momento de despersonalização, nem tão pouco do esvaziamento do sujeito para ser tomado por um outro alento. Consideremos ,porventura, se estas mãos me rangem é porque têm dentes/ e se têm dentes é porque não são minhas, mas também o futuro/ se vier/ que suba pela mecha dos meus músclos/ estendidos sobre a mesa dos dias/ em ígnea submissão, ou mesmo que o corpo se transforma/ no adubo de pensamentos alheios e a pessoas passeiam/ longe dos nossos restos porque cheiram ainda a movimento/ e a diálogos abertos. Neles se intui, não só o não-desaparecimento da agência mesmo quando o sujeito é reduzido aos seus instrumentos de percepção ou de actuação sobre o mundo, como também se constata o alheamento desconcertante que havíamos referido anteriormente.

            Por muito que os próprios pensamentos sejam alheios ao corpo há uma força motora que procura a escuridão, a escuridão da morte, impulsiona o corpo a flagelar-se, a rejeitar o sono, a cair verticalmente na doença. Na sua própria indefinição procura a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dá lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater a morte no seu território ou a noite trabalha a carne com as mãos roubadas às insónias e ousa todas as formas até que uma brecha no escuro nos devolva as mãos e a luz.

            A confusão entre interior/exterior surge como consequência natural do desaparecimento do sujeito e viaja pelo livro todo, é o seu próprio fardo e, sarcasticamente, a prova viva da sua singularidade, porque não é nem o sujeito desaparecido puramente contemplativo de algo que lhe é externo, nem tão pouco o psicótico que transforma a aparência da realidade com as suas convulsões, é, uma outra coisa, um corpo que mira a paisagem sendo a paisagem, ou uma paisagem que encontra no corpo o seu reflexo e sobre si nele medita, podendo ser um ou outro, ou mesmo os dois em simultâneo: esta paisagem é o mundo que se deita sobre os nossos olhos… por pudor a ser desvendado volta-se sobre si mesma como um animal ferido à altura da nossa vista. A relação umbilical entre a paisagem e quem a observa parece sugerir que um e outro dependem da existência mútua para poder sobreviver, como se um e outro fossem o mesmo corpo.

            Talvez, é por saber a sua condição de primeira fila no batalhão que este falso-sujeito se presta a caminhar tão próximo da morte, sendo curioso observar que, quando se aproxima, ele torna-se cada vez mais apaixonado.  A morte surge como uma fuga, uma nesga ou, cito também, frincha entre as vedações do sentido, um ponto sem retorno da vedação do sentido. Mas também como reforço do alento.

            É sobre o parapeito dessa vertigem que caminhamos, como se tacteássemos uma noite como um grande mistério cravado no céu da boca. Porque, aqui, a morte e a noite são siamesas, procuro a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dar-lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater no seu território. A noite paira no corpo, enquanto o corpo escapa às sondas do sentido e é possuído por um alento incógnito, movido por forças recônditas. Esse movimento centrífugo é sinal de inteligibilidade, de inteligência, começo a recear que é no nicho da sombra que principia a lucidez. Pelos corpos adentro escavo para encontrar a luz, muito embora não seja claro se isso chega para se falar de uma singularidade.

.           Seria impossível falar-se da anulação do sujeito, sem falar da morte, porque a morte é a sua arena principal. A morte e, aliás, a noite são sempre elevados ao enigma primordial, que seduz e atrai o sujeito a abandonar-se e deixar-se navegar pelas suas ondas, ainda que o perigo de afogamento seja evidente.  Só a incógnita remete para um desfecho do ego. Ou uma hermenêutica do invisível, contra ela, o poeta tem dois movimentos distintos, porque se por um lado,  a procura apaixonada por desvelá-las é afirmação do corpo como força intensiva e pregnante - como uma força própria da vida, viva por isso-, por outro lado,  a morte é também vista como descanso, a concretização do corpo com a paisagem que integra, ou, o corpo retraído na coordenada vaga onde o mundo acaba e principia o mistério.

            Ainda que este livro não seja propriamente uma elegia fúnebre, porque nos fala, porque seus órgãos estão vivos, a boca, a garganta, os seus olhos, as suas mãos, a úvula, a sua bílis trabalhando ainda, os tímpanos tísicos de tudo conservar. E estes órgãos são lhe familiares, próximos, viscerais, cobertos de nevoeiro, ainda que estanques e imóveis. Um olhar que é presa do mundo que o ataca, pulsos abertos sangrando abundantemente sobre os mapas, os corpos esmurrados por sussurros de uma vida externa que lhe é estranha e sobre o qual se debruçam: abrem-se os corpos como campos feridos com a chegada do estio… são os campos que inauguram os incêndios e ardem… voltando-se para o interior do lume.

            E novo desconcerto, é que não só os órgãos nos trazem a expansão fulgurante de uma vida que está para lá do corpo, como essa vida nos traz o rasto de outras narrativas, pegadas de cabras que passaram para nos beber os sonhos. É por isso que, talvez, relembrar é como um espasmo de morte, como nos é dito, porque a memória parece impedir o fluir livre da vida sensorial sobre os órgãos. Ela é maliciosa, onde armazena os enigmas da vida, onde amarzena as noites, torna evidente o carácter provisório de tudo o que lhe rodeia. Mas é, também, a segunda prova de que o corpo está vivo e isso não nega a sua função de fio condutor da corrente elétrica. A memória, quando não traz trégua, traz a obrigação da procura, constituindo-se enquanto terceira voz à digladiação interna entre os elementos da paisagem.

            Ainda que pareçam todos mediados pelo mesmo denominador (dada a ausência de carácter singular e a aparência cosmogenética da descrição que é feita) os elementos da paisagem não são idênticos. Não é certo o que os distingue senão a sua composição, porque se recusa quase sempre falar de uma identidade dita espiritual ou transcendental,  porque tudo parece alimentado por forças vizinhas. Talvez, a singularidade venha de fardo antigo, tenho o sangue contaminado pelo tempo a razão da sua diferença seja a descendência, o seu genoma porque o sangue transporta a descendência, a trama infindável de paixão

            Ainda que os corpos se sucedam, e que a descendência apareça como um estranho fenómeno de iteração marginalmente alterada. Ela tem dentro de si o seu próprio equilíbrio funcional de forças, a relação entre a mãe e o filho, entre o neto e seus antepassados. Permite-nos, dessa forma, partir rumo ao cerne do seu caos harmonioso, onde a dor e a morte aparecem desveladas como algo próprio da natureza e, por isso, belo. Por mais violento que ela possa ser. Filhos que abandonam ideias em chamas, cuja natureza icariana faz que só pela dor concretizem o que aspiram ser.  Avós que assombram os netos com seus sonhos e profecias. Mães que observam os fihos cumprirem-se sobre o gume da morte.

            O desconcerto, provocado pelo desvelar dos conflitos internos da paisagem com outras vozes, assemelha-se mais a uma arena do que a um horto, é aliás bélico. É um balanço permanente entre a imagem e aquilo que a imagem evoca, mas não num plano tradicional da oposição da fenomenologia clássica, é uma luta dentro da própria imagem, é dentro dela que uma parte entra em conflito com o restante, o mundo atacando,  a memória como uma revelação, o mundo retaliando, e o corpo respondendo, não serve estar ferido nos olhos e capitular. Urge desdobrá-los… como um punho ou um baluarte erguido na frente das trincheiras do mundo.

            Esta luta pede aliás um tributo para as tramitações da carne porque é aos corpos que é exigido que encenem este combate, porque é do que lhes compõem que vêm o que gera a confrontação, as mãos que não são só, como dissemos, elemento primeiro de reconhecimento do mundo, mas também que trazem sedes próprias (fomes que nem o pulso apaga), que rangem raivosamente para morder.

            Esta submissão do sujeito para dar lugar ao corpo encontra-se também reflectida nas imagens propriamente eróticas, no sentido clássico da palavra, isto é, como aquilo que diz respeito ao amor. Porque até aqui, não encontramos, propriamente, o amor como resultado do desejo de quem ama, nem tão pouco na candura ou desenvoltura de quem é amado: o amor aparece tão só como mais uma das dinâmicas de confrontação entre os corpos, como um enigma próprio da paisagem, e o beijo como um detrito do vocábulo ou um ósculo de rebentação. Quando amados, os corpos procuram a sua proximidade, querem a faísca do seu magnetismo, procuram visceralmente ceder à sua vertigem. Quando amados, ou, melhor dizendo, quando atraídos pelo amor, os corpos desmembram-se e tornam-se elementos da paisagem.

            O amor tem essa faculdade, de operar uma transformação das coisas, dando-lhes exaustiva vida própria, uma outra utilidade, vemos neste livro, mãos que se tornam água, que arredondam pedras, que sulcam a derme e fendem desejo, que se alimentam do que criam e que criam o que alimentam. É um momento de subtração para gerar novas substâncias, de cair verticalmente a meio e aparecer de pé sobre a laje do teu futuro.

            E é quando há a possibilidade de o amor desaparecer, mais que quando se extinguiu o ânimo de uma criatura, o sujeito de um corpo, ou a textura de uma paisagem, surge o momento de maior fulgor e violência nos poemas. Fala-se de rasgar o corpo amado de cima a baixo, de incendiá-lo e encontra-se o verso que dá título ao livro é na pedra que a luz afia o gume, como se fosse possível torcer a própria espinha dorsal da luz, do canto, para torná-lo acutilante, perigoso, feroz, penetrante como uma faca.

            Neste livro assistimos a uma cosmogenese, o que há de substantivo parece surpreendentemente alinhado num conjunto de teses que organicamente dialogam entre si e se reforçam, sobre a aparência de uma linguagem desconcertantemente límpida e soberana. Tem lugar um teatro dos corpos alimentados pela sua própria paixão mas sem ter, propriamente, um pendor onírico, uma fabulação romantizada.

            A paisagem está descarnada, despida, os ossos expostos. Onde nos desconcerta, é a sensualidade que evoca este desvelar por vezes tórrido, por outras vezes sereno. Os corpos enquanto actores, figurantes e cenário procuram-se e procuram se a si próprios, enfrentam a noite e a escuridão de tudo o que lhes rodeia, do seu desígnio, do seu passado, da sua descendência, da sua paixão, a dor e a morte despem-se, apresentam-se puras, não-mediadas, escorrendo sem coágulo.

            Só, talvez, na memória dos anciãos da família, surge uma afecção dir-se-ia pessoal, mas em todo o resto é um livro completamente acabado e que nos perturba na medida em que se alheia categoricamente do que nos é próximo, como uma casa nossa que nunca visitáramos onde de cada aresta depende o confronto com a ruína. Na mesma medida que se afasta de si próprio, procura-se a si próprio como um outro, como um olhar projectado de fora do crânio para o corpo mas não como um corpo que se olha ao espelho, porque não é necessariamente reflexivo, não é o sujeito que se pensa, é algo que pensa fora do sujeito sobre o sujeito e que para isso usa o que vê, as pegadas que invocam a passagem do tempo.

            Não há linhas de fuga projectadas por eventuais desequilibrios, as única linhas de fuga são as que o seu próprio corpo indica e lança para lá de si, um corpo desmembrado, para depois ser recosido, e ainda assim manter todo o seu potencial alegórico, a sua fantasia. Foi a isto que quisemos chamar desconcerto. Um dedo outro entrando em ferida alheia sendo um dedo nosso entrando em ferida nossa.

Um poema de Tonia Tzirita Zacharatou

Ao longo do mês de Janeiro e Fevereiro daremos destaque na Enfermaria 6 ao trabalho de duas poetas gregas contemporâneas em traduções de José Luís Costa. Começamos com um texto da crítica literária grega Androniki Tasioula sobre o livro Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou, um livro publicado pelas edições Thraka em 2020 e multiplamente premiado na Grécia, seguido de um poema da Tonia.


A propósito de Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou

por Androniki Tasioula
tradução de Tatiana Faia

Do título “Segunda Juventude” percebemos já o tema dominante do livro: tempo. Numa entrevista a poetisa disse que queria registar a primeira juventude não como memória, i.e. muito tempo depois de ter terminado, mas que queria escrever o evento de tempos que se seguem uns aos outros em proximidade. Algo como uma reflexão em close-up, como se quisesse criar, paradoxalmente, uma sincronia entre a observação da experiência da sua primeira juventude e a sua experiência na carne.

No ensaio “O tempo das mulheres,” Julia Kristeva distingue o tempo das mulheres do tempo linear do calendário. Ela atribuiu ao tempo das mulheres as qualidades do cíclico e do eterno, num contraste com o tempo como nos foi conferido numa sociedade culturalmente patriarcal: como projecto, teleologia, perspectiva, progresso, frase gramatical: sujeito – verbo, predicado – comentários, princípio e fim. A forma como a poetisa procede à sabotagem de um tempo linear – masculino segundo Kristeva –, portanto, é não o deixando passar. No poema “Para lá do rio, um rio” ela escreve que “Eu/ todos os meus rios/ são/ imaginários./ Falar/como?” E, contudo, no mesmo poema ela escreve o seguinte sobre os rios: “Eles tentam escapar à metáfora/ que vê neles tempo que flui./ Rios querem ser rios/ para lá do cimento, para lá da metáfora.” Enquanto os rios poéticos reclamam a sua literalidade, enquanto recusam a metáfora do tempo que passa que tradicionalmente lhes é atribuída, eles procuram ser o que são.

A poetisa na sua “Segunda Juventude” metaboliza a primeira juventude na escrita poética, mesmo antes de esta se poder tornar uma coisa do passado. Ela retira a primeira juventude da sua casca linear, a que quer passar e terminar. A poetisa cria um enclave para a segunda juventude preservar em si a primeira. E por isso no poema “Dendrologio” (“Arboreto”) ela torna a idade humana semelhante à idade das árvores. De facto, o tempo que rodeia o tronco da árvore que cresce com mais uma camada de casca, incluindo todas as outras até ao primeiro rebento, é o tempo eterno e circular, certo?


DEMASIADO CEDO FOI TARDE DEMAIS

Tradução de José Luís Costa

Creio
que me falaram desse
safanão que o tempo por vezes nos dá
quando nos encontramos ainda na mais jovem
na mais gloriosa idade da vida.
Vi-o
arrancar-me os traços distintivos um a um
mudar a relação entre eles
tornar
maiores os olhos
mais triste o olhar
mais determinada a boca
marcar-me a testa com vincos fundos.
Não tive medo: observei-o
enquanto trabalhava o meu rosto
com o mesmo interesse que despertaria em mim
uma leitura em que eu avançava.

Leituras 2022, Victor Gonçalves

Estes são alguns dos livros que li em 2022 (cuidado, há imensas obras boas que não li, algumas nem sei que existem). Os que me acompanharam mais tempo (vital mais do que cronologicamente), se encrustaram na minha existência. São agora sangue do meu sangue. Mesmo quando não me lembro exatamente deles (quem se recorda dos glóbulos brancos que tem?). O gosto é muito pessoal, embora a filosofia nos ensine o contrário. E não gostamos da mesma maneira ao longo do tempo. Isto relativiza a minha lista, que talvez seja mais impressionista do que expressionista, isto é, pegando com muita liberdade nestes termos, dou a conhecer o que, de uma forma ou de outra, fez vibrar uma corda qualquer no meu corpo-mente, não sabendo muito bem como comunicar, expressar, isso.

A comunicação é tanto mais difícil quanto a leitura é uma atividade minoritária, experimental. Só se pode ler, pelo menos de uma determinada maneira (intensivamente), quando se é incorrigivelmente livre (um exílio sem suplício). E sabe-se que a liberdade pode ser injusta, porque é feita com centelhas divinas, enquanto a justiça se compõe, mesmo quando a atribuímos aos deuses, de interesses humanos, demasiado humanos.

Traduzo o início: «Sempre quis escrever como se devesse estar ausente no aparecimento do texto. Escrever como se devesse morrer, não houvesse mais juízes. Ainda que seja, talvez, uma ilusão acreditar que a verdade só possa surgir em função da morte.

O meu primeiro gesto ao acordar era agarrar o seu sexo tumeficado durante o sono e ficar assim, como que pendurada num ramo. Pensava: “enquanto segurar isto não estou perdida no mundo”. Se hoje refletir sobre o que esta frase significava, parece-me que queria dizer que não havia nada mais para desejar além disso, ter a mão agarrada ao sexo desse homem.

Está agora na cama com outra mulher. Talvez ela faça o mesmo gesto, estender a mão e segurar o sexo. Durante meses, vi essa mão e tinha a impressão de que era a minha.»

Um estilo irrepreensível (não abunda na filosofia, mais pela dificuldade de moldar conceitos e filosofemas a uma fluidez e beleza literária do que pela simples falta de mão dos filósofos) e uma audácia assinalável. Convoca e expõe Descartes, Kant, Schopenhauer, Hegel e Marx, Darwin, tanto quanto os mais contemporâneos William James, John Dewey, Bergson, Ganguilhem e Foucault ou ainda Husserl e Heidegger para com eles e sobretudo Nietzsche tecer um novo fio condutor da filosofia a partir da vida e do corpo. Uma filosofia crítica, questionadora das diferentes ciências da vida. No centro da argumentação está que Nietzsche é um precursor, um meteoro fulgurante em diálogo consigo e contra a velha metafísica; o grande renovador de uma antiquíssima e quase revogada ciência fisiológica que dominou a Grécia pré-clássica.

Recensão aqui.

Um conjunto de artigos de jornal. Não é um grande Sloterdijk, mas aí está ele a apanhar, catalogar e desmontar (desconstruir) o fluxo da vida (bio-sócio-mental), as consonâncias e dissonâncias dos ecossistemas humanos, com raízes profundas no passado e uma inclinação enérgica para desenhar futuros que prolonguem criticamente o presente. Um criticismo que tanto conserva como altera. Sloterdijk considera-se, tenha-se presente este rótulo, um «conservador vanguardista» ou um «nietzschiano de esquerda».

A saída da tradução portuguesa está agendada para meados de 2023 (Edições 70). O livro de 1947 foi escrito sobre os escombros e a partir da imensa esperança pós 2.ª Guerra Mundial. Mas também suplementa O Ser e o Nada (talvez o capítulo sobre a moral que Jean-Paul Sartre diz faltar à sua fenomenologia existencialista). No essencial, é porque nada está decidido de antemão, porque a possibilidade de fracasso é real, frequente e a liberdade individual intransmissível que considera o existencialismo como «a única filosofia na qual uma moral tem lugar». Nada, pois, de belas-almas, as que Hegel encena na Fenomenologia do Espírito, sem verdadeiramente as censurar, para narrar a preservação da pureza do coração contra a impureza da ação, ou a coincidência entre verdade e vontade, supremo grau de abstração. É também por isto que o livro abre citando Michel de Montaigne, uma forma de criticar as filosofias que dissimulam a ambiguidade. A sua moral revela da «arte de viver» (termo de Os Mandarins, 1954), homens e mulheres comprometidos, reconhecendo e agindo na contingência dos projetos e valores. Esta moral da ambiguidade mantém uma real força operatória.

Recensão aqui.

Um nova e esplêndida tradução de António Sousa Ribeiro, com uma introdução, suada, da minha lavra, pode ser lida aqui.

«Mais um», dizem alguns sem entusiasmo. «Jubilatório», dizem outros, talvez mais pessimistas e escondidos nas entranhas da Terra a imaginar os sismos que vão sacudir a pobre humanidade. Um pessimismo da força, como desejava, e tinha visto nos gregos antigos, Friedrich Nietzsche? Na voz de Lobo Antunes, cujo eco permanecerá vivo por longos anos: «procura o braço, a veiazinha, a veiazinha, até que um pingo vermelho, mais escuro do que eu imaginava, floriu devagar na ponta da seringa sob um nariz atento, tantos narizes nos hospitais, senhores, tantos indicadores macios avaliando-me a pele, tantos olhos sem nada dentro, ocos». Houve quem o catalogasse como poesia camuflada, um infinito monólogo que trata a linguagem à semelhança de um código rúnico, uma caixa de ferramentas para abrir a porta de um Além. Talvez. Mas continua a ser também um modo, originalmente assustador, de cartografar este país cheio de humanos melancólicos e fatais, de o cartografar por dentro, os espaços interiores que nos consomem e empurram para um Dom Sebastião burlesco. 

Häggund, filósofo e outras coisas mais (ninguém é só filósofo), escreve sobre temas importantes e complexos de modo que todos, ou quase, os possam compreender. Faz desaparecer, é verdade, as perspetivas mais enviesadas, «talvez as que nos atiram para fora da caixa, as que alimentam os centauros», dizem alguns, com certa razão. Mas não simplifica, como muitos outros, até ficar tudo anódino. Neste livro, aponta para uma nova «religião civil», a partir e contra Rousseau (o conceito é dele), porque lhe mistura Ludwig Feuerbach, anticristão mas não anti-religioso. Para o autor, temos de concentrar-nos no finito, é nele, e só nele, que devemos encontrar o sentido para a nossa existência. Um sentido para o nosso tempo biológico e para o rasto do nosso legado. No primeiro caso, a realização e a liberdade pessoais e as relações interpessoais formam a base para uma existência conseguida. No segundo caso, nada melhor, e mais urgente, do que preservarmos a Terra, legarmos uma Terra habitável às futuras gerações de seres vivos. Para isso é preciso travar um combate secular (secular faith), motivados pela real possibilidade de perda de sentido na nossa existência, o desaparecimento dos que amamos, a degradação irreparável da Terra. Por exemplo: «This is not to say that we care about the Earth only because it can be lost. If we care about the Earth it is rather because of the positive qualities we ascribe to it. However, an intrinsic part of why we care about the positive qualities of the Earth is that we believe they can be lost, either for us or in themselves.»

Há já uma tradução portuguesa na Temas & Debates.

Um livro que, nas palavras do autor, homenageia Novalis, os seus fragmentos publicados na revista Athenaeum (irmãos Schlegel). Grande parte dele é constituído por órgãos recuperados de outros corpos: Teoria do Fantasma (Mariposa Azul, 2011) e Imagens Roubadas (Enfermaria 6, 2017). Mas também recicla (essa forma de reformatação que recusa a violência das ontologias duras) textos publicados ou simplesmente anotados. Parece, pois, compor-se um novo ecossistema textual a partir de fragmentos de sentido que orbitavam noutras constelações. E sabe-se como essas injunções são por vezes paradoxais. Paradoxo, talvez, mas enquanto para-doxo, isto é, o que está na margem da doxa, corre paralelo à opinião plana. É que cada fragmento de Fernando Guerreiro (podem ser lidos como blocos festivamente autónomos, mas não forcem o solipsismo, eles dialogam, fazem circular entre si o logos, mesmo quando estão de mau humor) tem uma incontrolável força heurística interior. Ora porque nos dá a repensar o corpo, as imagens ou a linguagem; ora porque refaz a economia da vigília e do sonho; ora porque põe o cinema a investigar a realidade, alargando os seus modos de funcionar; ora porque a literatura, a poesia são analisadas como o que é demasiado grande para ser perfeito. Além disso, o modo como Fernando Guerreiro escreve é de uma inquietante e bela estranheza; por um momento todos somos levados a dizer: «era assim que gostava de escrever». Nas suas palavras: «As três experiências decisivas da minha “entrada” (imersão) no fantástico: 1) aos 4/5 anos, a explosão da pedreira em Vialonga, com as suas imagens (não sei se vistas ou imaginadas) de mutilação (cabeça, perna ou braço esmagados de um dos trabalhadores); 2) em 1978, o arrêt sobre a imagem da possível queda das rochas de Odeceixe (deu-se?, não se deu?) que ainda hoje (sobre)determina o meu sentido de “realidade”; 3) já nos anos 80, a visita do fantasma de A., em sua casa, um ou dois dias depois de ter morrido, quando o corpo ainda se encontrava numa divisória perto daquela em que me encontrava. Tudo o que foi experiência é agora cenário do Fantasma.»

Recensão aqui.

Um livro de poesia das não (edições) que acompanha os desejos de Ricardo Marques entre 2012 e 2021. Não se deve usar o bisturi analítico na poesia, ela é porventura a arte na qual o leitor mais se emancipa do crítico (e do autor). Se me pedissem para falar de Desidério, diria: Ricardo Marques vê, é isso que escreve, o desejo como a mais bela das pulsões. Não o desejo desbragado ou heroico (pícaro?), mas o das pequenas coisas, das moléculas, talvez dos átomos da vida. Instáveis, porém: «a contradição ou a impureza é uma condição essencial ao desenvolvimento». Um desejo de celebrar: «Mas vá, eu não te / quero impressionar, nem /consumir-te, só celebrar-te». Um desejo de habitar a vida no esplendor das tensões dionisíacas calmas e na homenagem aos gestos de criação com que o humano rasga a vulgaridade a que se destinou. Mas recuperar também um apolíneo que se deixou de adivinhas e arrumou o arco e as flechas: «Ficar para sempre como / o amante à espera no / lugar combinado / entre palmeiras pedras / e hera e nunca secar // Viçoso vício: ficar aqui / para sempre.» O seu entusiasmo, apesar de elevar, é sempre regulado, em tempos histriónicos é uma virtude impagável.

Uma crise jubilatória de meia-idade? «isto do ténis / foi uma asneira / não é para nós / belo / mas não para nós / demasiado tarde». Obsolescência dos sonhos. Seja. Mas este livro de José Pedro Moreira, editora Flan de Tal, jogando com o simbolismo de um metal precioso que fica entre o pechisbeque e o adorado ouro, é uma oração à boa resignação, uma autoconservação festiva, doseando primorosamente a melancolia (Cioran?) com a força tranquila estoica. Será também um pedido de contas? Repete-se a ideia de que tudo podia ter sido diferente. Talvez. Mas leio-o mais como um manifesto, sem se declarar, contra o «mais alto / sempre mais alto / até sermos / incapazes de respirar». Respiração interior, do e para o interior. Nessa oxigenação, fonte da vida, não o esqueçamos, sente-se um amor às imperfeições (e isto só a arte o permite). Uma alteração subtil ao costume do José em recensear os hábitos mais corriqueiros do humano, dando-lhes uma sagração poética (apesar do trabalho cada vez mais frequente sobre a memória, memórias, na sua poesia). Testamento vital acerca do que podemos, do que devemos fazer, um balanço e uma escolha das forças que nos permitem ser um Ícaro sem asas. Não sermos devorados pelo sucesso.

Que belo livro de Tatiana Faia (não (edições)), ressuscitando Adriano, e Antínoo, um imperador janus, assim o fez a tradição. A poeta continua enamorada pelos sistemas de vida que fazem com que algo exista, em vez do nada. Parece óbvio, não? Mas perceber a existência das coisas exige uma curiosidade obstinada: uma rua, uma estátua, um livro, uma ideia, uma pessoa… só existem se tivermos essa curiosidade irrefreável de ver como e quanto se emancipam da lista fixa de fenómenos na qual foram presas. Os códigos hermenêuticos, sempre contaminados pelo delírio, estão mais na arte do que na ciência, uma arte para lá do mundo dos artistas (poseurs), uma arte metafísica do aquém. Intuitiva e instintiva, no processo que leva da aposta sobre o que está por trás do véu da normalidade (intuição) até à decisão demiúrgica do batismo, de inserir o achado (que participou na sua própria descoberta, os aventureiros do sentido já não são velhos conquistadores) no jogo vivo e atual das significações (instinto, mistura de fisiologia e de cultura). Portanto, Tatiana Faia interessa-se por fazer muito mais do que uma filologia de Adriano, isso fica sobretudo a cargo do mini-ensaio final do livro. Antes, o grande imperador é um aguilhão para manter excitado o Hermes que habita em nós, sobretudo na Tatiana. É assim que vai à descoberta do mundo, como nessa belíssima genealogia da moeda com a efígie de Antínoo. Ou na «rua adriano». Ou nos «gatos da rua adriano». Além destas arqueologias, mais horizontais do que verticais, Tatiana Faia olha para dentro de si, ou melhor, abre pequenas frechas por onde saem fragmentos, incertos, da sua maneira de ser. Uma dialética pré-hegeliana entre o exterior e o interior. E talvez aqui se encontre o sobrepoder deste livro. Por exemplo: Levantas-te com dificuldade / e seguro-te de pé / cambaleamos juntos / em direcção à varanda / com o teu peso contra o meu / reparo que apenas um de nós / sabe mesmo dançar / e o outro é só bom a fingir // não quero nenhum começo / que não te inclua a ti». Ou: «os meus acidentes / são demasiado / como as minhas vinganças / e como o teu amor».

Cheguei tarde e a más horas

Cheguei ao cabo do pontão
onde não brilha no dia
o farol verde que pensei
ter visto ontem na tua boca 

Nem posso dizer
estou frente ao mar
e porém ao longo da caminhada
talvez a ondulação lenta
tenha soado junto ao betão
como o rumor da saliva
nos canais antigos da vida 

Agora estou frente ao fim
do caminho que afinal
não é mais que um farol
apagado sem escolhos à vista
na paisagem que o poema alcança 

O lugar é quase uma rotunda
separada do mar por um muro
de ao menos duas vidas estendidas
a semi-elipse da concha dum caracol 

É um presente délfico: este 

O ranger das coisas e dos seres é mudo
o eco frio das perguntas enigmáticas
parte no vento marinho duma outra fala 

sons que ficam sem resposta  

ali aqui agora pontos obscuros

lembram-me os negativos

queimados das nossas fotos

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