Arrancar sem pavor contra a montanha

 

Sai da minha casa, não te suporto. Apático, quase dessensibilizado, Américo acolheu a frase pela milésima vez com um encolher de ombros. Fechou-se na casa de banho e, como de costume, levou à boca o gargalo da garrafinha de whisky escondida dentro da bolsa em que guardava o pente, o after-shave, a gilete e outros produtos destinados ao embelezamento masculino. Desaparece daqui, suíno. Escutava com um sorriso. Dou-te o suíno, minha grande cabra. Entrou na banheira, agarrou-se ao peito e morreu de ataque cardíaco. A imaculada esposa continuava a espargir insultos na cozinha. Energúmeno. Disléxica, dizia energume. Quem me mandou casar com esta avantesma? Antes de morrer, Américo fora funcionário de repartição no ministério das finanças, um funcionário exemplar que tirava fotocópias como ninguém, e cliente assíduo de qualquer tasca que vendesse álcool barato e investidor, talvez um dos investidores mais comprometidos de sempre, do prostíbulo pertencente ao “Doutor”, figura assim chamada por conjugar a arte de ingerir absinto com uma oratória à prova de bala — mesmo a cambalear ou a espancar alguém, não prescindia do assaz, do deveras ou mesmo de expressões como esdrúxulo ou aureolar e arroxear. E antes de ser uma nulidade, Américo fora um jovem sonhador, um estudante de economia que fornicava com estrangeiras e ambicionava leccionar em prestigiadas universidades mundiais. A média de final de curso, um pobrezinho dez vírgula quatro, destruiu-lhe o futuro académico e a gravidez da namorada saloia e de largas ancas, cada vez mais largas ancas (“Armário”, começaram a chamar-lhe a partir de certa altura), impôs-lhe um casamento que se alimentava de frustração. O filho só lhe dava ralações. Não raras eram as vezes em que a directora da escola convocava os papás para reuniões em que se tentava compreender os motivos que levavam uma criança efeminada a baixar as calças nos intervalos e a dizer a todos que era uma menina, que era uma senhorita, eu sou uma madame. Os espancamentos não funcionavam. “Até com o cinto lhe enxertei o lombo”, desabafava o pai, e logo se resignava a uma triste realidade: o filho perdera-se para o mundo da mariquice. A mulher sabia pouco, para não dizer nada, sobre qualquer assunto. A não ser que o assunto fosse a novela das nove da noite. A esse respeito se encontrava muito documentada e era até capaz de prever o futuro de cada uma das personagens da referida novela, mesmo antes de assistir aos episódios. O cinto de Américo soltava-se das calças tanto para arrear no filho como na mulher. Bastava que o apanhassem num momento errado, ou melhor, que o apanhassem em casa. O cinto foi aos poucos perdendo a sua eficácia disciplinadora e a esposa foi ganhando cada vez mais coragem. Insultava Américo por questões tão mesquinhas como: compraste um tomate mais verde do que era suposto, idiota. No dia da sua morte, Américo preparava-se para mudar de casa, de país e de mulher. Apalavrara-se com uma das prostitutas do “Doutor”, comprara bilhete para a Venezuela e tinha quase vendida a casa em que moravam a mulher e o filho. O destino matou os seus sonhos. Américo matou os seus sonhos. Américo percebeu tarde que o seu nome era o seu destino.