Uma liberdade aterradora

O tempo em que fui mais feliz foi quando tinha cinco ou seis anos anos. Não por ser muito novo ou ainda não ter entrado na escola. Por volta dessa idade media um metro de altura e a proximidade do solo permitia-me sentir o cheiro da relva fresca. Agora o único que sinto é uma liberdade assustadora.

A actividade política distancia-se cada vez mais de qualquer coerência social e é o lugar privilegiado de homens e mulheres sem qualidades. Os efeitos são cada vez mais nefastos mas eu, na minha vida pessoal, enquanto indivíduo, acabei por lucrar com este deterioro crescente da administração pública. O ayuntamiento de Madrid através da consejeria de transportes adquiriu trinta novas composições que não têm cabimento nas actuais linhas da rede de metropolitano. Estes comboios, dotados dos sistemas mais modernos de navegação, permitem, por exemplo, conseguir o máximo de composições numa mesma linha. O sistema estabelece distâncias mínimas de grande comodidade para os clientes que nas horas de maior trânsito podem contar com intervalos de espera de menos de três minutos. Mas estas composições simplesmente não fazem falta. O desacerto das previsões foi total.

Tenho cinquenta e um anos. Há quatro anos que trabalho de noite, à hora em que o metro está encerrado ao público. Conduzo durante três horas composições novinhas em folha. De madrugada, conduzo comboios fantasma. Faço circular os vagões para evitar que o desuso cause um dano que geraria novos e avultados investimentos na reparação das máquinas paradas. No princípio ainda abrandava à chegada às estações; parecia-me infringir alguma regra se não o fizesse. Não tinha lógica nenhuma, não havia obviamente ninguém para entrar ou sair. Se abria as portas era por questões de conservação das peças e na maioria das estações não havia sequer iluminação. Não tinha nenhuma ordem expressa sobre como manobrar; a velocidade ou a delonga estavam entregues à minha disposição do momento. O aborrecimento e a solidão faziam-me divagar enormemente aos comandos dos vagões vazios; e o pior era quando não me sentia Deus, quando me sentia apenas um passageiro de um comboio louco e sem rumo, alheio ao fim da linha, à aproximação da estação terminal, quando devia travar, travar a fundo, ferro com ferro, estrépito agudo, sentimento de desespero, respiração suspensa, segundos intermináveis e, finalmente, a curiosidade sobre o que vem a seguir, quando já não existe outro desfecho que não seja perder para sempre as prestações relativas ao leasing de um trem fantasma; no instante em que Deus acordou do sonho e experimentou a realidade, a super-realidade: ser um simples passageiro de uma vida absolutamente desgovernada.