NUMA PALAVRA e outros poemas

NUMA PALAVRA

 

“Ver nunca foi para todos

os elementos da aldeia”

         - Raul Milhafre

 

Contrariando os rituais antigos

aceitei a companhia para ir à emblemática

exposição de pintura contemporânea.

Nela podíamos encontrar Albert Oehlen

Mary Heilmann Charlie Von Heyl

e entre outros três enormes telas de

Neo Rauch do início dos anos mil.

 

Dentro dos meus ténis confortáveis

tirava uma e outra nota para o meu

pequeno moleskine de capa preta

(mentira era lá do Continente coisa

barata. Não esquecer de comprar mais dois!).

E enquanto observava a terceira tela a

minha companhia veio dizer-me que

no fim da sala só existiam tiras brancas

e pretas “Nada mais!”

(Daniel Burren? Pensei).

 

Foi então que a minha companhia

lançou a pergunta mais difícil a mais

“inteligente” de todas as perguntas alguma

vez feita “O que é isso aí em frente?”

E sem que eu tivesse tempo de molhar os

lábios acrescentou “mas resume!”

 

Nesse instante apontei rápido no

meu falso moleskine de capa preta

“vir sempre sozinho!”

e ao abrir a boca

pensando já na fuga iminente disse

“Café?”

 

 

O LÍRIO E O TRIÂNGULO

 

A linha que cai da brancura do lírio

que sobe pela boca que recolhe a

água é a mesma linha que num só

grito desenha e alarga a forma

rígida do triângulo ângulo a ângulo.

 

A mesma que corre do Interior ao

redondo da mão que escreve.

 

 

 

CADEIRA DE RODAS

 

O artista consagrado entra apenas

de cadeira de rodas na sua

enorme e majestosa retrospetiva.

 

Quando termina o champanhe e os

aperitivos (devorados num gole)

é tempo de levantar-se da cadeira

e ir calmamente da entrada ao táxi

 

que o leva outra vez ao Esquecimento.

 

 

GOLFE PARA REFUGIADOS

 

Separados pela Rede as redes os muros

homens de golfe e homens de fôlego

gordos e magros barrigudos e fracos

tombam todos juntos mais um barco.

 

Na balança inclinada tarde ou cedo

acabaremos por ir juntos aqui ou longe

inclinados neste barco largo e fundo.

 

O SENHOR COGITO MANDA

TELEGRAMAS À CRÍTICA

 

“Telegramas com Telegramas

se pagam” – Raul Milhafre

 

“Belzebu apoia as Artes”

          - Zbigniew Herbert

 

Telegrama 1

Frente ao texto, qualquer texto (a pintura é também

um texto), por mais grotesco que seja, despir tudo,

sobretudo o Gosto. Horas depois voltar a vesti-lo.

 

Telegrama 2

Face ao óbvio colocar questões óbvias e outras menos

óbvias e ver o que acontece. Por vezes, o não acontecer

nada é um acontecimento, uma espécie de bofetada.

 

Telegrama 3

Nunca esquecer o contexto, a figura esguia ao longe, o

primeiro plano; assim como o peso de Todo o Tempo.

 

Telegrama 4

Ver o objeto de frente, agarrá-lo pelos cornos e raspá-lo,

camada a camada, até ficar sem tinta. E se a pura tinta

sair, ver (milimetricamente) as migalhas do pouco que há.

 

Telegrama 5

Comparar A com R, T e Z, nunca comparar apenas A

e B. E, se possível, esquecer os amigos de estima e

evitar, sobretudo, insuflar o ego em dose excessiva.

 

Telegrama 6

Urgente: Tragam-me um crítico sério! O palhaço, dos

balões insufláveis, não o quero na minha festa privada;

e dispenso os publicitários de meia e terceira tigela.

 

Telegrama 7

Entre a crítica semanal e estes sete telegramas optar

sempre pela terceira via: Juntá-los e acender a lareira.

Este poema NADA deve à crítica (auto)insuflável!

 

  

VENDO LEGUMES D-TERÇA A SEXTA DAS 8:30 – 12:30

 

em cada folha de couve

uma quadra

em cada fresco pepino

um dístico

em cada verde tomate

uma letra

 

a terra dá retorno e

morte exige

 

venha à segunda-feira

recolher a

morte que o

poema oferece

 

leva-a no bolso ou na

mão sem a obrigação do

tempo longo.

 

come digere e morre

mas antes fecha a porta.

Vítor Teves -A caminho da “Flâneur” - foto de instagram, Agosto, 2019.