Da utilidade e dos perigos da caricatura para a vida

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A caricatura exagera os traços do objecto, verga os limites, rasga-os por vezes, introduzindo, assim, o risível, o ridículo no que representa. Neste sentido, diz José Gil, “A caricatura é como um monstro cultural”.

Mas deformar o significante ou o referente é útil para a vida porque acrescenta significados, enriquecendo o sentido do que é caricaturado (a Contra-Informação, e.g., ampliava os ângulos e os pontos interpretáveis das personagens).

Pelo contrário, ela é perigosa para a vida porque contamina com suplementos espúrios o significante ou o referente, mostrando-o disforme e volátil, numa palavra: sem valor (nas guerras os inimigos também se combatem assim). Retirar a seriedade ao objecto fá-lo implodir ou torna-o irrelevante, a não ser quando ele próprio se apresenta desde a origem constituído no e para o anedótico (por exemplo, o movimento DADA). Na cultura do sério, cheia de quantificações e de moralidade, a introdução da irrisão desbarata a estrutura que a mantém ordenada.

Desta forma, a caricatura é um pharmakon (dispositivo linguístico grego para a ambiguidade). E não vale a pena conjurar a sua negatividade, já que ela se aloja na própria utilidade (devíamos ter mais presente a metafísica do yin/yang). Por outro lado, o impasse político-social que aprisiona actualmente a Europa (com uma brutal crise demográfica, de que quase todas as outras são, parece-me, consequência) pode levar ao recrudescer da seriedade mortífera (necessariamente conservadora e dogmática, é impossível ser sério sem acreditar na Verdade e numa escala de valores que polariza simploriamente o bem e o mal, juntando-lhe as respectivas interdições/permissões e punições/recompensas). Revejam os semblantes cadavéricos dos facínoras nazis (e também, claro, os risinhos cínicos). Apesar de tudo, se controlarmos os riscos, a caricatura será uma das poucas formas de, numa época niilista como a nossa, combater a rigidez conservadora, sobretudo a intolerância moral que parece pronta a conquistar novamente a Europa, a começar pelo Leste.