O fim deste mundo

Anselm Kiefer, Für Paul Celan: Aschenblume, 2006, Centre Pompidou

Anselm Kiefer, Für Paul Celan: Aschenblume, 2006, Centre Pompidou

Albert Camus, em L’Homme révolté, escreve que os cirurgiões têm em comum com os profectas o facto de operarem em função do futuro.

Se reduzirmos a estas duas profissões (sei, pelo que encontro na minha caixa de correio quase todos os dias, que os profetas se profissionalizaram, resolvendo todos os males, da ausência de amor e dinheiro, às fragilidades fisiológicas e psicológicas) o agir para o futuro, e tendo em conta a lógica predadora da nossa civilização (capitalista e especista), será o próprio futuro que nos abandonará (não nos esqueçamos que o futuro começa por viver-se no presente).

Sejamos claros, a ética humanista (não tanto pelo amor ao humano, mas pelo desprezo pela biodiversidade) e o modelo económico baseado num consumismo desenfreado fragilizam de tal forma as condições de vida que num futuro próximo a Terra será incapaz de nos oferecer uma existência saudável (excluo desta equação niilista as elites que terão os meios económicos e o poder político para criarem oásis protegidos da desolação, elites filhas de elites). Proponho, pois, que pensemos sobre um novo niilismo, mais implacável do que todos os que tivemos desde a Grécia Clássica: o niilismo ambiental.

Müller-Lauter, filósofo alemão imigrado nos USA, profundo conhecedor da obra nietzscheana, explica que há no termo “niilismo” uma opacidade invencível. Exprimindo genericamente “decadência fisiológica”, aparece, todavia, em diferentes culturas e pessoas com significados distintos. E aproveitando-se de Nietzsche, demonstra como devemos considerar várias formas de niilismo: Sócrates e Platão (a racionalidade que enfraqueceu o homem); Pirro e Epicuro (cepticismo e hedonismo dissolveram o heroísmo grego); Estoicismo e platonismo (prepararam o futuro niilismo cristão baseado na desvalorização da vida terrena); Bacon e Kant (desvitalizaram o sentir); Thomas Carlyle (edulcorou o pessimismo); Comte e Spencer (positivismo e pessimismo controlando a genialidade); o romantismo niilista de Schopenhauer (culto da passividade); Hartmann, Dostoïevski, Leopardi e Pascal (descoberta de pulsões destrutivas alojadas no íntimo do humano)... A densidade do termo não se esgotou nestas variações, a história continua (embora se tenha reduzido a radicalidade das alterações culturais, é o poder da globalização) e por isso haverá sempre novas formas de negação, ou pelo menos de resistência, às estruturas afirmativas.

Mas tudo isto é relativamente anódino ao pé das forças revolucionárias (talvez inférteis) que acompanham a degradação profunda das condições ambientais, o próximo grande niilismo não se mitigará num sofá psicanalista ou com uma molécula farmacêutica, nem sequer possíveis novos dispositivos recreativos com inteligência artificial de ponta (e o poder que isto tem!) serão, parece-me, capazes de nos reencorajar. A “idade da ira”, como lhe chama David Pilling (um crítico lúcido da prevalência da economia quantificada para medir o bem-estar), começou com a paragem mais ou menos geral do “elevador social” nas sociais-democracias economicamente mais avançadas, vai continuar com o deslocamento da economia-mundo para o Oriente, crescerá, incontrolável, com o esmagamento de qualquer esperança, colectiva e individual, num futuro vivível.

Bem-vindos ao fim deste mundo.