Amar os intelectuais

Jürgen Habermas, 2002

Cruzamos várias ideias ao longo do dia, por vezes numa tensão agónica, outras com um grande potencial de fusão, a fusão amorosa dos conceitos.

A meio da semana, li no último livro de João Barrento, Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis (espero fazer uma recensão em breve), um texto de 2007 sobre «As Palavras Aladas». Duas ideias: nunca tivemos, nem teremos, um Robert Musil, nem «uma sociedade moribunda, estagnada e viciada, com um fabuloso potencial de criação cultural, não radical, mas capaz de assimilar tradições e com elas dar grandes saltos em frente.» Como era o caso de Viena e dos seus judeus assimilados. Em Portugal, a cultura («todo o universo do simbólico e dos modos de “produzir sentido”») trivializou-se, «assiste-se a uma hostilização generalizada do pensar, a arte é vista como puro negócio, pelo menos para aqueles que a compram sem saber bem porquê». (Este «sem saber bem porquê» é delicioso). A segunda ideia, causa e consequência da primeira: estamos a perder a capacidade de escrita, e com isso esvai-se a «possibilidade de estruturar o pensamento e dar forma à imaginação.»

Entretanto, o El País traz hoje um artigo sobre Jürgen Habermas («Jürgen Habermas: el gran pensador y su assalto a la cumbre de la filosofia». É laudatório (como escrever de outra forma sobre Habermas? Creio que nem Sloterdijk consegue, agora, fazê-lo, quando se é demasiado grande as críticas só surgem post-mortem) e informativo (Habermas está a escrever Auch eine Geschichte der Philosophie, Também uma História da Filosofia, e sai agora o primeiro tomo em tradução castelhana)[1]. Para o articulista, Habermas é um filósofo alimentado pelo intelectual, pela sua veia polemista e por estar pronto a debater qualquer assunto. Como Michel Foucault, é um pensador do «agora», capaz não apenas de discutir o que é visível (a guerra na Ucrânia, por exemplo) como o que abana o mundo mas é relativamente invisível, o passado nazi da Alemanha, o seu próprio inclusive. Tudo saído da crença de que uma boa ética do discurso (da discussão, que almeje uma intersubjetividade assente na procura da verdade) permite um entendimento mútuo. Crença entretanto dinamitada pela proliferação de fake news e a reativação, nostálgica e utópica, dos regimes políticos autoritários.

Mas o que mais me interessa, é a ideia de que a Alemanha ama os seus intelectuais (percebo o risco e a inexatidão de dizer que um país, ou melhor, uma cultura ama os seus filhos), Habermas talvez em primeiro lugar, mas também Peter Sloterdijk, Rüdiger Safranski, Wolfram Eilemberger ou Byung-Chul Han. Como os franceses amaram Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Michel Foucault ou Albert Camus. E este amor, forma extrema de emulação, estrutura pensamentos e dá forma à iamginação. Não vejo, aliás, outra maneira de educar um povo, educá-lo para o profundo e para o subtil, sem ser através das ideias produzidas nas alturas onde vivem os maiores (bem sei que reverbero o pensamento da genialidade de Friedrich Nietzsche e de algum Romantismo, mas ou é isso ou é uma educação de massas assente nas pequenas narrativas, repetitivas e imprecisas, muito mais preocupadas em manipular do que em informar, que os meios de comunicação dominantes atiram para cima de todos quantos se baixam, ou, a terceira via que mais me entristece, uma escola que simplificou tanto os conteúdos, que se viciou tanto no banal, que se tornou intelectualmente tão pobre que ninguém que tenha lido um livro quer ser professor, votada ao imperativo acrítico de certificar em massa, usando todos os truques possíveis para alcançar o «sucesso educativo»).

A Alemanha ama os intelectuais e nós não amamos. Temos, aliás, logo à partida, preconceitos bem afiados contra eles. O pior de todos, porque é injusto e entrava tudo, é julgar que não conhecerem a realidade. São seres da metafísica, são seres na metafísica, são seres pela metafísica, diz-se à boca cheia. É verdade que o seu discurso difere do do quotidiano, assim deve ser. Mas eles pensam e falam, escrevem, sobre a realidade, ou melhor, as realidades. Usando mais recursos linguísticos do que é habitual, um encadeamento contínuo de proposições (contra a fragmentação vigente), por vezes socorrendo-se de criações conceptuais, citando muitos dos que antes deles pensaram da mesma forma, usando mais adversativas do que a moda do «discurso assertivo» recomenda… Mas eles pensam as realidades, o agora, multiforme, que resulta e condiciona as nossas ações, o agora que conduz grande parte do que pensamos e da forma como pensamos. Eles são, em boa verdade, muito mais realistas do que os não intelectuais.

Amemo-los, pois, por eles e por nós. Por um país e uma cultura que quer retomar um processo de emancipação individual sem cair no individualismo. Pela alegria insubstituível de descobrirmos um conceito que irá esclarecer uma parcela do quarto escuro que nos impede de dizer, «caramba, isto é mesmo belo!». Amemos João Barrento, José Gil, Maria Filomena Molder, Eduardo Lourenço (que continua vivo), Eduardo Prado Coelho (idem), amemos António Guerreiro (eu, com reservas), Viriato Soromenho Marques, Gonçalo M. Tavares, Pedro Mexia… Amemos todos aqueles que ensaiam pensar e lançam faíscas que iluminam o mundo. Aqueles que sabem sair de órbita sem se perderem e trazem as revoluções (no duplo sentido, cosmológico e político) que permitem «dar saltos em frente».

 

[1] Deixo-vos a nota de Nicolas Weill para o Le Monde, aquando da saída do segundo tomo em tradução francesa: «Nos últimos vinte anos, Jürgen Habermas tem dedicado os seus escritos a explorar os “conteúdos de verdade” que, na sua opinião, são veiculados pelas relações de fusão ou tensão entre fé e razão. Daí a exploração empreendida em Uma História da Filosofia, cujo primeiro tomo foi publicado em 2021, e eis agora o segundo. Depois de ter centrado o seu estudo na Idade Axial (cerca de 800-200 a. C.) — período em que o sagrado confluiu simultaneamente com a moral em várias partes do mundo (de que os Dez Mandamentos são a ilustração mais marcante) — e de se ter interessado pelo pensamento medieval, o filósofo analisa, neste novo volume, a rutura que, de Martin Luther aos “jovens hegelianos”, Ludwig Feuerbach, Karl Marx e o dinamarquês Soren Kierkegaard, levou à constituição de um “direito da razão” moderna.»