Leituras 2020: Victor Gonçalves

A morte de um livro está frequentemente ligada ao mais miserável dos acasos: súbito obscurecimento dos espíritos, crises de superstição, antipatias patológicas, mesmo à preguiça do escriba, aos insectos ou à meteorologia. A vida de um livro resulta da vontade que temos, que ainda temos, de tocar o céu.

Acima disso, como dizia, crê-se, Diógenes: o sábio também lia livros e comia bolos, mas podia viver sem eles. Não é uma missa de miséria, mas poder passar-se de fardos que nos limitam a liberdade.

Abaixo disso, receio muito que o ser humano deixe de ler, rastejando depois pela vida num autocontentamento puramente orgânico; e, não sendo sábio, quero alienar-me um pouco, em elevação, pelo que outros escrevem.

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Ler/traduzir: Jean-Paul Sartre, L’être et le néant (O Ser e o Nada), Gallimard, 1943; múltiplas edições (um dos livros mais importantes na cultura francesa do século XX), uso a da coleção tel, corrigida pela filha adotiva, Arlette Alkaïm-Sartre, 2009. Traduzido em português (Editora Vozes, no Brasil, com mais de 10 edições; Círculo de Leitores (esgotada), em Portugal, 1993). Compete-me, neste momento, concluir uma nova tradução para as Edições 70, com saída prevista para 2021.

É um livro mundo, onde se confrontam o eu e o outro para resistirem à alienação, ou manterem a liberdade, à qual, quase paradoxalmente, estão condenados, apesar do olhar do outro. Exemplo do tom e do conteúdo: «No entanto, não se deve acreditar que uma moral da “permissividade [laisser-faire]” e da tolerância respeitaria mais a liberdade de outrem: uma vez que existo, estabeleço um limite de facto à liberdade de outrem, eu sou esse limite e cada um dos meus projetos traça esse limite à volta do outro: a caridade, a permissividade, a tolerância – ou qualquer atitude abstencionista – é um projeto de mim mesmo que me compromete e que compromete outrem sem o seu consentimento

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Lido: T.S. Eliot, Ensaios Escolhidos (da saudosa Livros Cotovia, 3.ª ed. 2014). Ensaiam-se explicações sobre autores (Shakespeare, Baudelaire, Wordsworth, Coleridge, Yeats, Poe, Valéry, Dante, Goethe, Irving Babbitt, Pascal); obras (sobretudo Hamlet); correntes e domínios (o que é um clássico, o sentido da cultura, poesia e drama, literatura da política, crítica, estoicismo…). São textos, ensaios, que vão de 1917 a 1962, portanto não de um T.S. Eliot, mas de vários, e isso nota-se (que privilégio). Surpreende e encanta o que diz, por exemplo, de Hamlet, peça inquietante e perturbadora como nenhuma das outras; mas «É de todas as peças a mais longa, e é possivelmente aquela em que Shakespeare despendeu mais esforços; e, contudo, deixou cenas inconsistentes e supérfluas, de que mesmo uma revisão apressada teria dado conta.»

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Relido: William Faulkner, Luz em Agosto (várias edições em português, usei a da Dom Quixote, 1996). Muitos consideram O Som e a Fúria a sua Magnum opus; talvez, escrever um livro desses é estar além do humano. Mas eu prefiro Luz em Agosto, é um mundo onde entro melhor, sem nunca deixar, porém, de ser maior do que eu. Li-o, novamente, como um tratado das pulsões, destrutivas e criativas, Eros e Thanatos, testemunha de uma crise da vida humana que rastreia a endémica violência racista do americano médio, e indica, no nevoeiro, as forças do mal que começavam novamente a erguer-se na Europa (o livro é do início da década de 30 do século XX).

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Relido: Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade (Dom Quixote, 1992/1978). Regressei a este livro porque Eduardo Lourenço Morreu. Na verdade, nunca tinha saído dele. Foi a principal lanterna que usei para iluminar o para lá das cortinas de fumo da consolidação democrática em Portugal. Não se trata, de modo algum, de uma hagiografia, mas de uma radiografia de um esqueleto cheio de manchas negras, aguentando-se, apesar de tudo. E aqui vamos nós rumo ao futuro, cheios de esperança e temor, de grandiosidade e pequenez, de universalidade e de particularismos enfadonhos. Aqui vamos nós, já sem Eduardo Lourenço, que nos sabia pôr num lugar aproximadamente verdadeiro.

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Lido: Paulo Faria, Gente Acenando para Alguém que Foge (Minotauro, 2020). Uma revelação. Escreve sobre Portugal, olhando, contudo, pouco para o futuro; interessa-lhe religar presente e passado próximo, vasculhando nos despojos do Império. Se uma das especialidades portuguesas é atulhar o inconsciente com as falhas do passado, Paulo faria inverte o passo e escava a história viva e a mente para relembrar, no consciente, a porcaria que fizemos em África, e que agora eles, de uma certa maneira, perpetuam. Parece-me um autor capaz de acrescentar linhas importantes à literatura portuguesa., sinto uma grande admiração por ele.

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Lido: Richard J. Evans, O Terceiro Reich no Poder (Edições 70, 2020); Parte II, de III, da história do Terceiro Reich. Obra decisiva para quem deseja compreender o que se passou no país mais avançado (científica, cultural e politicamente) da Europa, permitindo que uns arruaceiros tomassem o poder e fossem seguidos, a pouco e pouco, por uma significativa maioria da população. É a história de uma inverosímil distopia, baseada mais em factos e provas do que é usual neste contexto.

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Lido: José Pedro Moreira, Porque Canta um Pequeno Coração (não(edições) 2019). Apetece-me recordar uma frase de Paul Celan (cito de memória): «Não vejo qualquer diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.» O livro de poesia de José Pedro é um aperto de mão, um abraço e sobretudo uma janela que ele nos abre, enquanto aponta com o dedo e sorri sorrateiramente, para os seus caprichos de vida, como no «Notas sobre o Prosciutto di Parma», de que a poesia deve dar conta, agora que acabou a era da metafísica; os sítios que frequenta para se abastecer de prosaico e enobrecer poeticamente a vida comum; momentos originários da civilização europeia; mas, sobretudo, no lado B do livro, para aquilo que foi há bastante tempo, festejando, celebrando em vez de conjurar o passado, incarnado na magnífica Alzira. Tudo isto sem deixar de falar com a história da poesia, ser poeta é, por princípio, ser um metapoeta.

É por tudo isto que canta um pequeno coração.   

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A Ler: Sally Rooney, Normal People, 2019 (traduções portuguesa e brasileira). Há cerca de duas semanas acabei de ver a mini-série, baseada nesse romance, disponível na Netflix (Portugal), do realizador Lenny Abrahamson, e foi a série que mais me sacudiu desde Chernobyl. Tenho a máxima espectativa em ler o livro, mesmo se for um pouco menos intenso do que o produto televisivo, como alguns críticos dizem, será ainda assim excelente.