5 poemas de Hidra

Velha Vendedora de Lenços

 

O que te levará, velhinha, a acordar tão cedo,

Para arrastares o teu carro cheio de pacotes de lenços,

Até ao porto de Pireus e como quem pede esmola,

Com esses olhos baços de quem viu demasiado,

Com uma dignidade silenciosa, passas pelos que esperam

Os barcos, entre o sono e a indiferença de mundos

Que nem tu conheces, mostrando a tua preciosa mercadoria,

Um pacote de lenços, que sempre fazem falta,

Como tudo o descartável, como se a vida,

Numa escala cósmica, não fosse também, um lenço de papel,

Compro-lhe um pacote e nos olhos baços

Uma nuvem se move e me deixa de troco um sorriso puro

Como a brisa marítima do Egeu e o sol finalmente se revela.

 

30.09.2025

 

Gatos de Hidra

 

Meu amigo, meu companheiro gato,

Não preciso saber sequer o teu nome,

Olhas-me e conheces-me, houvesse ou não

Queijo de cabra, tivesse eu quase vazia

A garrafa de Malagousia, o teu silêncio

Compreende-me, logo somos irmãos,

Ninguém me exige palavras no tom certo

Como esses olhos de instinto e sabedoria,

Nem sei se és o mesmo de há momentos,

Ou outro, tanto faz, a tua fome furtiva

É igual e a tua leve companhia, um mel sem ferrão,

Obrigado meus amigos pela companhia do silêncio.

28.09.2025

Bálsamo

 

Em pouco mais do que isto encontro a paz,

Isto e o teu sorriso, torna-se o sol pequeno,

E na minha enrugada face nasce limpo outro

Com vontade própria, cai-me a máscara,

Como só quando pouso a caneta no vazio

De uma página em branco, pouco mais que isto

E no prurido constante da minha alma leprosa,

Um bálsamo bíblico, sabes que te amo

Com o tamanho avassalador do medo maior,

Os meus sonhos são agora mãos abertas

Para te receberem, outras páginas em branco

Onde desenhas aviões como se fossem verdades

Numa perdida língua babilónica, os gatos rodeiam-me,

Como se destas páginas algum maná

Ou o resto de umas sardinhas, acenderão amanhã

O teu entusiasmo e com ele o teu sorriso,

Esse bálsamo que leva a pena dos dias.

28.09.2025

Prece Nocturna

 

Que estrelas faltarão ao céu nocturno,

Quando de mim não restar mais nada

A não ser tu, que humanidade a dos homens

Do futuro, depois de todos os pecados cometidos

Serem perdoados pelo brilho baço da extinção

E do ouro, virão dias frescos e limpos

Como na minha longínqua primavera,

Espero melhoras, não me custe tanto o peso

Das estrelas que não verei, nem a maior victoria

Para uma responsabilidade que ecoará

Após o pó soprado do último dente.

28/09/2025

No Museu

 

Olhando esses dentes, ainda tão dentes,

Brancos como a eternidade, tu tão pequenina,

Cabeça virada para a direita, para sempre,

Coberta de adornos, foste amada, pelo menos

Na tua morte, quem te terá trazido aqui minha pequena,

Exposto os ossos à curiosidade de um futuro alheio,

Longínquo, que nunca poderia ter sido teu,

O que terão mordido esses pequenos dentes,

O que te trouxe aqui minha pequena,

Ao silêncio de tantos olhos, que em ti vêem

O reflexo da sua própria humanidade,

Curta foi a tua vida, longo tem sido o teu sono.

 

26/09/2025

Hidra

Arthur Rimbaud, Poesia

«É a explosão que ilumina o meu abismo de quando em quando.»

João Moita voltou a traduzir Arthur Rimbaud, porque, diz ele, falhou da primeira vez — como se fosse possível não falhar com Rimbaud. Quando, numa modéstia arrebatadora, Rimbaud se apresenta como pertencendo a uma «raça inferior desde a eternidade», é para nos prevenir contra o abismo que nos separa dele, não vá alguém pretender pausar, e posar, ao seu lado, talvez até tocá-lo, apreciando «sem vertigens a extensão da sua inocência». Ao abismal junta-se o seu erotismo sem critério, que nós consideramos heresia (pois apenas nos dispomos a amar o amável). Seríamos capazes de repetir isto: «Amei o deserto, os pomares queimados, as lojas desbotadas, as bebidas mornas. Arrastava-me por vielas fétidas e, de olhos fechados, oferecia-me ao sol, deus do fogo.»? Serei capaz, à medida que conheço um pouco melhor as heterotopias rimbaudianas, de assumir, como ele, que «a minha vida seria sempre demasiado imensa para ser devotada à força e à beleza»? Insondável e invivível, pois.

Contudo, quando Rimbaud nos obriga a ser «absolutamente modernos», fica claro, como escreve Fernando Pinto do Amaral no prefácio a este livro, que «fez de nós o que somos». Bem, não de todos nós — muitos ganharam e perderam fôlego com Bukowski, Whitman, Celan, Gamoneda, Pessoa, Franco Alexandre, Herberto, Cesário ou Camões —, mas de alguns dos mais inconsequentes seres vivos passíveis de catalogação num futuro index de eugenismo pós-racista. Nós que chegamos tarde — tarde porque já nada é moderno, tarde porque Rimbaud escreveu até aos vinte anos —, vivemos nos fluxos e refluxos de uma neo-mimesis pós-moderna. Se não o capturamos, nem com as melhores técnicas de domesticação textual, é porque, como diz João Moita, somos tardios: na idade da cultura e na da fisiologia. Falta-nos também a inspiração que torna a escrita inútil, acrescenta o tradutor. Paradoxalmente (será?), estaríamos mais próximos de Rimbaud, se nada disséssemos, caso não temêssemos queimar-nos por dentro. Tanto mais que a sua indisciplina originária (incomensurável com a dos simples aprendizes de militantes) nem sequer se aproxima de uma qualquer dialética: ele foi indisciplinado, como o foi Deus ao criar o Universo.

A categoria de «génio» que atravessa, num percurso dionisíaco, os escritos de Rimbaud, é um anzol que nós próprios lançamos e apanhamos, para nos petrificarmos, ao menos, numa certeza. Com ela podemos tergiversar sem nos dilacerarmos completamente. «Génio» é, por isso (arrisco esta consequência), o título do último poema de Iluminações, talvez o último poema que Rimbaud escreveu — com vinte anos, não o esqueçamos. Dizemos «génio» e conseguimos amar sem dominar. Ou, como escreve o poeta, o génio é uma «máquina amada pelos atributos fatais». Assim se julga compreender o que escreve em «Vidas» sobre a velhíssima esperança, que sempre aproveita o trampolim do passado para saltar mais alto: «Não lamento a minha velha dose de alegria divina: o ar sóbrio deste campo amargo alimenta muito activamente o meu cepticismo atroz. Mas como doravante esse cepticismo já não pode ser posto em prática, e como, de resto, me votei a uma nova desordem — espero tornar-me um louco muito cruel.»

De Rimbaud quero aprender, como já vislumbrara em Nietzsche, que só haverá filosofia se for feroz, «ignorantes para a ciência, extenuados para o conforto; que se quilhe o mundo que temos. É este o caminho. Em frente, vamos!» («Democracia»). Ainda que seja para acelerar a decadência. E, como desejava Nietzsche, se «um povo — como um homem, aliás — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23), então Rimbaud — e todos quantos o ressuscitam, como João Moita agora —, valeu, na moeda mais valiosa que possamos imaginar, cada ano em que foi poeta, o poeta.

Poemas Estivais - Parte 1

Fome na cidade

Ando subindo e descendo com fome
as ruas do bairro e as que dão nos bairros vizinhos 
O meu corpo não me revela o
segredo deste apetite
que me movimenta nesta noite
onde aqui um avião além
rasga à uma da manhã
sonicamente os céus de Lisboa
Tenho uns chinelos azuis
tipo havaiana
o que também
não acrescenta nada
ao mistério desta fome
nem desta pele
que se articula em boca
e ocorre-me a ideia dum
fogo interno
e do terreno de pasto
e a parcela de pinhais ardidos
que fazer com a cinza
talvez em tempos
houvesse um vulcão aqui
um vulcão que explodiu
matando gente
com outra fome
que esta que nem à luz
duma erupção se revela  

Lisboa, Julho 2025

*

Fissura no colchão

Temos esta manhã
o corpo atado com um laço
tenho de aprender
mais uma vez
que uma vez desatado
não é sempre o amor
o que fica do acto
para além do cansaço
apenas dois corpos
cada um em sua margem
e entre eles naves

*


Sede à beira-rio

Uma doença gera outra
o vento bate na água verde do canal
os barqueiros encalham
nas plantas invasoras
que escapam ao controlo camarário 

Os mortos geram outros mortos
a terra que ladeia o canal
está empapada de água
Nestes dias as margens
têm menos sede de corpos
Mas assim molhados e moles
São de deglutição fácil após a chuva
pensa a mente que crê
organizar tudo

 *


Um prosaico poema sem tema

Acorda-se na cabeça
por fora os cabelos
desregrados
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias 

O fluxo matinal das águas esvai-se
estival nos esgotos os corpos
deitam fora o que o sonho cuspiu 

O querer dormir-se mas o que vale 

o querer a esta altura da vida
em que só há sons de canos
e passos no andar de cima

Nem se sabe se são de gente
ou se o mundo na noite se mudou
e são os gatos que se erguem
eretos nas patas traseiras
a arder de ideias 

O homem que grita na rua de Crimeia

Ao longe vejo ainda,
numa ilusão que me atravessa,
talvez gerada pelo corpo,
afastar-se a aura invisível
do homem que grita para além da ponte
como se o mundo num gesto violento e louco
lhe abrisse a boca para lhe pôr lá dentro uma palavra

Mais do Mesmo - Haikus

 

Tua

 

A pele do futuro

coberta de cinza –

Agosto em Portugal.

 

Quando beberei

deste sol

que agora me queima?

 

À beira do rio

conspurcar outro corpo

com a minha vontade.

 

No ar o cheiro

dos tomates podres

que ninguém colheu.

 

Enquanto o sol dá

os últimos retoques

um pardal à sombra.

 

As paredes caem

mas as uvas

amadurecem.

 

Encostado à parede da estação

trabalha à sombra

o cara de sapo.

 

Depois da peregrinação

às três capelinhas

sento-me e descanso.

 

Do cimo da fraga

vejo tudo

o que tenho que ver.

 

Do alto da fraga

a gente tem

um tamanho mais real.

 

Sentado na fraga

escrevo um poema

e toco harmónica.

 

No papel seco

marca de batom

de beiça de cu.

 

Dos antigos amores

apenas permanecem

as memórias e o granito.

 

Cidões

 

É mais fresca

a sombra

do velho castanheiro.

 

Torre de Dona Chama

 

Quais os bandidos

preferem os figos

fumados?

 

Que silêncios

afugentam

as aves?

 

Pousa no telhado

da casa abandonada

um bando de pombas

 

Põe-se o sol

aos poucos um inferno

amanhece nos montes.

 

Com a barriga cheia

de amoras maduras

custa menos partir.

 

Agosto 2025

 

João Bosco da Silva

 

 

Livros a mais

Thomas Williams

Não há livros a mais, assim como não há amizade a mais ou beleza a mais. Thomas Williams, escritor norte-americano, ajuda-nos a dar sentido ao que muitos consideram a loucura da desmesura livresca: uma boa ou má húbris, a hipertrofia de uma biblioteca composta por parcelas cada vez mais vastas de porler (neologismo que creio ter forjado há algum tempo para um artigo da Enfermaria 6). A «antibiblioteca», como lhe chama Nassim Taleb, é mais importante do que a própria biblioteca. Mudar de paradigma axiológico acerca do valor do que ainda não foi lido talvez implique começar por conjurar linguisticamente o que parece supérfluo ou inútil — como fizeram os japoneses com o termo tsundoku.

Vejamos o que Williams tem para nos dizer na entrevista abaixo, traduzido por Victor Gonçalves do jornal Le Monde (publicada a 22 de agosto de 2025).

«Quando eu tinha 22 anos e morava em Lille, pedi um dia à minha mãe que me enviasse a edição em seis volumes da gigantesca obra Em Busca do Tempo Perdido. Todas as tardes ou noites chuvosas eram então dedicadas ao projeto de terminar aqueles milhares de páginas. Para minha grande tristeza, essa empreitada permanece inacabada — na verdade, ainda não consegui ir além de A l’ombre des jeunes filles en fleurs. Mas o simples facto de ler Proust transformou-me e deu-me confiança em mim mesmo: tornei-me alguém que lê Proust, ou seja, um homem novo. Aliás, continuo a considerar-me alguém que, um belo dia, terá lido Proust, ou mesmo alguém que relerá Proust (ficamos com isso para o próximo verão, ou talvez para o seguinte!). Os bibliófilos experientes reconhecer-se-ão facilmente nestas linhas.

Tal como vestir-se ou viajar, ler é uma atividade que, em última análise, pode estar ao serviço de uma ambição. Trata-se de nos reinventarmos, de nos imaginarmos mais fortes, mais autênticos, capazes de se nos elevar acima das circunstâncias e de ganhar um novo impulso para enfrentar o mundo. Assim, surge uma outra versão de nós mesmos: parecida connosco, mas um pouco mais sofisticada, mais interessante, mais próxima daquilo que gostaríamos de ser... E então esforçamo-nos para moldar a vida real a esse ideal. É assim que começamos a assemelhar-nos com o que o poder indomável da imaginação nos permitiu vislumbrar.

Este verão, parece que, sem dar por isso, adquiri algumas dezenas de livros novos. Uma biografia de James Baldwin com 600 páginas, outra de William F. Buckley Jr. com quase 1000 páginas, poesia com Henri Cole e Ishion Hutchinson, ficção com Joyce Carol Oates, história da arte com livros sobre Max Beckmann ou Hieronymus Bosch, a coleção de relatos de viagem de um amigo que se aventurou da Turquia ao México... e muitos outros, demasiados para citar.

Comprei alguns e outros foram-me enviados para recensear na revista The Atlantic. Todos, sem exceção, despertaram em mim um desejo irreprimível de leitura. Mas esse desejo choca com a realidade matemática do meu quotidiano: é simples, não tenho tempo suficiente para ler todos esses livros. Não agora, pelo menos. É a desculpa a que me agarro à medida que as minhas paredes se cobrem de estantes adicionais e as minhas pilhas de livros continuam a crescer. Quando era mais jovem, sentia-me culpado por não conseguir ler tanto quanto gostaria. Mas, com o passar dos anos, passei a ver uma certa beleza, e até mesmo uma forma de nobreza, em acumular à minha volta mais escritos — mais pensamentos — do que se pode consumir numa vida inteira.

Tarefa hercúlea

O criador de moda Karl Lagerfeld (1933-2019) frequentava a minha livraria parisiense favorita, a Galignani, na rue de Rivoli, e a sua casa, nas proximidades, abrigava uma biblioteca absolutamente lendária, com 250 000 títulos no momento da sua morte, em 2019. O escritor italiano Umberto Eco tinha «apenas» 30 000 a 50 000 livros, mas, segundo os seus cálculos, esse número representava ainda assim um volume de leitura impossível de alcançar numa só vida. Ler um livro por dia durante setenta anos seguidos perfaz apenas um total de 25 000 títulos. Existe um vídeo no YouTube que nos permite acompanhar o escritor pela sua biblioteca labiríntica — um passeio tão exaustivo quanto fascinante.

Há quinze anos, publiquei Losing My Cool [Une soudaine liberté, traduzido do inglês (EUA) por Colin Reingewirtz, Grasset, 2019], que narra em parte a minha infância num subúrbio residencial de Nova Jérsia, onde o meu pai formara uma biblioteca com pelo menos 15 000 títulos. Os livros empilhavam-se nas paredes, em todas as superfícies, em todos os cantos disponíveis, e até na casa de banho, na cozinha, na garagem, na lavandaria e no sótão. É possível ler 15 000 livros numa vida — e o meu pai tenta (ainda e sempre, o que me encanta) corajosamente alcançar esse objetivo —, mas a tarefa é hercúlea.

«É irracional pensar que é preciso ler todos os livros que se compram, assim como é irracional criticar aqueles que compram mais livros do que podem ler», disse Umberto Eco. Na vida, há coisas das quais é preciso ter sempre uma reserva abundante, mesmo que, no fim, só se use uma parte.»

Ao longo das décadas, eu próprio acumulei alguns milhares de livros; eles têm valor suficiente para mim para que eu me esforce ao máximo para os enviar para o outro lado do oceano quando tenho de me mudar – mesmo aqueles que não li, mas cuja presença me tranquiliza sempre que o olhar se detém na sua lombada familiar. Acabei por compreender que não são tanto um fardo, mas sim uma forma de riqueza, no sentido literal da palavra.

Em The Black Swan [Le Cygne noir. La puissance de l’imprévisible, traduzido do inglês (EUA) por Christine Rimoldy, Les Belles Lettres, 2021], Nassim Nicholas Taleb vai mais longe, afirmando que os livros que já lemos têm menos valor do que os ainda não abertos: «[…] À medida que envelhecemos, acumulamos mais conhecimento e obras, e o número crescente de livros não lidos que povoam as prateleiras da nossa biblioteca fita-nos de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, mais aumentam as filas de livros não lidos. Chamemos “antibiblioteca” a esse conjunto de livros não lidos.»

Milagre temporal

A palavra «antibiblioteca» soa um pouco estranha, mas talvez haja uma opção melhor na língua japonesa com tsundoku, ou seja, «uma pilha de livros comprados, mas ainda não lidos». O fenómeno tem uma dimensão bastante positiva, sobretudo se concordarmos com o que explica um artigo memorável do The New York Times, assinado por Kevin Mims, de 2018: «A biblioteca de uma pessoa é muitas vezes uma representação simbólica da sua mente. Uma pessoa que deixou de aumentar a sua biblioteca pessoal talvez tenha chegado a um ponto em que pensa que sabe tudo o que precisa saber e que nada do que não sabe a pode prejudicar. Já não tem o desejo de crescer intelectualmente. A pessoa cuja biblioteca está sempre a crescer compreende a importância de manter uma mente curiosa, aberta a novas vozes e ideias.»

É isso que me parece tão crucial — até transcendente — na aquisição quase perpétua de livros em formato físico, erigida como um modo de vida. Mesmo e talvez especialmente na era dos livros eletrónicos e dos recursos digitais ilimitados. E nunca qualquer apelo à frugalidade ou ao pragmatismo me convencerá de que não vale a pena.

Os livros não são apenas uma forma de informação ou comunicação entre outras, num mundo onde estas duas grandes fontes de distração abundam. São antes uma tecnologia extraordinária, capaz de realizar uma espécie de milagre temporal. O próprio tempo contrai-se entre o autor e o leitor, e anos de reflexão conseguem ser articulados, afinados e transmitidos num formato que pode ser absorvido em apenas algumas horas.

O meu terceiro livro, Summer of Our Discontent, acaba de ser publicado em inglês, comecei a escrevê-lo na primavera de 2021, mas só terminei as revisões no outono de 2024, revendo minuciosamente ideias e frases já lidas centenas de vezes, na esperança de alcançar a expressão mais pura. No entanto, em não mais de oito horas qualquer pessoa o pode ler. Escrever e ler são atividades fundamentalmente diferentes deste ponto de vista. Por isso, parece-me útil considerar os livros que nos rodeiam — e, em particular, todos os tesouros que ainda esperam ser descobertos — não em função do espaço que ocupam nas nossas estantes, mas sim pela imensa extensão de tempo que nos permitem explorar.

Tudo o que a mente humana pode produzir de melhor e mais completo num século pode caber num metro de livros. Para mim, é mesmo a oportunidade [affaire] perfeita.»