O acordo

Penso que estariam umas duzentas pessoas no auditório. Era uma tarde de Junho e adquiri o meu bilhete com dois meses de antecedência. O bilhete foi-me enviado por correio, tinha uma faixa azul na horizontal, o símbolo da instituição que ia acolher o escritor, a data e hora do evento, a expressão “uma leitura” por cima do nome do escritor, mas sem qualquer indicação do que seria a leitura exactamente.

            No auditório estava bastante calor e quando chegámos estava praticamente lotado. O auditório claramente não estava equipado para lidar com o calor, era o fim da tarde e só conseguimos arranjar um lugar numa das últimas filas. À última hora tinha convidado uma amiga para vir comigo. Penso que houve nisto alguma generosidade, uma vez que lhe dirigi o convite apenas uma hora e meia antes do início do evento, do nada como se diz, e ela não tinha qualquer interesse particular no escritor, nem nunca tinha lido qualquer livro dele, nem eu sequer. Tinha comprado os bilhetes para o meu companheiro, ele sim um leitor ávido do escritor, mas tinha-o feito com os tais dois meses de antecedência e ele estava demasiado cansado naquele dia para ir, preferindo ficar em casa.

Eu e a minha amiga combinámos encontrar-nos à porta de umas principais livrarias da cidade, essa mesma na esquina da Cornmarket com Broad Street, provavelmente o ponto de encontro mais conveniente de toda a cidade, onde toda e qualquer pessoa que passe mais tempo nesta cidade do que o de uma mera estadia turística acaba inevitavelmente por ver-se na situação de aí esperar por alguém, ou ser esperado. Namorados com ramos de flores, executivas de saias justas, homens de negócios de gabardine e chapéu expiando nervosamente o relógio, académicos de caderno moleskine debaixo do braço e canetas enfiadas no bolso da camisa, a trupe de esperadores varia apenas ligeiramente consoante a hora do dia.

Ora tenho de confessar que tinha visto, e até conhecido, vários escritores antes deste e que, não conhecendo nada da obra, apenas a reputação, as minhas expectativas eram imprecisas, a minha curiosidade não muito elevada. É até possível que eu não tivesse qualquer curiosidade em particular. Uma caminhada de trinta minutos separava aquele ponto em Broad Street do local onde, sensivelmente daí a quarenta e cinco minutos o escritor daria início à sua “leitura”. Eu gostaria de chamar a atenção para o facto de que todo o conceito de encontrar um escritor que se preparava para ler, para mais ler o que eu inferi seriam excertos da sua última obra, era para mim objecto de algum incómodo, para não dizer mesmo de suspeita intelectual. De alguma forma, o conceito parecia-me invasivo. Que tipo de pessoa pode apreciar o espectáculo vagamente atroz de um escritor a ler? Muito poucas pessoas, foi o que eu pensei. O texto que é nosso torna-se imediatamente dele, toda a entoação, todas as mais leves inflexões tornam-se para sempre as dele, que não são as nossas e já nunca mais vão poder ser as nossas. É mais ou menos uma coisa na ordem de encontrar um médico hipocondríaco. É uma coisa que, se existe, ninguém quer saber, muito menos ver.

Portanto, disto se pode inferir que o tipo de curiosidade que atrai certas pessoas para assistir pornografia não é indiferente ao estado de espírito que me levou a ir assistir àquele evento, o que também não é bem verdade. Talvez uma mistura entre uma curiosidade antropológica e a possibilidade de caminhar trinta minutos ao sol na companhia de alguém de quem gosto tenham sido o que definitivamente me decidiu a assistir àquele evento. Há uma alegria pura e simples em caminhar com um propósito quando se está de bom humor, faz bom tempo e temos boa companhia, e, quanto mais o tempo passa, mais penso que esta é uma actividade muito subestimada, que devia ser muita mais valorizada do que é. É daquelas coisas banais cuja alegria que delas tiramos cai facilmente no esquecimento, não é uma coisa que se espere com particular interesse. Mas poucas coisas neste mundo batem a alegria de uma caminhada com alguém de quem se goste. Não falámos muito do escritor e nem sequer mencionámos o facto de ele ter recebido o prémio Nobel, até porque nem eu nem a minha amiga poderíamos definir exactamente o que é que esse prémio premiava, uma vez que nenhuma de nós havia lido qualquer livro dele. No meu caso, não era o primeiro prémio Nobel da literatura que me havia sido dada a oportunidade de observar.

O primeiro tinha sido avistado no teatro principal desta mesma cidade, ele suava profusamente num blazer de tweed, encontrando-se debaixo de um grande holofote, no centro da plateia, não fosse o caso de algum espectador mais desatento não conseguir topar com o escritor, e o objectivo deste “primeiro” escritor não era fazer uma “leitura”. Ele viera no âmbito do festival literário da cidade, o tipo de acontecimento que tende a atrair escritores, e para ser entrevistado, no género de entrevista/conversa que pode fazer um escritor transpirar como qualquer ordinário mamífero peludo debaixo de um holofote com uma audiência a observar a transpiração a escorrer-lhe pela testa, uma acrobacia penosa, a que os seres humanos por vezes estão dispostos por motivos que podem não ser exactamente dignificantes, sobretudo tratando-se de vates, aedos e outros profissionais cuja arte possa ser vagamente performativa mas não exactamente performativa. Há no entanto que conceder que este representante da espécie se comportou com grande dignidade, sentido de humor e sobretudo sentido de ironia, aparentando apenas estar um pouco cansado. Não pude deixar de notar que o facto de que este se comportou não como um escritor num festival literário mas como um intelectual com ideias terá inspirado, a espaços, algum desconforto na plateia, e que a ironia ternurenta com que respondeu a algumas das perguntas não foi tanto usada para aparar este desconforto, o que seria um sinal a não perdoar de cobardia intelectual, mas tratava-se antes de uma manifestação atenta da sua compreensão e amor por, e do seu sentido de, humanidade.

No fundo, este escritor pertencia a uma espécie particular que, por qualquer motivo que me escapa, os sistemas de educação massificada, de modelo democrático/capitalista (o problema talvez seja a podridão de estes não se excluírem mutuamente), bem como essa fauna de cursos de escrita criativa que por aí abunda têm misteriosa e sistemicamente falhado em produzir. Pode-se afirmar com segurança que este indivíduo era primeiro um humanista (como sugere o seu interesse inicial não ter sido tornar-se escritor mas pintor), e desse primeiro acidente frutífero tinha-se dado o caso de daí ter brotado um escritor, o que, apesar do seu massivo ego, aparente dos seus romances (que eu, neste caso, havia lido), era um sinal da sua imensa generosidade. Quer dizer, mesmo o ego inesgotável era nele uma espécie de celebração de um espírito e de um sentimento mais geral de individualidade, das coisas que compõem um homem ou uma mulher afinando-se de tal forma que tornam as pessoas únicas, e, em última análise, dignas da nossa curiosidade e do nosso amor e, sobretudo, do nosso bom humor. É possível que estas coisas estejam lá sempre, mas este escritor fazia parte daquela longa sequência de outros escritores que foram inventando e afinando isto. Que isto fosse aparente no seu discurso era apenas mais um triunfo da sua arte que, não haja dúvida sobre isto, consistiu em passar várias horas da sua vida batendo com a testa contra uma ou outra mesa, num certo número de cidades e bibliotecas da Europa e da América, segurando habilmente uma caneta na mão e conservando a todos os momentos, como uma espécie de outro grande holofote, um caderno aberto à sua frente.

Ora, o meu encontro com o segundo escritor inspirava-me todo um outro tipo de expectativas. Não que eu assuma que a personalidade de um escritor me importe particularmente, uma vez que dando-se o caso de ler um livro, entender o autor não é bem o que me importa (de alguma forma simpatizo com a morte do autor). Mas ele parecia-me à partida, por um motivo que não posso bem explicar, mais distante. Primeiro, claro, porque não era um autor que eu tivesse lido, depois porque houve toda esta comédia de antecipação, incluindo a caminhada para chegar ao auditório, a sala inesperadamente lotada e o facto de o evento ser uma “leitura”. Quando finalmente nos sentámos nas nossas cadeiras, cada uma segurando um grande copo de água e sorrindo para o auditório que não estava preparado para aquela onda de gente e de calor – as temperaturas eram inesperadamente altas para aquela altura do ano, não havia ar condicionado, apenas umas ventoinhas, espécie de placebo, pequeno eufemismo psicológico a trair um gesto de boa vontade hospitaleira mas que na verdade não nos ia ajudar muito a sentirmo-nos mais confortáveis durante uma hora e meia de leitura –, foi ainda anunciado que o escritor, após a leitura, não estaria disponível a fazer qualquer comentário ou a responder a qualquer pergunta. A primeira observação que tenho a fazer é que o escritor tinha claramente aparência de escritor. Quer dizer, se ele passasse por mim na rua eu teria de atirar a frase, “este indivíduo é um escritor”. Ele tinha a idade certa para ser um escritor (nascera em 1940) e aparentava ser mais jovem do que na verdade era. Quando nos cruzámos à saída do auditório pude ver que ele tinha uma caneta no bolso da camisa, um objecto naquelas circunstâncias perfeitamente inútil. Ele era alto, magro, vagamente atlético e tinha a barba e o cabelo branco. Vestia um fato azul escuro e estava tão contente naquele auditório como uma girafa em areia movediça. Mas, tendo dito isto, a imensa distância que a total recusa a que lhe fossem colocadas quaisquer perguntas acabada a leitura, a total falta de interacção com o auditório, ficando a apresentação a cargo da directora da instituição, criaram a distância necessária a que o acto de ler a sua própria obra não parecesse invasivo da minha eventual experiência dessa obra. Ou seja, na sua aparição pública, ele colocou-se perfeitamente na posição do escritor: aquele cujos gestos não podem ser retirados e por isso não podem ser reduzidos ao propósito de um espectáculo público para consumo imediato. Depois da leitura acabei por ler quase todas as obras dele (não a dos excertos que ele leu naquele dia), e devo confessar que descobri, com uma dose inevitável de terror que ele não tinha tido sempre a idade que costumam ter os escritores e que escrevera pelo menos quatro romances avassaladores antes de o cabelo lhe encanecer completamente. Ou seja, a minha admiração inevitavelmente redobrou e eu nem gosto de simpatizar particularmente com escritores.

E se me perguntarem o que era o conteúdo da leitura exactamente, o que é que ele leu, eu tenho uma memória meramente circunstancial, há uma ou outra fase que ele disse que de vez em quando me faz falta porque já me lembro mal dela, o que significa que lembrar-me disto me dá o género de saudade que se tem de uma coisa que se viveu, e sei que o texto narrava algo passado numa espécie de abrigo para refugiados, onde um homem chega com uma criança, sendo que não me pareceu que se tratasse de um pai e de um filho, a descrição do momento entre a chegada e o ponto em que ambos adormecem no centro, depois a descrição de uma refeição. Importa no entanto explicar isto, para que o que eu quero dizer com esta descrição não seja mal entendido. O texto não era uma descrição destas coisas: o valor delas é que estava organizado de tal forma no texto que lhe dava a aparência de uma descrição. O escritor não incluía qualquer juízo ou alusão moral na sua descrição, e não me pareceu que ele estivesse a tentar julgar as personagens moralmente. Mas as coisas estavam ditas de tal maneira, os equilíbrios fugazes nos diálogos entre as personagens, os objectos, as situações, que o leitor era enquadrado numa certa perspectiva e era posto a ver as coisas de um certo modo.

E o que eu pretendo dizer com esta expressão, um certo modo, não tem a ver com qualquer propósito didáctico ou moral que o texto ostentasse, o escritor estava, deste ponto de vista, posto numa situação bastante perigosa, que na verdade é outra coisa difícil de encontrar num escritor, mas este era o motivo pelo qual desconfio que neste caso se tratava inequivocamente de um escritor: ele tinha trazido com ele a solidão dos leitores e dos escritores e, enquanto escritor, tinha-se posto na posição de confiar nos seus leitores, que naquele momento éramos aquelas pessoas que o estavam a ouvir naquela sala, depois de ele ter apanhado um táxi do outro lado do mundo para muitas horas depois terminar na situação em que se encontrava agora, e tinha confiado que, dando-nos um ponto de vista, a partir daí o trabalho dele terminava e era agora o nosso que tinha de começar.