Édipo revisitado

Rei Édipo em Convent Garden, Encenação de Max Reinhardt, 1912

Este ano o Festival de Atenas e Epidauro encerrou com uma representação do Rei Édipo de Sófocles, levada a cena pelo actor e dramaturgo grego Simos Kakalas. Talvez poucos sítios sejam tão propícios para encenar esta tragédia como Epidauro e não apenas porque para se chegar de Atenas a Epidauro se passa pelo lugar onde no mito Édipo cresce, Corinto. Há qualquer coisa de muito comovente em saber que o complexo arqueológico de que o teatro de Epidauro faz parte era na antiguidade um santuário dedicado ao deus Asclépio e que assistir a representações teatrais era parte da terapia. Talvez em nenhum sítio arqueológico como ali pareça tão visível que os gregos intuíram a existência do subconsciente e a sua força (sobre isto vale a pena revisitar o livro de E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational). Numa das inscrições deixadas no santuário por um dos pacientes ele agradece a Asclépio ter-lhe enviado o sonho que o curou. 

Em Epidauro, então, o anfiteatro está rodeado pelo parque arqueológico, que não sendo visitado de noite, não possui iluminação visível. Um dos aspectos mais marcantes de ver uma peça neste espaço é o de que, à medida que a noite cai (as peças tendem a ser representadas a partir das 21.00), o horizonte fica imerso no escuro, o único ponto de luz que se avista da plateia é o palco. De todos os dramas gregos aquele que é definitivamente sobre escuridão é o Rei Édipo de Sófocles. É isso que ver esta peça no mais bem preservado dos teatros do mundo antigo lembra. Na verdade, é um texto sobre diferentes camadas de escuridão: a que vem do passado, do desconhecimento da própria história, e finalmente a que advém de um conhecimento absoluto de uma verdade que, literalmente, faz com que Édipo se cegue no desenlace. É, em certa medida, uma peça sobre a violência implacável do mais ambivalente dos deuses gregos, Apolo, responsável pela peste que assola Tebas e que não a deixa desaparecer até que o assassino de Laio seja descoberto. Nenhum deus dos gregos é capaz de tanta harmonia e tanta crueldade como Apolo. Em 1983 Bernard M. W. Knox publicou a sua leitura existencialista do teatro de Sófocles, The Heroic Temper: Studies in Sophoclean Tragedy, que é também um estudo do desenvolvimento da ideia de protagonista no teatro antigo. Knox nota a dada altura que em nenhum dos tragediógrafos os deuses são tão cruéis como em Sófocles. Penso que isto é muito verdade.

Oliver Taplin escreveu, na introdução à sua tradução do texto (publicada pela Oxford World Classics em 2015, Oedipus the King and Other Tragedies), que a peça é um castelo de cartas. É uma boa imagem. Rei Édipo é uma tragédia, em parte, sobre a instabilidade da sorte, sobre a vertigem do seu lado ascendente e da descida. Quando, primeiro em A Interpretação dos Sonhos e, em menor escala, em Totem e Tabu, Freud teoriza sobre Édipo, é sobre a profundidade do desejo humano, do seu papel na formação de uma personalidade, e também sobre a violência do subconsciente que ele está a falar. Na verdade, não acredito que haja uma audiência contemporânea que consiga ver Rei Édipo completamente fora da sombra da leitura de Freud. E a figura continua a ser relevante para lá desse momento na história da sua interpetração. Depois de Freud e Lacan, Deleuze e Guattari revisitariam Édipo (em o Anti-Édipo) à luz de um sistema capitalista, observando o quanto ele é problemático se visto, ao mesmo tempo, enquanto figura estrutural e imaginária.

A leitura que Freud faz de Sófocles foi bastante atacada por classicistas. Destas leituras talvez a mais influente seja a de Jean-Pierre Vernant (em “Édipo sem complexo,” um texto publicado em 1972 no livro Mythe et Tragédie em Grèce Ancienne), que ataca a argumentação de Freud a partir da ideia de que ela não é correcta do ponto de vista da psicologia histórica, mas sabemos hoje que Freud compreendia mais da cultura teatral ateniense do que aquilo que outrora se pensou. Vale a pena lembrar que o excerto de grego antigo que Freud traduz no exame de admissão à universidade é um excerto do Édipo de Sófocles.

De outro modo, aspectos biográficos não são irrelevantes para pensar o que Édipo significava para Sófocles e o que ele significava para Freud. Alguns classicistas que estudaram esta peça e que especulam que ela data da década de 30 do séc. V a.C. acreditam que, além da peste ser uma alusão à epidemia que dizima uma parte da população de Atenas nessa década, o quanto o texto está obcecado com a relação entre hereditariedade e o estatuto de Édipo enquanto rei de Tebas (o termo normalmente traduzido por rei é uma má tradução da palavra por que ele é nomeado no grego, tyrannos, que, ao contrário do outro termo para rei, basileus, pressupõe que ele não tinha herdado o trono por via hereditária, mas tyrannos não possuía para os gregos a ressonância negativa que tem hoje) reflecte um problema político da própria Atenas, o facto de que Péricles, o principal estadista ateniense da época clássica, perdera o único filho legítimo para a peste e adopta, na sequência, o filho ilegítimo que tinha com Aspásia, a sua amante estrangeira, para que ele se pudesse tornar cidadão da polis. Estudiosos de Freud, por outro lado, especulam que ele talvez nunca tivesse pensado no Édipo como um dos mitos arquetípicos do desejo e da perversão humanas se não tivesse um meio-irmão (filho de outra mãe) com uma idade extremamente próxima, como seria o caso de Édipo com Jocasta, da sua própria mãe.

Édipo é então uma peça sobre diferentes camadas de escuridão e por isso também sobre o que do passado regressa dessa escuridão, exige ser interrogado e resolvido porque, como nota o coro no início da tragédia, uma epidemia assola a cidade, enviada por Apolo por causa do homicídio do rei anterior, e é preciso encontrar o criminoso que sobre ela trouxe a maldição do deus. Certeza e auto-confiança, desorientação, paranoia, e finalmente o terror da catástrofe são o espectro de emoções que Édipo percorre à medida que a tragédia avança. De todas as personagens trágicas nenhuma demonstra tão perfeitamente como Édipo, no corpo e no caminho que o vimos percorrer, um fragmento de um outro verso de uma tragédia perdida de Ésquilo, aquele em que Aquiles diz que se sente como a águia que vê que a seta que o trespassa tem por adorno uma pena da própria asa.  É este, no fundo, o resumo mais eficaz do enredo da peça.

Aristóteles devia amar esta tragédia e considerava-a o exemplo mais perfeito de uma tragédia grega e isso talvez seja porque a sua progressão é tão lógica quanto um silogismo. O mesmo talvez não possa ser dito do sentimento que os atenienses contemporâneos de Sófocles experimentaram ao vê-la. Qualquer coisa nela os deve ter inquietado, e talvez irritado, profundamente. Sabemos que de todas as peças de Sófocles esta é a única que não vence o primeiro prémio no festival das Dionísias. O mito de Édipo estava, de outro modo, bem estabelecido no imaginário ateniense e helénico. Em 467 a.C. Ésquilo levara a cena uma trilogia cujo tema é o mito de Édipo (as tragédias que compunham essa trilogia eram Laio, Édipo e a única peça que se conservou, Sete contra Tebas, o epílogo era um drama satírico intitulado Esfinge) e antes disso havia um poema épico, Edipódia, dedicado a Édipo.

No imaginário moderno a peça é tabu durante bastantes séculos. Datará do Renascimento a ideia, talvez mal concebida, de que ela é sobre hamartia, um erro trágico, o que tende a enfatizar a responsabilidade moral e a hybris de Édipo, mas o que ele tenta fazer ao sair de Corinto é evitar aquilo que conhece do seu destino, com o conhecimento do futuro que lhe é dado por Apolo, o que leva Jean-Pierre Vernant a dizer, contra Freud, e talvez não inteiramente em erro, que Édipo não sofre do complexo de Édipo. Rei Édipo, nesse sentido, é uma peça em grande parte sobre a impossibilidade de controlar o destino, sobre o papel da sorte na possibilidade de viver uma vida bem-vivida. Talvez Aristóteles esteja de facto certo sobre a peça ser sobre catarse, sobre a passagem através do fogo de uma destruição irreparável para a sua terrível aceitação, e também sobre aquilo que o amigo que foi comigo ver a peça, o classicista (e ao contrário de mim de facto especialista em teatro antigo) Roberto Morales Salazar, descreveu como a necessidade de ir ao teatro para chorar.

É só nas duas últimas décadas do século XIX que a peça se torna popular, ao ser repetidamente representada em Paris pelo brilhante actor Jean Mounet-Sully, recordado por Stravinsky pela sua atenção maníaca a pormenores historicizantes. É decisivamente alicerçada no imaginário do modernismo inglês por volta de 1912, quando Max Reinhardt a encena em Convent Garden em Londres a partir de uma tradução do lendário classicista australiano Gilbert Murray, professor de grego em Oxford. É, no entanto, outra encenação de Édipo feita por Reinhardt, um pouco mais cedo em Berlim, a partir de uma versão de Hugo von Hoffmannstahl, em 1910 (na versão que sabemos que Freud viu, embora especulemos que terá também visto a de Sully), com cenário e coro monumentais, que mudam a história do teatro no Modernismo, e também a história da relação deste período com a tragédia grega. A escolha de actor principal, talvez demasiado jovem para representar o papel à data, Alexander Moissi, parece ter criado uma inesperada intensidade dramática. A figura de Édipo foi mais tarde revisitada por T.S. Eliot, Cocteau e André Gide, entre outros.

O desconforto que o Édipo de Sófocles nos causa é inversamente proporcional ao conforto causado pela progressão perfeita do seu edifício lógico: vemos com toda a ironia a catástrofe desenrolar-se à nossa frente, mas enquanto audiência estamos confortáveis porque está a fazer todo o sentido. Isto é muito grego. Mas ver Édipo é observar um cenário teatral a ser lentamente desmontado diante dos nossos olhos, o teatro da vida de um homem: Édipo, alguém capaz de uma violência sem limite, de matar um rei por uma ofensa numa encruzilhada, mas também o mesmo homem que fugira de casa em Corinto para evitar a profecia escutada em Delfos, que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. A peça começa com o que está à superfície, com um rei preocupado diante dos seus cidadãos, com uma história anterior de investigador bem sucedido (é afinal Édipo quem decifra o enigma da esfinge) e que agora tem de descobrir quem é o assassino do rei anterior, e camada sob camada vemos Édipo afundar-se até se converter noutra pessoa, vemo-lo mudar e mudar de novo com a presença de Jocasta e de Creonte, até chegarmos àquela cena em que ele sugere que o único escravo que testemunhou o homicídio de Laio seja torturado (a maior parte dos estudiosos da peça notam o quanto isto é aberrante, em toda a tragédia grega, tanto quanto me lembro, há apenas outra cena em que um escravo quase é torturado, no Orestes de Eurípides, pelo imaturo e desesperado Orestes).

Achei que havia na encenação de Simos Kakalas algumas intuições óptimas e algumas decisões difíceis de explicar. Por exemplo, o facto de que todo o elenco da peça está vestido de negro e de modo sóbrio comunica de um modo inteligente a atmosfera de antecipação assustada e de luto que caracteriza a psicologia do coro. E a entrada do coro em cena talvez tenha sido uma das melhores entradas de um coro trágico em cena que observei em muito tempo. Um a um os actores vestidos de negro foram entrando em palco, segurando cada um a sua máscara. Simples e belo. Por outro lado, as máscaras pareceram-me uma má escolha por mais do que um motivo, a começar pelo motivo prático do enorme desconforto que devem ter causado aos actores num calor de 40 graus. Kakalas comentou esta decisão dizendo que queria que as máscaras fossem todas iguais, e que todos os actores as usassem (incluindo creio que em certos pontos Creonte e Édipo que se juntam ao coro), para dar a noção de que todos no fundo são iguais dentro da hierarquia da peça, isto é, dentro do que ela significa, que nem um rei está a salvo de um golpe particularmente cruel do destino. Esta linha argumentativa a mim parece-me talvez ingénua. Uma grande parte da tensão que sustenta a peça é o facto de que Édipo é um autocrata há um longo tempo no poder e, como se vai ver na atitude que ele adopta perante o coro e sobretudo perante Creonte, o irmão de Jocasta de quem ele desconfia porque o vê como um rival, é o representante de uma sociedade extremamente hierarquizada, e alguém que não é inteiramente imune à paranoia que o desejo de se manter no poder normalmente inspira em quem está habituado a ter o controlo.

Édipo, não é, definitivamente, igual a toda a gente. E o seu infortúnio também não o torna igual aos outros, o segredo que explica a sua origem é um golpe particularmente cruel, poucas tragédias são tão cruéis para com a sua personagem principal quanto o enredo de Rei Édipo o é para Édipo. Não me parece que Édipo seja então uma peça cujo objectivo do seu imaginário moral seja o da humildade para fins de igualdade social perante a catástrofe, não sei de resto o que pode vir dessa ideia que não me pareça mesquinho ou opressor. Esta noção parece-me correr o risco de obscurecer o facto de que apesar de tudo é Édipo quem vê, e escolhe ver, a verdade que o destrói e que há nele a lucidez de tentar chegar a essa verdade, ainda que isto aconteça a partir de um lugar de poder e privilégio, o seu triunfo, a verdade que ele acaba por descobrir, é também a sua destruição. (Sófocles é o grande tragediógrafo das conquistas amargas.) Esta noção parece-me ainda reduzir Édipo de outra forma, a sua identidade não se circunscreve inteiramente ao golpe que o destrói e sabemos que isso é particularmente verdade para Sófocles, que regressaria à figura de Édipo na sua última obra-prima, o estranhíssimo Édipo em Colono, uma peça sobre um Édipo zangado que amaldiçoa Tebas e vem morrer à aldeia (subúrbio) de Atenas de onde o próprio Sófocles era oriundo. A polis ateniense, talvez disfarçada de Tebas para os propósitos de Sófocles, por outro lado era, como em certo sentido o é a sociedade ocidental em que vivemos, um lugar profundamente desigual, em nenhuma parte isso é tão visível nesta peça quanto na angústia do coro. Parece-me uma oportunidade desperdiçada mascarar – literalmente – isso.

As máscaras, que supostamente trariam igualdade porque são todas iguais, por outro lado, como comentava o amigo que viu comigo a peça, desumanizam o coro, que é talvez um dos coros mais humanos de toda a tragédia clássica: é um coro devastado por uma doença que paira sobre a cidade, que carrega consigo uma memória da história anterior de Tebas, que está preocupado com a sobrevivência da comunidade a que pertence e que em muitos sentidos é mais inteligente do que Édipo. É uma comunidade com vários rostos, com múltiplas vozes. O facto de que Kakalas resolveu que os seus autores não iam usar microfone no espaço do anfiteatro sabotou ainda mais o coro, o material das máscaras tornava difícil de ouvi-los e sabemos que não era esse o caso com o material de que eram feitas as máscaras na antiguidade, que ajudavam a amplificar o som. Mas cada encenador tem de resolver o que fazer com o seu coro e os coros da tragédia grega são normalmente difíceis de resolver. Podem ser uma enorme vantagem ou uma enorme desvantagem.

Por outro lado, agradou-me o actor que fazia de Édipo (Yannis Stankoglou), é difícil comunicar e sustentar a tensão entre segurança e poder absolutos e melancolia auto-destrutiva através da qual o tirano de Tebas acaba por entender, na difícil relação entre hereditariedade e identidade, o peso que a história da sua origem e o seu passado têm sobre o seu presente.

Desagradou-me, sem possibilidade de redenção, a escolha da actriz que fazia de Jocasta. Começou no facto de ela ter exactamente a mesma idade do actor que fazia de Édipo (também não me convence a opção mais tradicional de optar por uma actriz conspicuamente muito mais velha do que Édipo, segundo o que sugere a cronologia do mito haveria talvez uns quinze anos de diferença entre ambos), mas uma Jocasta que parece obviamente mais nova do que o filho é um problema que pode facilmente afundar toda uma produção desta tragédia (e teve para mim, sem dúvida, em certas cenas, um efeito cómico). Numa boa encenação de Édipo o centro da força dramática da tragédia repousa sobre Jocasta, a primeira grande onda de choque e terror que atinge a audiência chega através dela. Ela é mais velha e mais inteligente do que Édipo, ela entende muito antes o que ele não pode entender e ao contrário dele é incapaz de sobreviver à verdade que é colocada diante de si.

Tendo dito tudo isto, tinha-me esquecido da beleza de certos momentos do texto do Sófocles. Isto é particularmente verdade dos passos corais que se seguem às últimas saídas de Édipo de cena. Para mim continua a ser sempre um privilégio que não é bem deste mundo poder ver uma tragédia grega em Epidauro.

 

Oxford, 8-10 de Setembro de 2023

Rei Édipo, Encenação de Simos Kakalas, Festival de Teatro de Atenas e Epidauro, 2023

 

Os gatos de Atenas

Quando chego a Atenas dou a ouvir a um amigo uma canção que Chico Buarque escreveu em 1976, “As mulheres de Atenas.” Traduzo-lhe a letra às três pancadas, por baixo da voz de Chico, à pressa. Ele escuta fascinado. Comentamos que alguns versos parecem datados, a começar pelos primeiros: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas,” mas até isso é complicado e discutível. As mulheres de Atenas na canção de Chico são um exemplo de estoicismo, força, paciência, mas os seus homens, à medida que a canção os descreve, são o contraponto, o exacto oposto, bebem em excesso, e ocupam-se da guerra, e deixam-nas à espera enquanto se vão encontrar com outras mulheres, e elas parecem aceitar tudo isso com um orgulho indiferente. O seu orgulho complica ou não a letra? E que mulheres de Atenas são estas? De quando? Provavelmente as clássicas, mas podiam facilmente ser as de hoje, ou as da história da Grécia recente, aquelas mulheres que bordam em longas quarentenas, enquanto os homens desaparecem para ir para a guerra. Contra quem? Não sabemos. Todas as personagens nesta canção são personagens-tipo. De Chico Buarque passo para Elis Regina e para aquela canção em que ela balança vulnerabilidade, dança e desequilíbrio, “Dois p’ra, dois p’ra lá.” Lembro-me enquanto tocamos a canção que o meu amigo tem as portas das varandas do seu apartamento todas abertas, e que todo o bairro estará agora a sofrer esta minha introdução intempestiva e desordenada a alguns cantores brasileiros. Chegamos a Chico Buarque não sei muito bem como, mas a última canção que me lembro de estar a ouvir antes de entrar no avião era “Make you feel my love.” O melhor verso dessa canção, digo eu, é aquele que introduz um desequilíbrio em tudo o que Bob Dylan diz, é o último desta estrofe:

The storms are raging on the rolling sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet 

Estes versos podem ser auto-referenciais (rolling sea faz pensar em “Like a rolling stone,” “on the highway of regret,” lembra “Highway 61 Revisited” and “the winds of change,” talvez atropele “Blowing in the wind” em “The times they are a-changing”), mas não há como escapar, no verso “you ain’t seen nothing like me yet,” ao facto de que é um verso impregnado por uma auto-confiança que é contradita pelos três versos anteriores, mas é também um verso, equilibrado como está numa teia de referências a outras canções de Dylan, sobre auto-emulação, sobre os poderes de reinvenção de um poeta inesgotável. “To make you feel my love” é uma canção de 1997.

            A minha canção de Atenas, dou-me conta disto enquanto escrevo estas linhas, não é música, mas um gato, ou melhor, o ritmo de um gato específico quando nos cruzamos num certo ângulo. Ou as revelações que a presença desse gato por vezes parece conter, em termos da cronologia das metamorfoses da minha relação com a cidade, do ritmo da minha cíclica existência nela. A pergunta que me faço, sempre que me encontro com este gato é: sou ainda uma turista nesta cidade ou não? Quando ao certo se deixa de ser turista numa cidade? Há mais de uma década, nas minhas primeiras viagens a Atenas, o bairro onde eu fico costumava ser para mim as poucas coisas que sabia dele de sobre ele ter lido em guias turísticos, era o bairro do Museu Nacional de Arqueologia e também o bairro onde está o Politécnico, onde, durante a chamada Revolta do Politécnico, a partir de 14 de Novembro de 1973, os estudantes fizeram greve e entraram em protesto contra o Regime dos Coronéis. A revolta foi esmagada pelo regime a 17 de Novembro, e terminou com um total de 24 mortos. Hoje em dia, nas ruas desse bairro, justapõe-se a essa história, a minha história nele, que se desenrola em redor dos apartamentos onde fiquei ao longo dos anos, dos apartamentos onde vivem os meus amigos, onde às vezes fico, de bares, cafés e restaurantes, onde aconteceram para mim tantas coisas que sei hoje que estas ruas não são apenas paisagem. O que é ao certo a pertença a um lugar? Qualquer coisa entre o deslumbramento e a pena? Não sei. Digo, a alegria sem medida do regresso a pessoas que amei. Até àqueles que já não podem ser encontrados aqui.

            O que me leva ao gato, à minha relação com aquele gato de rua que vive já um pouco fora do meu bairro, um pouco mais acima dele, numa esquina do Monte Licabeto, esse lugar que faz pensar em Aristóteles, perto da padaria onde, quando estou em Atenas, costumo ir tomar o pequeno-almoço, um espaço que não é café, mas uma espécie de balcão virado para a rua, onde se vende café, pão, e alguns bolos de pequeno-almoço. Na esquina do prédio onde está essa padaria, há uns três ou quatro anos, alguém que vive no prédio adjacente, adoptou e não adoptou um gato preto de rua, deixando-lhe um cesto no degrau do prédio e água e comida ao lado do degrau, já quase diante da padaria. Ao longo do tempo eu vi-o passar de gato bebé com não muitas hipóteses de sobrevivência a gato adolescente e daí a gato adulto, confortável na vida do bairro, príncipe e pedinte, como só os gatos de rua de Atenas sabem ser. Em nada como na sua relação com os gatos de rua é visível a generosidade e a crueldade dos atenienses, o que há de melhor e pior na cidade emerge no modo como as múltiplas colónias de gatos são tratadas pelas pessoas nos bairros onde os gatos vivem. Os gatos de Atenas, que não existiam na antiguidade clássica, são hoje um símbolo da cidade.

            Nesta viagem, dei conta, muito embora o cesto estivesse no sítio, que o meu gato não andava perto do cesto. Nos primeiros dois ou três dias isto não me preocupou, mas ao fim desses dias uma nuvem de fumo dos incêndios que assolaram Atenas desceu sobre a cidade e, quando eu estava prestes a ir-me embora por alguns dias, para uma cidade do norte onde tinha um compromisso, o cesto foi removido. Vi o desaparecimento deste cesto como um símbolo do lado violento e cruel de Atenas, do tipo de descuido que banaliza o lado precioso da vida, uma forma de indiferença alicerçada em descuido. Quando voltei, três dias mais tarde, o ar na cidade tinha voltado a ser respirável, mas o cesto continuava desaparecido. Não sei como, por que milagre, no meu último dia havia um novo cesto, e no novo cesto o mesmo gato, com o seu inconfundível focinho manchado de cinzento, fitou-me de dentro dele, como se entre nós nunca se tivesse desenhado o horizonte de angústia e ausência com que o imaginei desaparecido. De que me tinha esquecido eu? O que é que eu não tinha entendido? As mãos destas pessoas, talvez de um prédio inteiro, que resolveram que este gato é parte do seu prédio, e que nos dias de calor irrespirável talvez o tenham recolhido e depois trocaram-lhe o cesto de inverno por um de verão. A solidariedade é uma tecnologia simples e por vezes irracional, teimosa como a improbabilidade da vida. O seu efeito secundário é o mundo tornar-se um lugar menos cruel. “You ain’t seen nothing like me yet” é o que na minha imaginação aquele gato canta a partir do seu cesto.

Uma viagem pela Europa, cidades (parte III)

De onde és? Uma pergunta simples e frequente com uma resposta difícil, se quisermos ser verdadeiros. O local de nascimento será assim tão determinante? A socialização primária define o que seremos para o resto da vida? Ficámos com alguma dívida natural relativamente a um qualquer local? Somos de um só sítio ou de vários? Podemos dizer, como Kavafis, que devemos partir de Ítaca e prolongar o mais que pudermos o regresso? Nunca regressar? Renegar, até? Pensar com atenção o elogio que Édouard Louis faz à sua família meio iletrada, homofóbica e racista por o ter obrigado a partir (um pouco à semelhança de Didier Éribon). Sei hoje que se Bragança fosse um sítio mais habitável não tinha partido com tanta facilidade, e isso talvez fosse mau para mim, teria quase de certeza parado de me superar antes dos trinta anos, como aconteceu com os que ficaram ou retornaram a essa cidade que definiu o autocontentamento como estratégia para resistir à auto-dissolução (uma forma de ficar parado e acreditar que se avança).

A minha pátria é a Europa, a de agora e a dos últimos 30 séculos. Exagero? Sim e não. A forma como penso e sinto encontra sempre neste continente, no de agora e no de antigamente (múltiplo e heterodoxo), similitudes, na Europa nunca sinto uma solidão estéril ou uma fúria destrutiva. E será bem isto que procuramos na pátria, algo que nos acolha e nos proteja das trevas (numa noite fria sem luar, num monte isolado experimentamos as trevas), exteriores e interiores.

Claro que há várias Europas, mas ainda é fácil encontrar muitos sítios e pessoas que preferem uma poesia a uma chave inglesa, uma estante de livros a uma televisão dita inteligente, uma sinfonia a um martelo. Um critério mais modesto, mas com um grande poder discriminatório, seria o de escolher viver num sítio no qual as pessoas, num plural alargado, quando fossem à praia se preocupassem seriamente em deixá-la mais limpa do que a encontraram. Ou onde houvesse associações de moradores que cuidassem sistematicamente de colónias de gatos assilvestrados e dos jardins públicos, com as próprias mãos e reportando ao poder público as situações de mau funcionamento. Claro que, podendo pedir mais, gostaria de viver numa cidade temperada com uma ágora cheia de gente a falar do bem, do belo e da verdade (como nos diálogos platónicos, com extrema atenção ao que o outro diz, à procura de esclarecer uma dúvida, um enigma... e que bom seria encontrar novamente Sócrates, esse parteiro de inteligências). Haveria também tabuleiros de xadrez, e cada jogador saberia dispor as peças de forma tão rigorosa que só com ousadia, coragem e inventividade se conseguiria ganhar vantagem.

Museo del prado, madrid

Na Europa real que visitámos, estivemos perto e longe do meu ideal (um ideal puramente sonhado, não creio que mereça a realidade que imagino). Longe em França (Lyon e Brive) perto em Pádua, Itália, e Freiburg im Breisgau, Alemanha. A uma distância ambígua em Turim, Itália, e Madrid, Espanha.

A ambiguidade, primeiro. Em Turim fomos influenciados pela desagradável Brive (é assim que se inflacionam as avaliações, experimentem ler o poeta razoável depois de um mau poeta, desses que ganham concursos reservados a naturais do concelho e nascidos depois de 1990 — isto existe, sabei-lo bem, e o ou a premiada jubilam com o prémio e as oportunidades editoriais que parecem emergir desenfreadas nesse mesmo dia). Mas tivemos também a percepção de uma cidade suficientemente grande para causar um frenesim vibrante, com praças amplas, um rio que no Inverno deve ser exuberante, ruas e mais ruas cujos edifícios se elevam por cima de arcadas (ruas de comércio intenso antes da invenção dos centros comerciais que no final do séc. XX enxamearam o velho continente, copiando o sucesso da sociedade de hiperconsumo americana), com ainda algumas lojas interessantes, mas sobretudo servindo de resguardo contra a chuva e o sol (inclemente, nalguns dias de Verão). Percebemos por que razão Friedrich Nietzsche adorava Turim, onde teve um dos anos intelectualmente mais prolíficos (1888, escreveu o Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche Contra Wagner, O Caso Wagner e Ecce Homo), até colapsar nessa mesma cidade em Janeiro de 1889. Antes do aquecimento global, Turim era uma cidade temperada, suficientemente cosmopolita para acolher um apátrida, com uma boa agenda cultural. Nietzsche gostava das ruas e das pessoas, mais discretas do que as de Génova ou Nápoles. Agradava-lhe também o baixo custo de vida, alugava-se um quarto e comia-se bem por pouco dinheiro (e ele tinha pouco dinheiro). Hoje, continua a ser uma cidade acessível: é possível jantar por cerca de vinte euros, um apartamento numa rua central de duas assoalhadas custa entre 150 000 e 200 000, um gelado de pistáchio, duas bolas, cerca de três euros. Além disso, é uma cidade que gosta de ténis, realiza há uns anos o Master ATP Finals (oito melhores tenistas do ano). Se vivesse lá, seria uma semana de ténis fantástica. A tudo isto acresce estar perto dos Alpes.

Puertas del Sol, madrid

Madrid tem três magníficos museus, sobretudo de pintura (pinacotecas), num raio de 600 metros: Museo del Prado, Reina Sofia e Thyssen. Grátis para professores, mesmo estrangeiros. A ideia de um professor culto parou a meio caminho em Portugal (ficámos muitas vezes a meio caminho, por falta de ousadia com certeza, por cansaço metafísico também, mas igualmente porque não sabemos como percorrer a parte que falta). O parque de El Retiro, grande, central, cuidado, diverso, perfeito para uma tarde de leitura nos dias mais quentes. Restaurantes pouco caros e que servem bem. O limite de velocidade dos automóveis é de 30 km/h, isto torna imediatamente a cidade mais habitável, menos agressiva, mais lenta, menos ruidosa. Cidade limpa, cujo metro é um excelente meio de transporte, racional, previsível, fiável, sem as greves tontas do de Lisboa. É perfeitamente exequível viver e trabalhar em Madrid sem usar o automóvel (o dinheiro que se poupa sem esta prótese quase imprescindível em Lisboa ou Porto, dá para viver três ou quatro anos com uma licença sem vencimento, o tempo de escrever um romance). Há teatros, cinemas, livrarias, esplanadas, universidades, um aeroporto internacional a sério... Uma cidade de que não teria partido se por acaso tivesse nascido lá. Dois problemas, contudo: o preço da habitação, ao nível, talvez até um pouco mais, de Lisboa, e as altíssimas temperaturas, dia e noite, de Verão. Mas, vá lá, com muita sorte teria nascido numa família endinheirada e podia escapar durante as canículas para lugares mais frescos. Ou ia ao Prado, todos os dias, ver quadros e pessoas (considero que quem vai voluntariamente aos museus são os melhores da humanidade, não sei se moralmente, nem isso me interessa muito, mas nos gestos de observação. Eles revelam a curiosidade que almeja compreender e consolar-se com o belo ou o sublime (guardo este sublime para a arte contemporânea pela sua capacidade de gerar o pânico do fim da arte). Ver um grupo de japoneses a tentar decifrar meticulosamente o Las Meninas, não por exotismo, mas à procura de algo que ligue a pintura europeia à arte da gravura do seu país, dá-me um prazer que raramente obtenho noutras realidades.

José de Ribera, San andrés, c. 1631, museo del Prado

A trilogia museológica de Madrid que referi há pouco pode ser suficiente para desenhar um projeto de vida. Não vislumbro qualquer absurdo em passar pela vida dessa forma, não vislumbro sequer qualquer tédio, seria uma vida feita mais de diferença do que de repetição. Por exemplo, no Prado tive a fase Velázquez, a fase Goya, a fase El Grego, a fase Ticiano, a fase Rafael… agora estou na fase José de Ribera. Por outro lado, contemplar uma pintura activa todo o entendimento e inúmeros códigos de leitura (os mais próximos do mundo da arte, certamente, mas igualmente conceitos filosóficos, avaliações e especulações económicas, grelhas históricas, estratégias políticas, estatísticas sociológicas…). Desta vez, no Reina Sofia havia uma exposição com o título «De la máquina a las maquinaciones». Partindo dos pensadores franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, expuseram-se artefactos e documentos que pretenderam mostrar como a categoria de «máquina» pode, com proveito explicativo e performativo, substituir a de «estrutura». Uma revolução filosófica, social e política.

Explicação da exposição temporária no museo Reina Sofia, madrid

Cidades preferidas, aquelas nas quais gostaria de viver pelo menos durante alguns anos: Freiburg e Pádua. Na primeira, o que mais imediatamente me convenceu, persuasão pré-reflexiva, foi a sensação de que os habitantes vivem a cidade por inteiro, não num ou noutro lugar, mas na cidade. Porque o centro se vai alargando sem nunca criar periferias, margens com uma autonomia feita de discriminação (estética, económica e cultural). Por isso, circula-se de bicicleta ou a pé, sempre a uma velocidade moderada (lembro-me de em Bruxelas os ciclistas serem uns aceleras muito perigosos). A universidade tem o lastro negativo do reitorado de Martim Heidegger (de Abril de 1933 a Abril de 1934), do seu apelo aos estudantes para que seguissem o Führer, da sua participação no saneamento dos professores judeus. Mas tem também o lastro positivo de alunos como Max Weber, Hannah Arendt ou Walter Benjamin, e continua a ser filosoficamente relevante. Há, e isto é importante para mim (sou um falso sulista), água a correr por pequenas valas domesticadas nas ruas do centro mais central. É uma espécie de sistema de irrigação permanente que antes de se alojar na terra circula perto das pessoas, recordando-lhes que a água não nasce nas torneiras e oferecendo um som que alegra qualquer coração aberto ao mundo. Ao fim-de-semana há um mercado de produtos naturais no largo da catedral (Das Freiburger Münster). Uma magnífica banca de cogumelos, ameixas e pêssegos divinais, mas o que mais nos agradou, pelo que projecta, foi haver cerca de meia dúzia de grandes bancas de flores, variadas e belas. Isto significa que os habitantes gostam de embelezar as casas, de o fazer com coisas naturais em vez de bugigangas e ecrãs de televisões gigantes. Se pudermos escolher, devemos habitar um lugar que deseja o belo e o limpo, as pessoas são aí mais afáveis e discursivas (em vez de rudes e fala-baratos). A localização também é importante: junto à floresta negra, na qual as clareiras aparecem como o esplendor da luz que atravessa momentaneamente a noite; perto da Suíça, do lago de Constança, a meio dia de viagem dos Alpes; a um passo de França (Mulhouse, Strasbourg). Além disso, de suma importância, o alojamento tem preços que um ordenado médio pode pagar sem se privar, como acontece tantas vezes nas cidades maiores de Portugal, de comprar livros (esse supérfluo essencial).

rua do centro de Freiburg im breisgau, alemanha

Quanto a Pádua, amor à primeira vista, não sentimos qualquer força centrífuga, teríamos ficado lá vários dias, semanas, meses. A bela sonoridade da língua italiana (também me agrada a do alemão), as ruas antigas compostas por arcadas (mais orgânicas do que as de Turim, parecidas com as de Toledo), as igrejas (a magnífica Basilica di Sant’Antonio di Padova, a capela de Scrovegni), cafés a 1€, bicicletas em vez de carros, a simpatia dos habitantes, os cursos de água. É difícil explicar as razões todas por que nos deixámos abraçar por um genius loci, há qualquer coisa que nos primeiros tempos de vida num local escapa ao raciocínio, o encontro antes de ser cerebral é corporal (a «grande razão» de Nietzsche), olhamos, ouvimos, cheiramos, sentimos a pressão atmosférica… e isso é processado por mecanismos hermenêuticos anteriores aos conceitos. «É isto mesmo!», dizemos. Depois vem a análise, porque não vivemos na rua, porque compramos comida, porque nos nutrimos também de cultura, porque queremos viajar. Neste caso, temos o norte de Itália à disposição, os Alpes não estão longe, cinco/seis horas para chegar a Viena de Áustria (uma capital que não se envergonha de ser asseada), os Balcãs para mergulhar no mar Adriático a preços aceitáveis. E depois, um bom apartamento de três assoalhadas, bem situado, ronda os 200 000 euros; uma pechincha, comparados com os preços nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O único, por enquanto, senão: as temperaturas elevadas nos meses de Verão, acompanhadas de bastante humidade.

Rua no centro de Pádua, itália

Da pátria mínima de Steiner (será onde tivermos uma mesa de trabalho com café à disposição), à da língua de Fernando Pessoa, da Heimat nazi à Ubi bene, ibi pátria (a pátria é onde estamos bem) de Chateaubriand, do nomadismo nietzschiano ao sedentarismo fingido de Kant, do enraizar nacionalista ao deslizar cosmopolita, do sacrífico individual pós oitocentos (quantos hinos apelam ao sacrifício bélico — «pela pátria lutar»?) à sagração, narcísica muitas vezes, de cada ser humano, com um valor de uso incomensurável ao do território, do povo e da história. Só o hábito e a burocracia nos dão, sem qualquer processo de questionamento, uma nacionalidade, vínculo jurídico e afectivo (o primeiro chega para alguns). Agostinho da Silva, esse rebelde sensato, saiu do jogo. Talvez devêssemos fazer o mesmo, nos nossos próprios termos, sermos nómadas lentos: três anos em Pádua, três em Freiburg, três em Madrid… Nómadas analógicos, contudo. Habitar inteiramente os lugares, também com a força transformadora do trabalho, mas apostando sempre na sobriedade como arte de viver. Contribuindo, decidindo ficar ou partir, para uma boa gestão dos fluxos nómadas para que as assimetrias não despovoassem ou sobrepovoassem vilas e cidades, evitando a lógica perversa do sobreturismo actual.

Ó meu deus de Vasconcelos

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994

O primeiro livro de Mário Cesariny que comprei foi a primeira edição de Pena Capital, acabada de lançar pela Contraponto.  Passava-se isto em 1957 e eu estava em Lourenço Marques.

É um livro do qual nunca me separei. Uma voz reveladora, cheia de sedução e desafio. Um livro originalíssimo que marcou uma geração. E foi com esse livro na mão que, anos mais tarde, apresentado por Alberto de Lacerda, conheci Mário Cesariny em Londres.

O nome do autor na capa do livro ainda incluía o apelido Vasconcelos. Mas Mário Cesariny foi o nome com que assinou a breve dedicatória que lhe pedi e me fez. Data da assinatura 1964. Local da dedicatória, Lisboa. Ao reparar no engano, Mário disse: “Fica assim e faz de conta!”. E esse seu “faz de conta” fez sentido.

Lisboa, nessa altura, era para mim uma cidade perdida desde o começo da minha adolescência. A Londres que me acolhera constituía o meu mundo. Mas Mário tinha chegado de Lisboa e Lisboa está presente no seu livro. Uma Lisboa que me deixava saudoso e que Mário recuperava com imagens como a do eléctrico “amarelíssimo”, “a bela mancha diurna dos calceteiros na praça”, e a “gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro”. Aquele Lx. que Mário pôs na dedicatória deu-me uma aproximação à Lisboa de onde me tinham levado há tanto tempo.

Mário regressou a Londres para uma estadia mais longa e a certa altura hospedei-o em minha casa. Por coincidência e para meu prazer, foi lá que escreveu parte do livro Poemas de Londres.

Mas foi com essa primeira edição de Pena Capital que o mundo de Cesariny se me revelou. E creio poder dizer que essa primeira edição foi o livro que o lançou. Quem não se lembrará de versos comos os que abrem o poema A Antonin Artaud?

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.

E mais adiante:

Como assim Mário   como assim Cesariny   como assim
      ó meu deus de Vasconcelos?

E quem não se assarapantou com o extraordinário menu do pic-nic evocado na Homenagem a Cesário Verde?

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas
cosidas

Quem não se deixou arrebatar com poemas como Corpo Visível e Autografia e Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos? Esses, e outros e sempre. Outro livros apareceram e outras edições revistas de Pena Capital foram surgindo. Nenhuma com a irreverência dessa primeira edição.

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Mário Cesariny proponho que a melhor homenagem a prestar-lhe seria o relançamento da versão original do livro excepcionalíssimo que é Pena Capital. E quanto ao nome do poeta, é melhor que fique inteiro: Mário Cesariny sim, mas certamente também de Vasconcelos.

Uma viagem pela Europa, hotéis (parte II)

A cabana de Martim Heidegger em Todtnauberg

Durante a nossa viagem pela Europa alugámos oito quartos de hotel. Preferimos os hotéis tradicionais a outras formas de alojamento locais, sobretudo quando pernoitar apenas uma ou duas vezes.

Habitar efemeramente um espaço diferente da nossa casa tem, para nós, uma dimensão predominantemente funcionalista, distanciamo-nos das funções classistas ou fetichistas. Um quarto de hotel deve responder ao objetivo para o qual foi alugado, no nosso caso para uma boa noite de sono e um pequeno-almoço decente.

Há uns anos, as reservas e alugueres eram difíceis e os resultados imprevisíveis. Fora do circuito das agências de viagens (e mesmo nestas havia muita aldrabice), era bastante complicado saber que hotéis tinham quartos disponíveis, a que preços e com que qualidade (daí, parece-me, a catalogação por estrelas e a importância do nome da cadeia). Muitas vezes, só no local, seguindo a sinalética de rua, se conseguia obter a informação devida. Era ainda necessário interpretar certos indícios para projetar a qualidade do quarto e do pequeno-almoço (aspecto da recepção, simpatia dos empregados, estilo dos hóspedes, características do edifício, localização…) ou visitar o alojamento, quando autorizavam. Havia também alguma informação de viajantes anteriores, mas o boca-a-boca tem riscos: raramente se diz mal das próprias férias, seria assumir o fracasso numa área que quase só combina com felicidade.

Hoje, é possível escolher os hotéis guiando-nos pelas avaliações de hóspedes anteriores e, claro, imagens e outras informações fornecidas pelos próprios. A plataforma que mais utilizamos, creio que domina o mercado, é bastante fiável, mesmo para neófitos. Avaliações de diferentes parâmetros (limpeza, simpatia, conforto, pequeno-almoço, localização…) de um a dez e uma geral na mesma escala. Uma comunidade de utentes que após um certo número de avaliações define a qualidade do hotel. Normalmente não escolhemos abaixo do oito (muito bom), mas as avaliações, como nas escolas e universidades, estão inflacionadas.

O pior de todos, em Brive, França. Tudo era mau e feio, excepto o estacionamento. Pintado de roxo e cinzento oficina de automóveis, o fundo das portas (saída e WC) apodrecidas, a carpete com manchas de inundações, a recepcionista que não falava inglês e me corrigiu, mal, o meu francês, um pequeno-almoço de caserna. Quando entramos no quarto senti um pequeno arrepio, parecia um cenário à Twin Peaks. Dir-me-ão que foi mal escolhido e barato. Estava um pouco abaixo do limiar dos oito pontos na avaliação, mas foi o hotel mais caro de todos. Explicação? Brive está longe de ser uma cidade turística, como disse na primeira parte deste relato de viagem, encontrámos vários restaurantes fechados num sábado à noite para descanso do pessoal. Não há uma economia da emulação e da competição turística que lhe dê um certo nível de competência. Também não há um gosto individual e colectivo pela hospitalidade, algo habitual, aliás, nos franceses.

Hotel de Turim

O melhor de todos, em Burgos, Espanha (Crisol Almirante Bonifaz). Tudo previsível, competente, profissional, limpo. Apesar de ficar numa rua central e movimentada, nem um pequeno ruído no quarto. WC com utensílios de higiene pessoal em bambu, uma nota personalizada de boas-vindas, alguns chocolates e duas garrafas de água (não de plástico) de oferta. O melhor pequeno-almoço de todos, normalmente não se cuida muito dos vegetarianos. Próximo deste, o de Pádua, centralíssimo, cheio de peregrinos (Hotel Casa Del Pellegrino), na recepção foram extremamente amáveis e prestáveis. No pequeno-almoço havia uma grande diversidade de compotas caseiras e vários tipos de leite. Tratam bem os vegetarianos. E foi o mais económico de todos, quase metade do preço do de Brive. Antes de Pádua, o Best Quality Hotel Dock Milano, impecáveis na recepção, com a maravilhosa sonoridade da língua italiana, a jovialidade de uma cultura há muito habituada a receber estrangeiros, um edifício dos meados do século xx com um chão magnífico de calçada fina romana, a dois passos, sempre debaixo de arcadas, do centro. Tem, além disso, muito perto uma geladaria com um extraordinário gelado de pistáchio (este fruto é já referido no À la recherche du temps perdu, Du côté de chez Swann, de Proust como o suprassumo dos sabores em gelados), melhor e mais barato do que o da Avenida de Roma em Lisboa.

Mas o mais sedutor foi o Hotel Zum Schiff de Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Martim Heidegger foi professor (e reitor durante pouco tempo, em plena ascensão do movimento nazi) nesta cidade e a sua famosa cabana (aldeia de Todtnauberg), na qual terá escrito uma parte importante da sua obra, fica a cerca de seis horas a pé (era assim que o filósofo, mais antissemita do que se pensou até há pouco, gostava de se deslocar, através da floresta negra). Não fizemos a romaria filosófica, estávamos sem fé metafísica. Quando chegámos à recepção pareceu-me ver um americano com ar de quem iria repetir os passos do autor de Sein und Zeit. As informações que pediu, as respostas que obteve, o ar de peregrinação filosófica (peregrinação extrema, colonizados pela filosofia analítica, os americanos que lêem Heidegger devem ser excêntricos no pensar e academicamente suicidas), o livro de 1000 páginas que não largava da mão esquerda, tudo remetia para um missionário pronto a resgatar o «pensar autêntico» das garras de técnica. Perceber a amabilidade da recepcionista com aquele hóspede surpreendeu-nos e, claro, descansou-nos. Confesso que não tínhamos associado a simpatia a Freiburg. E foi assim que desfizemos o preconceito, alimentado também pelas fotografias do hotel, quando reservámos, em cima da hora, o quarto (aparenta ser muito anos 80). Simpáticos, competentes, óptimo pequeno-almoço, edifício com alma, um quarto enorme, vista para a floresta (pela qual talvez caminhasse Heidegger), cama confortável, almofadas perfeitas (o critério das almofadas pode bastar para definir a qualidade de um hotel, não há hotéis bons com más almofadas, e o inverso também é verdade). Mais uma nota, a ficha de avaliação em papel colocada na mesa do quarto tinha os campos habituais, conforto, limpeza, simpatia, pequeno-almoço…, mas havia uma novidade: informative. Isto diz muito da cultura alemã (simplifico ao uniformizá-la). Foi assim, também contra Heidegger, que derrotaram uma metafísica bolorenta mais preocupada com o aprofundamento, quase delirante, da subjetividade do que com a descrição e a resolução dos problemas da vida colectiva. Às vezes penso que o nosso lirismo barroco e o falatório para-discursivo do futebolês deviam ser esmagados a golpes de martelo informative. Não para alimentar as máquinas do lucro, predadoras incansáveis, mas para tornar os humanos melhores (continuo aristotélico, apesar de Nietzsche).

Hotel de Pádua

Mais duas ou três notas. Primeira, sempre que nos instalámos num hotel verificamos as saídas de emergência, construímos um esquema de autoproteção. Segunda, quando pesquisámos os hotéis pusemos dois critérios fixos: estacionamento e pequeno-almoço. Mas só nos de Brive e de Freiburg é que não pagámos pelo parqueamento fornecido pelo hotel. Nos outros, ou despendemos cerca de 15% do preço da estadia para estacionar, ou, como em Burgos, Turim e Pádua, tivemos de estacionar na via pública, sem muitos problemas contudo. Finalmente, depois de reservar é bom tentar esclarecer por correio electrónico os aspectos menos claros, ficamos mais informados (regressa o informative) e mostramos que não nos podem comer por lorpas, mas cuidado o excesso de prudência costuma transformar-se em desconfiança («cinismo ingénuo», nos termos da psicologia) e isso é mau para a literatura e a vida.