Os gatos de Atenas

Quando chego a Atenas dou a ouvir a um amigo uma canção que Chico Buarque escreveu em 1976, “As mulheres de Atenas.” Traduzo-lhe a letra às três pancadas, por baixo da voz de Chico, à pressa. Ele escuta fascinado. Comentamos que alguns versos parecem datados, a começar pelos primeiros: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas,” mas até isso é complicado e discutível. As mulheres de Atenas na canção de Chico são um exemplo de estoicismo, força, paciência, mas os seus homens, à medida que a canção os descreve, são o contraponto, o exacto oposto, bebem em excesso, e ocupam-se da guerra, e deixam-nas à espera enquanto se vão encontrar com outras mulheres, e elas parecem aceitar tudo isso com um orgulho indiferente. O seu orgulho complica ou não a letra? E que mulheres de Atenas são estas? De quando? Provavelmente as clássicas, mas podiam facilmente ser as de hoje, ou as da história da Grécia recente, aquelas mulheres que bordam em longas quarentenas, enquanto os homens desaparecem para ir para a guerra. Contra quem? Não sabemos. Todas as personagens nesta canção são personagens-tipo. De Chico Buarque passo para Elis Regina e para aquela canção em que ela balança vulnerabilidade, dança e desequilíbrio, “Dois p’ra, dois p’ra lá.” Lembro-me enquanto tocamos a canção que o meu amigo tem as portas das varandas do seu apartamento todas abertas, e que todo o bairro estará agora a sofrer esta minha introdução intempestiva e desordenada a alguns cantores brasileiros. Chegamos a Chico Buarque não sei muito bem como, mas a última canção que me lembro de estar a ouvir antes de entrar no avião era “Make you feel my love.” O melhor verso dessa canção, digo eu, é aquele que introduz um desequilíbrio em tudo o que Bob Dylan diz, é o último desta estrofe:

The storms are raging on the rolling sea
And on the highway of regret
The winds of change are blowing wild and free
You ain't seen nothing like me yet 

Estes versos podem ser auto-referenciais (rolling sea faz pensar em “Like a rolling stone,” “on the highway of regret,” lembra “Highway 61 Revisited” and “the winds of change,” talvez atropele “Blowing in the wind” em “The times they are a-changing”), mas não há como escapar, no verso “you ain’t seen nothing like me yet,” ao facto de que é um verso impregnado por uma auto-confiança que é contradita pelos três versos anteriores, mas é também um verso, equilibrado como está numa teia de referências a outras canções de Dylan, sobre auto-emulação, sobre os poderes de reinvenção de um poeta inesgotável. “To make you feel my love” é uma canção de 1997.

            A minha canção de Atenas, dou-me conta disto enquanto escrevo estas linhas, não é música, mas um gato, ou melhor, o ritmo de um gato específico quando nos cruzamos num certo ângulo. Ou as revelações que a presença desse gato por vezes parece conter, em termos da cronologia das metamorfoses da minha relação com a cidade, do ritmo da minha cíclica existência nela. A pergunta que me faço, sempre que me encontro com este gato é: sou ainda uma turista nesta cidade ou não? Quando ao certo se deixa de ser turista numa cidade? Há mais de uma década, nas minhas primeiras viagens a Atenas, o bairro onde eu fico costumava ser para mim as poucas coisas que sabia dele de sobre ele ter lido em guias turísticos, era o bairro do Museu Nacional de Arqueologia e também o bairro onde está o Politécnico, onde, durante a chamada Revolta do Politécnico, a partir de 14 de Novembro de 1973, os estudantes fizeram greve e entraram em protesto contra o Regime dos Coronéis. A revolta foi esmagada pelo regime a 17 de Novembro, e terminou com um total de 24 mortos. Hoje em dia, nas ruas desse bairro, justapõe-se a essa história, a minha história nele, que se desenrola em redor dos apartamentos onde fiquei ao longo dos anos, dos apartamentos onde vivem os meus amigos, onde às vezes fico, de bares, cafés e restaurantes, onde aconteceram para mim tantas coisas que sei hoje que estas ruas não são apenas paisagem. O que é ao certo a pertença a um lugar? Qualquer coisa entre o deslumbramento e a pena? Não sei. Digo, a alegria sem medida do regresso a pessoas que amei. Até àqueles que já não podem ser encontrados aqui.

            O que me leva ao gato, à minha relação com aquele gato de rua que vive já um pouco fora do meu bairro, um pouco mais acima dele, numa esquina do Monte Licabeto, esse lugar que faz pensar em Aristóteles, perto da padaria onde, quando estou em Atenas, costumo ir tomar o pequeno-almoço, um espaço que não é café, mas uma espécie de balcão virado para a rua, onde se vende café, pão, e alguns bolos de pequeno-almoço. Na esquina do prédio onde está essa padaria, há uns três ou quatro anos, alguém que vive no prédio adjacente, adoptou e não adoptou um gato preto de rua, deixando-lhe um cesto no degrau do prédio e água e comida ao lado do degrau, já quase diante da padaria. Ao longo do tempo eu vi-o passar de gato bebé com não muitas hipóteses de sobrevivência a gato adolescente e daí a gato adulto, confortável na vida do bairro, príncipe e pedinte, como só os gatos de rua de Atenas sabem ser. Em nada como na sua relação com os gatos de rua é visível a generosidade e a crueldade dos atenienses, o que há de melhor e pior na cidade emerge no modo como as múltiplas colónias de gatos são tratadas pelas pessoas nos bairros onde os gatos vivem. Os gatos de Atenas, que não existiam na antiguidade clássica, são hoje um símbolo da cidade.

            Nesta viagem, dei conta, muito embora o cesto estivesse no sítio, que o meu gato não andava perto do cesto. Nos primeiros dois ou três dias isto não me preocupou, mas ao fim desses dias uma nuvem de fumo dos incêndios que assolaram Atenas desceu sobre a cidade e, quando eu estava prestes a ir-me embora por alguns dias, para uma cidade do norte onde tinha um compromisso, o cesto foi removido. Vi o desaparecimento deste cesto como um símbolo do lado violento e cruel de Atenas, do tipo de descuido que banaliza o lado precioso da vida, uma forma de indiferença alicerçada em descuido. Quando voltei, três dias mais tarde, o ar na cidade tinha voltado a ser respirável, mas o cesto continuava desaparecido. Não sei como, por que milagre, no meu último dia havia um novo cesto, e no novo cesto o mesmo gato, com o seu inconfundível focinho manchado de cinzento, fitou-me de dentro dele, como se entre nós nunca se tivesse desenhado o horizonte de angústia e ausência com que o imaginei desaparecido. De que me tinha esquecido eu? O que é que eu não tinha entendido? As mãos destas pessoas, talvez de um prédio inteiro, que resolveram que este gato é parte do seu prédio, e que nos dias de calor irrespirável talvez o tenham recolhido e depois trocaram-lhe o cesto de inverno por um de verão. A solidariedade é uma tecnologia simples e por vezes irracional, teimosa como a improbabilidade da vida. O seu efeito secundário é o mundo tornar-se um lugar menos cruel. “You ain’t seen nothing like me yet” é o que na minha imaginação aquele gato canta a partir do seu cesto.

Paisagens em estado de possibilidade sem limites: "Behind the Horizon" de Alexandra Roussopoulos

Behind the Horizon
Alexandra Roussopoulos
Galeria Nitra
Atenas
26 de Setembro a 24 de Novembro

1.

Este é um breve texto sobre alguns quadros de Alexandra Roussopoulos, vistos numa pequena galeria num dos bairros centrais de Atenas. Às vezes, parece-me que darmos por nós na presença de certas imagens convida um certo tipo de atenção silenciosa, que deixa que uma sucessão de coisas que estão enterradas dentro de nós venham à superfície, se tornem de repente objectivas ou objecto de (re)descoberta. Este ciclo de quadros revela o lado ao mesmo tempo familiar e estranho de algumas paisagens e dos seus horizontes. Podiam ser as nossas paisagens, daí apontarem acidentalmente para os nossos elos com certos lugares. A objecção que se pode levantar a esta ideia, claro, é a de que estou aqui a propor uma empatia egoísta em relação a certos objectos de arte. Que talvez haja nisto um certo romantismo imaturo. Talvez, um pouco. E então?

2.

Em Março de 2020, Alexandra Roussopoulos, uma pintora suíça e francesa de origem grega, radicada em Paris, viajou para Atenas para preparar uma exposição que deveria ter tido lugar nesse mês, mas que só veio a acontecer, na forma em que agora se vê, no final de Setembro. Alexandra Roussopoulos viu-se confinada ao seu estúdio em Atenas, sem poder viajar de regresso a Paris e sem saber quando esta exposição que agora se pode ver na Galeria Nitra, em Atenas, ia acontecer. Nas semanas seguintes a pintora lançou-se ao trabalho de compor os quadros que hoje formam o conjunto da exposição Behind the Horizon. Alexandra explica ao diário grego Kathimerini que teve de alterar a sua técnica de pintar à medida que as semanas foram passando, por receio de que os materiais que tinha encomendado se esgotassem. Há nas imagens uma qualidade de erosão, que sugere o lado fugaz e efémero de paisagens vistas a partir de dentro, desconstruídas e de novo montadas a partir da memória.

3.

Os quadros de Behind the Horizon ocupavam quatro paredes na galeria Nitra. Lá fora, no final da tarde de sábado, atenienses bem-vestidos circulavam pelas ruas interiores de Kolonaki. Homens em jeans e sapatos caros cortando pelas estradas nas suas vespas e pequenos grupos de estudantes com encontros marcados em esplanadas em redor de pequenos jardins urbanos. Por um momento, entre amigos nestas ruas interiores, esqueço-me deste ano, da impressão que carrego, de há meses, que a terra está doente. A irmã da amiga que me trouxe para ver esta exposição está a estudar para se tornar pintora, o que na Grécia, antes de se entrar na faculdade, não corresponde a qualquer educação formal. Um aspirante a aluno de Belas Artes estuda aqui e ali com quem puder, até fazer o exame de admissão à universidade. Há poucas vagas e é muito difícil de entrar. A irmã da minha amiga vai vendo exposições aqui e ali, tirando notas, falando com outros pintores, numa espécie de educação amadora que na verdade traduz a impossibilidade de ensinar alguém a ser essa coisa, um pintor. Explico à irmã da minha amiga que me agradam as pequenas galerias. Concordamos que são espaços que estendem uma espécie de convite. Há uma liberdade muita grande em entrar e sair de pequenas galerias, sem ter de pagar entrada, sem explicar ao que vimos, em certo sentido a antítese de museus. No trabalho novo há um lado experimental que é também o de ver algo pela primeira vez, sem saber o que esperar. Há nisso outra forma de liberdade: do peso da tradição, dos nossos próprios preconceitos e expectativas.

4.

Não contei ao certo quantos quadros Alexandra Rossopoulos pintou no seu confinamento ateniense. Creio que talvez entre oito e dez. Os quadros sugerem que o que fica atrás do horizonte, o título que enquadra a exposição, são sedimentos e sedimentos de paisagens que se foram tornando na memória da pintora: fragmentos que foram sendo justapostos até se tornarem às vezes estruturas que nos fazem pensar em fino gelo e no lado tridimensional e esquemático das paisagens, ou que, noutros quadros apontam para a representação da suavidade de cores de certos entardeceres em dias longos de verão.

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Nenhuma das paisagens é urbana, embora uma ou outra sugira essa possibilidade nos volumes que se avistam no horizonte. Há qualquer coisa de difusamente reminiscente de Turner, mas também de Hokusai. Há horizontes em certos quadros que parecem pertencer a um passado profundo, superfícies de infância vistas por um olhar adulto (isto parece-me sobretudo verdade acerca de uma paisagem de montanha e floresta onde se veem escuras árvores), o que, por outro lado, nos faz pensar na distância a que a memória segura certas passagens – com um certo anoitecer que é o tom em que a lembrança persiste face ao esquecimento, apoiando-se em alguns pontos salientes.

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Outros horizontes são claros e abertos e o movimento do olhar do plano da terra para o horizonte faz-nos pensar no que está para lá dessa distância enquanto meta, enquanto futuro: paisagens em estado de possibilidade sem limites. Porque não são paisagens humanas, as destes quadros, a sua presença em frente do nosso olhar parece não pedir nada de nós, mas antes sugerir a possibilidade de que nos podemos perder numa vasta paisagem que, no entanto, mesmo com os seus pormenores dissonantes, parece sempre acolhedora, possível de navegar. Há no exercício de olhar os quadros de Behind the Horizon algo de profundamente libertador, fora do tempo e fora das circunferências que, para lá dos confinamentos, habitamos. O conjunto de Behind the Horizon recorda-nos que o tempo da terra é outro tempo: silencioso, vasto, misterioso, em certo sentido fora da história, que é preciso respirar com essa história paralela do planeta, que coexiste com a nossa. Pontos de referência, coordenadas parecem refazer-se de quadro para quadro, reorganizar-se constantemente na sugestão da possibilidade de movimentos com que estas paisagens poderiam ser cruzadas. Mas, abarcando amplos espaços, mesmo nas mais pequenas telas, é o próprio movimento das paisagens que gera essa impressão: o que nestes quadros se move acompanha o nosso movimento interior em direcção à memória das paisagens que carregamos connosco. Há aqui qualquer coisa de uma paixão silenciosa, paradoxalmente premeditada, mas constante e resoluta.

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5.

Os meus três quadros preferidos são quase miniaturas. Três fragmentos de paisagens marítimas em três entardeceres diferentes, o último é um fragmento da rebentação. Talvez a mesma paisagem vista de diferentes ângulos, a diferentes horas. Não podendo dizer ao certo se se trata de perspectivas diferentes sobre a mesma paisagem, ou três paisagens diversas, sugere-se ao mesmo tempo o que disso no princípio: a familiaridade das paisagens e a sua estranheza. Os diferentes tons apontam para o modo como o transcorrer das horas sobre um determinado horizonte pode traduzir um sem número de emoções. Vastas paisagens, mesmo se apenas representadas em fragmentos, pintadas durante um período em que confinamento se tornou a obsessiva palavra chave de todos os vocabulários, sem nenhuma narrativa fixa, lembrando-nos que a amplitude do horizonte é como sair para fora, como regressar à possibilidade de encontro constante com algo em estado de recomeço.

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Nota: Gostaria de agradecer a Alexandra Roussopoulos a disponibilização das fotografias dos quadros que podem ser vistos nesta nota.