Para uma boa intolerância

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O mote para este texto (demasiado e insuficientemente longo) foi dado, à maneira de um murro no estômago, pelo recente atentado terrorista de Barcelona. Os abdominais do hábito fizeram o seu trabalho e já se pode respirar depois do soco, mas ainda dói, dói muito. E depois, começo a cansar-me do eterno retorno das encenações de luto dolente: choros e orações ecuménicas, flores, peluches, velas, minutos de silêncio, apelos à paz e à tolerância... Uma panaceia que tem algo de necessário e muito de inútil, ela conjura algum do sofrimento, mas não altera, numa vírgula que seja, a estratégia terrorista dos fanáticos religiosos, os futuros candidatos à jihad não serão, com certeza, convertidos ao peace and love através destas manifestações de pesar. Há até quem compare a tolerância ingénua que hoje temos pelo islamismo fanático com a desvalorização, pelos pacifistas de outrora, da emergência do nazismo alemão. Acontece que se alguém critica o islão, a sua escala de valores, o seu proselitismo, a sua vontade de domínio, o seu sexismo arcaico (a incrível menorização do feminino)... é imediatamente acusado de eurocentrismo, neo-colonialismo, islamofobia. O politicamente-correcto (substantivo-o) e o bem-pensante (do francês bien-pensance) está em ser multiculturalista, abandonando para isso, condição sine qua non, os princípios republicanos, liberais, libertários, igualitários... Se aceitarmos todas as linhas culturais, então temos de tolerar as sociedades onde o islamismo de Estado obriga o feminino a velar-se mais ou menos integralmente, onde a homossexualidade é punida severamente (é isso que faz, por exemplo, o Hamas; a talho de foice, na Faixa de Gaza houve pela primeira vez em 10 anos uma sessão de cinema, ainda assim propagandística), as manifestações artísticas e a imprensa suportam uma censura sistemática, as instituições de segurança interna são extraordinariamente repressivas, a laicidade é proibida ou radicalmente estigmatizada... Temos de aceitar que isso colonize o nosso horizonte cultural de tolerância, abertura, igualdade, democracia; veja-se o testemunho arrepiante deste director de uma escola pública de Marselha sobre a conquista islâmica do seu estabelecimento de ensino.

Neste ensaio vou defender que a condescendência das democracias liberais facilita a implantação do islamismo radical, irredutivelmente oposto à laicidade (ainda por assegurar, não o esqueçamos), liberdade individual, exercício crítico, isto é, inimigo da modernização moral e intelectual que o Ocidente iniciou no século XVIII e que agora, mais ou menos intensamente, é combatido pelas facções islamo-fascistas e seitas nacionalistas. As instituições democratas deixam prosperar os seus inimigos, os fanatismos religioso e ideológico não sentem muita resistência à sua mobilização social e armada; pondo em perigo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (documento que alguns, em delírio intercultural, consideram neo-colonialistas). Custou-me bastante fazer esta opção teórica, tive de estabelecer compromissos com a minha auto-censura e reinterpretar o conceito de hospitalidade de Jacques Derrida. Neste caso, ficou claro que a sua hospitalidade incondicional, ou “pura” (“visitation”) vive no campo místico do messianismo sem Messias derridiano. É uma condição extra-política de exposição quase teológica à alteridade. A outra hospitalidade (“invitation”) é condicional, recebe-se o estrangeiro em função das regras que estão em vigor. Esta hospitalidade é política e preocupa-se com o bem ou o mal que o outro pode trazer. É este protocolo de abertura, controlado pelas instituições, a justiça, o Estado... mais do que por movimentos sociais conservadores, que proponho.

"Neste ensaio vou defender que a condescendência das democracias liberais facilita a implantação do islamismo radical, irredutivelmente oposto à laicidade (ainda por assegurar, não o esqueçamos), liberdade individual, exercício crítico, isto é, inimigo da modernização moral e intelectual que o Ocidente iniciou no século XVIII e que agora, mais ou menos intensamente, é combatido pelas facções islamo-fascistas e seitas nacionalistas."

Não há valores absolutos, foi isso que nos ensinou Nietzsche ao virar Platão de pernas para o ar. Tudo o que consideramos valioso tem uma genealogia, um percurso histórico que foi cimentando essa apreciação, e por isso a sua ontologia é acidental. Por um lado, a tolerância vive, pois, nesta condição, e é por isso que talvez devêssemos falar em tolerâncias, disposições multiformes para se consentir, numa determinada circunstância, um comportamento, lato sensu, que julgamos subjectivamente reprovável (se dissermos que toleramos o tolerável entramos no sem-sentido). Por outro lado, há qualquer coisa de fixo, objectivo na tolerância: justamente, só se pode tolerar algo que, mais ou menos intensamente, reprovamos. É isto que cria dificuldades, não apenas porque é difícil acolhermos o que parece inaceitável, como percebemos intuitivamente que a partir de um certo limiar de tolerância contribuímos para a destruição de uma escala de valores que queremos defender.

Recordo que os gregos antigos (recorro frequentemente a eles porque foram mais lúcidos do que nós) se concebiam inteiramente a partir da oposição entre civilização e selvajaria, a polis e a natureza não domesticada, antropologia política recente e seres monstruosos de épocas primitivas (míticas) ou estrangeiros distantes. A paideia, esse grande dispositivo, multi-dispositivo educativo, consistia, por um lado, em resgatar os indecisos do abismo da bestialidade e relembrar constantemente aos seres do território cultivado o seu compromisso com o modus vivendi político, afastando-se dos animais e dos bárbaros. Por outro lado, insistia em alertar para a fronteira transcendente, os humanos não se deviam confundir com os deuses. A vida na polis supunha a rejeição do abismo que chamava a cada instante pelos divergentes. É por isso que a tolerância não fazia parte da sua escala de valores (mas havia a “piedade”), ou se fazia era quase irrelevante. O intolerável, tudo o que estava fora das suas condições imanente e transcendente, mantinha-se como tal, definindo um limiar que impunha os piores castigos a quem a transpunha (Édipo, Antígona, Clitmenestra, Penteu, Prometeu... e até Sócrates). Claro que a transgressão (controlada, passe a contradição) é essencial à vitalidade de uma comunidade, e os heróis trágicos, apesar de punidos, foram muitas vezes secretamente louvados (Prometeu, Antígona...). Mas no essencial, durante séculos a civilização helénica protegeu-se na riqueza da sua cultura e pela exclusão da barbárie, isto é, daquilo que não estava humanizado, ou politizado, à sua maneira (sofisticada, eles inventaram o Ocidente).

Outra fonte matricial do pensamento ocidental, o cristianismo, teve, porém, uma linha de interpretação diferente: tolerar as pessoas diferentes porque nelas também habita Deus. É verdade que a prática inquisitorial (bem anterior à Santa Inquisição – o termo “Santa” sugere, aos incautos, inquirições infalíveis e bondosas) vasculhava os confins da consciência à procura de desvios, mas a finalidade era conjurá-los, tratar as torções inaceitáveis, não excluir (apesar da figura, pouco bíblica, da excomunhão). Claro que a vontade de inclusão cristã usou proselitismos violentos, impôs mais do que seduziu e acolheu (Santo Agostinho defendia que para endireitar um pau era preciso aproximá-lo do fogo). Claro que no tolerante se destaca a sobranceria do dominante, neste caso porque depois da sua marginalidade original, o cristianismo comandou a economia espiritual de grande parte do mundo durante séculos. Mas o princípio mantém-se, e é talvez por isso que intrinsecamente, sem contexto, a palavra tolerância é muito mais apreciada do que a sua antónima. Isto remonta ao momento em que a Europa, nos meados do século XVII, terminou as suas maiores guerras de religião. É sintomático que seja já no último quartel desse século que John Locke publica A Letter Concerning Toleration (originalmente escrito em latim), onde coloca a tolerância no centro nevrálgico do cristianismo (é esse o sentido evangélico), ao mesmo tempo que reflecte sobre os limites das prerrogativas do governo civil, defendendo a irredutibilidade da liberdade individual em relação a todas as formas de poder. Quase um século depois, Voltaire, um dos maiores críticos do fanatismo religioso, escreve Le Traité sur la Tolérance (com ressonâncias da epistola de Locke), onde, a partir de um caso real de sectarismo religioso, conduzindo à acusação, e morte, de inocentes (caso Calas), retoma e amplifica a bandeira da liberdade individual, sobretudo a do livre-pensamento, incluindo necessariamente a liberdade religiosa.

"é talvez por isso que intrinsecamente, sem contexto, a palavra tolerância é muito mais apreciada do que a sua antónima. Isto remonta ao momento em que a Europa, nos meados do século XVII, terminou as suas maiores guerras de religião. É sintomático que seja já no último quartel desse século que John Locke publica A Letter Concerning Toleration"

Mais tarde, os séculos XVIII e XIX fabricaram uma enorme dose de optimismo cultural (traduzido num culto acéfalo do progresso), permitindo as hipóteses mirabolantes de religiões civis capazes de criar comunidades sem facções, lugares onde, na ideia de Leibniz, as pessoas dialogariam a partir de mecanismos racionais tão eficientes que à semelhança da máquina de calcular haveria máquinas de dialogar, sabendo-se sempre quem tinha razão. Mas o idílio foi desbaratado pelas carnificinas mundiais da primeira metade do século XX. Aliviada essa fúria imensa (nunca totalmente domesticada), voltou-se a imaginar, capturando e divulgando ecos da modernidade lógica e técnica, um lugar sem fanatismo porque as democracias liberais ocidentais iam fertilizar qualquer canto do mundo. Engano. Os nacionalismos reavivaram-se, primeiro no mundo islâmico misturados com uma linha teológica reaccionária, depois um pouco por todo o lado, culminando nuns Estados Unidos ensimesmados, numa Inglaterra a construir um neo-império para dentro, numa Rússia a regressar ao estádio de auto-exclusão, com alguns países do antigo bloco soviético a imaginarem-se rodeados de inimigos... Regressou, pois, a velha estratégia identitária que julga ganhar tanto mais força inclusiva quanto excluir o que parece ameaçá-la, incapaz de integrar ou sequer dialogar com o diferente.

Na verdade, o princípio vital deste regresso estava apenas adormecido e era relativamente fácil imaginar a sua emergência. É simples ver que a dialéctica inclusão/exclusão existe sempre que há Estado ou religião. O Império Romano, tolerante em termos religiosos, não admitia nada que pudesse ameaçar a sua autoridade. Na Grécia antiga havia decretos que condenavam quem não reconhecesse a existência dos deuses (veja-se, entre outros, o processo de Sócrates). O judaísmo assenta numa intolerância dogmática, herdada pelo cristianismo (que se no início perdoava e acolhia as pessoas divergentes, nunca tolerou as heresias). O Islamismo é intransigentemente severo com os dissidentes, o crime de apostasia é ainda castigado com a pena de morte em muitos países. O hinduísmo, aparentemente mais acolhedor, também pôde inventar um fanatismo teo-nacionalista, projectado no Bharatiya Janata Party (partido no governo), culminando na eleição de Ram Nath Kovind, até os budistas birmaneses perseguem sistematicamente a minoria muçulmana rohingya. Do ponto de vista político, basta olhar para o neo-nacionalismo americano ou, entre muitos outros exemplos, a xenofobia em alguns países europeus do ex-bloco soviético.

Este caldeirão de bruxas produz perplexidades. Acreditava-se que a linha iluminista instauraria um reino de paz perpétua, baseada num racionalismo moral capaz de definir uma justiça humana que rivalizaria com a divina. Mas continuou-se a destilar poções obscurantistas, pretensamente capazes de saciar homeopaticamente a estupidez de milhões de humanos. Ora, como sabemos, a estupidez não combate a estupidez, amplifica-a. E hoje, em consequência, vive-se numa imbecil banalidade do terrorismo (aproprio-me, mutatis mutandis, do conceito de “banalidade do mal” de Hanna Arendt, destacando o carácter histórico, acidental do mal). Quando evocamos o espírito do tempo temos de referir o quase monopólio conquistado pelo islamismo radical. Ponto de ordem: para mim todos os ismos teológicos são igualmente nocivos, islamismo, judaísmo, cristianismo (actualmente um “ismo” bastante esbatido, mas capaz de voltar a extremar-se, por exemplo, nos movimentos evangélicos do continente americano ou no catolicismo conservador polaco), hinduísmo... mas oriento a minha crítica mais para o islamismo porque é sobretudo nele que nasce hoje o fanatismo niilista. É isso que Agnes Heller, a grande pensadora húngara, sobrevivente do holocausto e do imperialismo soviético, defende. Numa entrevista ao El Pais, encontra no islamismo radical uma ideologia totalitária, que a ingenuidade das democracias liberais (aquelas onde se vota, há instituições fortes e liberdade de pensamento) tolera porque acredita que todos partilham, ou virão a partilhar, a sua visão do mundo. O islamismo, claramente aquém do processo de separação de poderes que a Europa iniciou a partir do século XVII (John Locke insiste nisso), é, além disso, intrinsecamente expansivo, propõe-se construir um império espiritual e político esmagando os “infiéis”. Bem no tom do Antigo Testamento (relembre-se a sua origem abraâmica). Em Tristes tropiques (1955), Claude Lévi-Strauss assegurava já que o islão se “fundava menos na evidência de uma revelação do que na impotência para criar laços com o exterior.” Mas talvez tudo não passe de uma máscara desse poderoso e imortal sentimento de ressentimento de que falou Nietzsche (creio que Hegel, por outras vias, também o refere, embora em contraluz, ao pôr o motor da história a carburar com a energia do reconhecimento, ferramenta ontológica e axiológica, veja-se o caso da dialéctica “senhor/escravo”).

"O islamismo, claramente aquém do processo de separação de poderes que a Europa iniciou a partir do século XVII (John Locke insiste nisso), é, além disso, intrinsecamente expansivo, propõe-se construir um império espiritual e político esmagando os “infiéis”. Bem no tom do Antigo Testamento (relembre-se a sua origem abraâmica). Em Tristes tropiques (1955), Claude Lévi-Strauss assegurava já que o islão se “fundava menos na evidência de uma revelação do que na impotência para criar laços com o exterior.”  [...] acumulam-se nos indivíduos mais insatisfações defensivas e ofensivas, amplificadas até ao limiar dos actos de expressão possíveis, que não podem ser conjuradas pelas produções culturais de massas ou reconciliadas pelas terapias individuais."

Nietzsche trabalhou sobre a categoria do ressentimento em Para a Genealogia da Moral (1887), inspirado, tudo o indica, pela leitura de uma versão francesa dos Cadernos do Subterrâneo de Dostoiévski. Com ela acrescentava alcance e rigor filosóficos ao seu anterior “espírito de vingança”, querendo sobretudo revelar, e denunciar, uma disposição impregnada de exaltação moral, um sentimento negativo constituído por ambição e ódio, incapaz de se exteriorizar afirmativamente, vivendo assim num processo de auto-envenenamento até ao momento da detonação, isto é, da libertação violenta contra um exterior malévolo. Ainda sobre esta disposição, moral e psicológica, Peter Sloterdijk realça que as democracias liberais são incapazes de pôr em prática os seus ideais de riqueza e prestígio para todos, alimentando o ressentimento de uma parcela cada vez maior da população. No seu último livro, Die schrecklichen Kinder der Neuzeit (Après nous le déluge, na tradução francesa), mostra como se libertam muito mais desejo e sonhos do que os que se podem integrar pela distribuição dos bens e das possibilidades vitais. Por isso, acumulam-se nos indivíduos mais insatisfações defensivas e ofensivas, amplificadas até ao limiar dos actos de expressão possíveis, que não podem ser conjuradas pelas produções culturais de massas ou reconciliadas pelas terapias individuais.

Escreveu-se muito, é verdade, sobre a boa integração dos terroristas de Barcelona: eram bons alunos, tinham famílias estáveis, não sentiam dificuldades económicas ou laborais, demonstravam ambições hedonistas... No entanto, um artigo no El Pais desmente numa frase esse olhar superficial. Rashid, primo de dois dos terroristas, disse ao jornalista: “sim, criamo-nos aqui e não temos problemas de convivência, mas somos, e seremos sempre, mouros. Na escola éramos os mouros e as raparigas não queriam sair connosco. E os adultos crêem que vendemos haxixe.” Ora, parece-me que devemos seguir este filão hermenêutico, só ele, associado à enorme capacidade de persuasão do imã que os doutrinou, permite compreender a loucura do atentado de Barcelona. Pode estar aqui o ressentimento de que falei acima, motor pérfido da civilização dos “últimos homens”. Os terroristas foram contaminados por um sentimento de frustração que só encontrou saída numa redenção mortífera (a ditadura do “pensamento positivo” bloqueou a reflexão sobre a naturalidade, e importância, dos sentimentos negativos, ampliando a ignorância sobre essas pulsões; leia-se Smile or Die, de Barbara Ehrenreich). Há sempre, e desde sempre, erros profundos nas categorias emocionais que habitam quem se julga, ou é julgado, estrangeiro. E isso pode ser sublimado num processo de vingança, tanto mais eficaz quanto se for capaz de acreditar, em auto-hipnose, que uma acção terrorista conduz à beatitude. A hipertrofia moral e a sensação de desprezo geram a embriaguez do impossível. Lévi-Strauss viu claro quando acusou o islão (a forma mais evoluída, mas não a melhor, do pensamento religioso) de avançar com soluções simplistas para superar as suas contradições, por exemplo: se há preocupações com preservação da virtude de mulheres e filhas enquanto os homens estão em campanha militar, então obrigam-se a velar o corpo. (cf. Tristes tropiques).

"à intolerância moral e religiosa dos fanáticos, dos fundamentalistas devemos responder com os mecanismos do Estado de Direito, com uma repressão legal, e não com uma forma inversa, ainda que mais subtil, de intolerância cultural (numa espécie de choque de civilizações)"

Perante isto, a palavra de ordem mais repetida na Europa é a de que “resistiremos a quem quer destruir o nosso estilo de vida”. Bem, em primeiro lugar era preciso definir esse “estilo de vida”, que na propaganda contraterrorista parece tão evidente, fixo, próprio ao Ocidente. Na verdade, existem múltiplos estilo de vida, insubsumíveis no simples conceito de democracia liberal. Vivemos em diversidade, e ainda bem, por isso a nossa resistência ao terrorismo deve passar antes por uma intransigência jurídica e policial (política, no fundo) em relação às contra-culturas do terror. Isto é, à intolerância moral e religiosa dos fanáticos, dos fundamentalistas devemos responder com os mecanismos do Estado de Direito, com uma repressão legal, e não com uma forma inversa, ainda que mais subtil, de intolerância cultural (numa espécie de choque de civilizações). Se o problema actual está no islamismo radical, façam-se leis que proíbam a sua prática, que evitem a circulação dos seus membros, que cortem as linhas de comunicação prosélitas, que acabem com os centros educativos para terroristas. Mas também, continuando no politicamente incorrecto (contrário ao mecanismo da boa-consciência tóxica, brilhantemente analisada por Nietzsche), controlar a imigração (na verdade, é isso que fazemos já, embora privilegiemos o critério do dinheiro – “vistos gold” – em vez dos culturais e judiciais). Todas as partes do meu corpo e da minha mente são anti-nacionalistas, a última coisa que defenderei é a transcendência da nação, esse mito serviu sempre interesses pérfidos, a única coisa que neste campo me interessa é o indivíduo. Mas como ele não existe isoladamente, protejam-se também as comunidades livres, tendencialmente igualitárias, gentis, solidárias... O sinal mais actual da decadência ocidental é o seu sentimento de culpa, acha-se culpado de quase todo o mal do mundo (creio que reavivando, num sentido laico, a ideia de pecado original), o de hoje e o de ontem (querem, por exemplo, que sintamos culpa pelo tráfico de escravos de há 500 anos, querem que sintamos culpa pela discriminação social dos brancos, por haver em África más práticas governativas crónicas, por na América Latina as desigualdades económicas e sociais serem arrepiantes, por os terroristas odiarem a nossa pobreza espiritual...). E este sentimento, um auto-ressentimento, instaura impasses, preocupações pletóricas, hesitações paralisantes... enquanto meia dúzia de loucos espirituais lançam carros contra desconhecidos, esperando matar o maior número possível (uma competição fúnebre). Neste estádio de radicalismo não há tolerância, moral ou cultural, que consiga vingar. Leve-se, pois, às últimas consequências a ideia de Estado de Direito e cumpram-se os horizontes de inteligibilidade dos Direitos Humanos, nomeadamente os inalienáveis direitos à igualdade, à vida e à liberdade. Se são estes direitos que o islão fanático repudia, então não o podemos tolerar, devemos ser, pelo contrário, jurídica e policialmente intolerantes, demolir todas as suas formas de colonização, ainda na condição larvar, se possível. O Ocidente deve continuar a afirmar-se para lá das transcendências teológicas ou das religiões laicas dos Estados totalitários. Noutra frente, é preciso continuar a alimentar o projecto da autonomia individual e do pensamento crítico. Os imigrantes, cuja vinda não será estancada, devem, por seu lado, abandonar a pretensão de fazer entrar novamente o religioso no político. Em vez de usarmos, repito-o, o critério discriminatório do poder económico, recebamos, passe o cliché, apenas “quem vier por bem”.