Dedo nosso entrando em ferida nossa

Abre-se a boca, a luz entra na garganta feita clarabóia, e tudo principia. O corpo dá-se à claridade, dilata-se para receber a manhã iluminando as suas entranhas. O seu reflexo torna-se também visível, bem como seu lastro. Imbuído por essa claridade, não fica, ainda assim, vazio, por muito que se esvazie. O vácuo aberto pelo derrame é preenchido por uma nova forma de vazio, um vazio que não é letárgico, que não é ausente, mas que é ocupado por uma outra forma de estar no espaço, uma outra forma de materialidade.

            Por onde se abre, o corpo também se deixa invadir, torna-se porto de passagem de forças aparentemente ocultas, misteriosas. E assim, ele conquista a sua própria escuridão. Saindo do corpo, o que move o corpo aproveita a maré de luz exterior para com ela partir rumo à descoberta do interior do lugar onde morava. Encontra os seus elementos primeiros, as suas estruturas, os seus mecanismos, mas também as pinturas rupestres sobre as grutas, o bolbo soterrado das imagens cravadas na carne dando envolvência e peripécia à viagem, perturbando-a, tornando-a ainda mais explicitamente provisória.

            Não é, contudo, um prado em plena ebulição da juventude, nem a cidade consegue esconder as feridas da guerra. O que desconcerta é como irradia aquilo que Thomas Bernhard chamaria uma manhã sem destruição, um momento em que a natureza encara a sua própria violência com ternura, como um impulso redimido. 

             É a célebre pintura de Caravaggio “a incredibilidade de São Tomé”, Tomé olha a chaga de Cristo, quer tocar-lhe.  E Cristo, lânguido e prostrado, aceita ver-se penetrado pelo dedo céptico de Tomé.  O triunfo sobre a dor é a prova da divindade, e isso teria desconcertado aquele que não cria. Como poderia uma criatura ser indiferente à sua própria dor, deixando que um dedo penetrasse a sua ferida como se arrumasse... fósforos numa caixa.

            Ver figura humana ajudando a perfurar sua própria carne é como ver poeta que nos fala dos seus sentimentos, alheando-se da sua presença e evidenciando seu abandono. Eles são-nos visíveis, estão-nos oferecidos como ferida aberta sangrando tal qual se espera dela, mas a ausência de propriedade (ou de proprietário) arrepia-nos, como se pusesse em causa a própria fundação da nossa identidade: as nossas emoções mais puras.

            Quando Miguel Royo nos sugere que somos apenas orifícios que comunicam, encontramos aqui, como na pintura de Caravagio, um estranho fenómeno de anulação do ego. Mas enquanto Cristo de São Tomé se anula porque sabe consusbtanciar-se em algo que o transvaza, o alheamento do poeta parece-nos porventura mais bizarro, pois joga com um revólver na cabeça a efemeridade da sua própria morte.    

            O inventário do que nos compõe continua, dir-se-ia que o escritor tomou o lugar do fisiologista e que analisa com meticulosidade cada elemento do que compõe a carne humana. Não necessariamente para organizar um compêndio que possa ser inserido numa rede de transmissão de conhecimento. O seu regresso à materialidade é quase místico, porque tornando a matéria plástica consegue evidenciar tudo que dela emana, a sua própria sensualidade, a sedução de uma vertigem que sabe ser o desejo sublimado da queda.

            Mas ao anular-se, o sujeito procura anular aquilo que Freud dizia haver mais íntimo e fundacional: sua dor. Ainda que depois mergulhe nela, através das palavras, porque, muito embora elas se prostituam como palavras unindo as nossas ilusões de contacto, a sua duplicidade faz delas tão dignas de interesse quanto o corpo: a sua falsidade, a sua escuridão é a sua ficcionalidade, é aquilo que as torna bífidas, capazes de serem campos intensivos produtores de sentido, estimulando o nosso desejo.

            As palavras revelam-se a fundação do canto. Não se sabe bem como é que surge um corpo profundamente telúrico capaz de cantar. Nem de onde vem esse canto, se é um grito de agonia de alguém que asfixia momentaneamente, se é um fenómeno milagroso sem origem sondável, se é, como outros, um fenómeno natural da paisagem. Sabe-se, apenas, que é indagando a carne e suas feridas, que é encostando-lhe o gume como ameaça, que o canto começa.

            Talvez importe aqui, relembrar, o título do livro Na Pedra a Luz Afia o Gume, porque a estarmos perante uma teoria geral sobre as coisas da vida, não podemos deixar de notar a equivalência entre a luz e o canto. Sendo, por isso, válido questionarmo-nos tendo em conta o que faláramos sobre a escuridão do corpo - se o que se procura com o canto não será desvelar alguns dos mistérios dessa sombra.

            Se esta hipótese fosse verdadeira apunhalaríamos mais um fantasma do sentimento da identidade, porque nem o canto, ou o discurso poético, seria a prova de algum tipo de instância singular, de propriedade não-partilhada com mais nenhum corpo circundante. Este canto, assemelhar-se-ia mais a um coro do que a uma ária, ainda que invoque a primeira pessoa do singular recorrentemente, como uma espécie de cobaia que é atirada na praça pública, para experimentar o espancamento de uma multidão.

            Quando nos é dito sou o sonho do cavalo dentro do homem/ castrado da sua natureza aérea é logo rapidamente rebatido mas sou  o punho/ no teu ventre arrependido/ a mão na pedra que se recusa a abrir/ por não revelar nada a não ser/ a disponibilidade total de um membro, ao que é acrescentado mas sou a dentadura da morte/ o único árbitro que sorri no escuro. Ainda que seja ensaiada uma espécie de definição identitária espiritual, um sujeito como algo que precede e extravasa a carne, ela é logo de seguida desfeita: o sujeito é rapidamente subsumido em matéria corporal e despersonalizado, constituído enquanto entidade comum.

            Mas este não é o único momento de despersonalização, nem tão pouco do esvaziamento do sujeito para ser tomado por um outro alento. Consideremos ,porventura, se estas mãos me rangem é porque têm dentes/ e se têm dentes é porque não são minhas, mas também o futuro/ se vier/ que suba pela mecha dos meus músclos/ estendidos sobre a mesa dos dias/ em ígnea submissão, ou mesmo que o corpo se transforma/ no adubo de pensamentos alheios e a pessoas passeiam/ longe dos nossos restos porque cheiram ainda a movimento/ e a diálogos abertos. Neles se intui, não só o não-desaparecimento da agência mesmo quando o sujeito é reduzido aos seus instrumentos de percepção ou de actuação sobre o mundo, como também se constata o alheamento desconcertante que havíamos referido anteriormente.

            Por muito que os próprios pensamentos sejam alheios ao corpo há uma força motora que procura a escuridão, a escuridão da morte, impulsiona o corpo a flagelar-se, a rejeitar o sono, a cair verticalmente na doença. Na sua própria indefinição procura a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dá lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater a morte no seu território ou a noite trabalha a carne com as mãos roubadas às insónias e ousa todas as formas até que uma brecha no escuro nos devolva as mãos e a luz.

            A confusão entre interior/exterior surge como consequência natural do desaparecimento do sujeito e viaja pelo livro todo, é o seu próprio fardo e, sarcasticamente, a prova viva da sua singularidade, porque não é nem o sujeito desaparecido puramente contemplativo de algo que lhe é externo, nem tão pouco o psicótico que transforma a aparência da realidade com as suas convulsões, é, uma outra coisa, um corpo que mira a paisagem sendo a paisagem, ou uma paisagem que encontra no corpo o seu reflexo e sobre si nele medita, podendo ser um ou outro, ou mesmo os dois em simultâneo: esta paisagem é o mundo que se deita sobre os nossos olhos… por pudor a ser desvendado volta-se sobre si mesma como um animal ferido à altura da nossa vista. A relação umbilical entre a paisagem e quem a observa parece sugerir que um e outro dependem da existência mútua para poder sobreviver, como se um e outro fossem o mesmo corpo.

            Talvez, é por saber a sua condição de primeira fila no batalhão que este falso-sujeito se presta a caminhar tão próximo da morte, sendo curioso observar que, quando se aproxima, ele torna-se cada vez mais apaixonado.  A morte surge como uma fuga, uma nesga ou, cito também, frincha entre as vedações do sentido, um ponto sem retorno da vedação do sentido. Mas também como reforço do alento.

            É sobre o parapeito dessa vertigem que caminhamos, como se tacteássemos uma noite como um grande mistério cravado no céu da boca. Porque, aqui, a morte e a noite são siamesas, procuro a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dar-lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater no seu território. A noite paira no corpo, enquanto o corpo escapa às sondas do sentido e é possuído por um alento incógnito, movido por forças recônditas. Esse movimento centrífugo é sinal de inteligibilidade, de inteligência, começo a recear que é no nicho da sombra que principia a lucidez. Pelos corpos adentro escavo para encontrar a luz, muito embora não seja claro se isso chega para se falar de uma singularidade.

.           Seria impossível falar-se da anulação do sujeito, sem falar da morte, porque a morte é a sua arena principal. A morte e, aliás, a noite são sempre elevados ao enigma primordial, que seduz e atrai o sujeito a abandonar-se e deixar-se navegar pelas suas ondas, ainda que o perigo de afogamento seja evidente.  Só a incógnita remete para um desfecho do ego. Ou uma hermenêutica do invisível, contra ela, o poeta tem dois movimentos distintos, porque se por um lado,  a procura apaixonada por desvelá-las é afirmação do corpo como força intensiva e pregnante - como uma força própria da vida, viva por isso-, por outro lado,  a morte é também vista como descanso, a concretização do corpo com a paisagem que integra, ou, o corpo retraído na coordenada vaga onde o mundo acaba e principia o mistério.

            Ainda que este livro não seja propriamente uma elegia fúnebre, porque nos fala, porque seus órgãos estão vivos, a boca, a garganta, os seus olhos, as suas mãos, a úvula, a sua bílis trabalhando ainda, os tímpanos tísicos de tudo conservar. E estes órgãos são lhe familiares, próximos, viscerais, cobertos de nevoeiro, ainda que estanques e imóveis. Um olhar que é presa do mundo que o ataca, pulsos abertos sangrando abundantemente sobre os mapas, os corpos esmurrados por sussurros de uma vida externa que lhe é estranha e sobre o qual se debruçam: abrem-se os corpos como campos feridos com a chegada do estio… são os campos que inauguram os incêndios e ardem… voltando-se para o interior do lume.

            E novo desconcerto, é que não só os órgãos nos trazem a expansão fulgurante de uma vida que está para lá do corpo, como essa vida nos traz o rasto de outras narrativas, pegadas de cabras que passaram para nos beber os sonhos. É por isso que, talvez, relembrar é como um espasmo de morte, como nos é dito, porque a memória parece impedir o fluir livre da vida sensorial sobre os órgãos. Ela é maliciosa, onde armazena os enigmas da vida, onde amarzena as noites, torna evidente o carácter provisório de tudo o que lhe rodeia. Mas é, também, a segunda prova de que o corpo está vivo e isso não nega a sua função de fio condutor da corrente elétrica. A memória, quando não traz trégua, traz a obrigação da procura, constituindo-se enquanto terceira voz à digladiação interna entre os elementos da paisagem.

            Ainda que pareçam todos mediados pelo mesmo denominador (dada a ausência de carácter singular e a aparência cosmogenética da descrição que é feita) os elementos da paisagem não são idênticos. Não é certo o que os distingue senão a sua composição, porque se recusa quase sempre falar de uma identidade dita espiritual ou transcendental,  porque tudo parece alimentado por forças vizinhas. Talvez, a singularidade venha de fardo antigo, tenho o sangue contaminado pelo tempo a razão da sua diferença seja a descendência, o seu genoma porque o sangue transporta a descendência, a trama infindável de paixão

            Ainda que os corpos se sucedam, e que a descendência apareça como um estranho fenómeno de iteração marginalmente alterada. Ela tem dentro de si o seu próprio equilíbrio funcional de forças, a relação entre a mãe e o filho, entre o neto e seus antepassados. Permite-nos, dessa forma, partir rumo ao cerne do seu caos harmonioso, onde a dor e a morte aparecem desveladas como algo próprio da natureza e, por isso, belo. Por mais violento que ela possa ser. Filhos que abandonam ideias em chamas, cuja natureza icariana faz que só pela dor concretizem o que aspiram ser.  Avós que assombram os netos com seus sonhos e profecias. Mães que observam os fihos cumprirem-se sobre o gume da morte.

            O desconcerto, provocado pelo desvelar dos conflitos internos da paisagem com outras vozes, assemelha-se mais a uma arena do que a um horto, é aliás bélico. É um balanço permanente entre a imagem e aquilo que a imagem evoca, mas não num plano tradicional da oposição da fenomenologia clássica, é uma luta dentro da própria imagem, é dentro dela que uma parte entra em conflito com o restante, o mundo atacando,  a memória como uma revelação, o mundo retaliando, e o corpo respondendo, não serve estar ferido nos olhos e capitular. Urge desdobrá-los… como um punho ou um baluarte erguido na frente das trincheiras do mundo.

            Esta luta pede aliás um tributo para as tramitações da carne porque é aos corpos que é exigido que encenem este combate, porque é do que lhes compõem que vêm o que gera a confrontação, as mãos que não são só, como dissemos, elemento primeiro de reconhecimento do mundo, mas também que trazem sedes próprias (fomes que nem o pulso apaga), que rangem raivosamente para morder.

            Esta submissão do sujeito para dar lugar ao corpo encontra-se também reflectida nas imagens propriamente eróticas, no sentido clássico da palavra, isto é, como aquilo que diz respeito ao amor. Porque até aqui, não encontramos, propriamente, o amor como resultado do desejo de quem ama, nem tão pouco na candura ou desenvoltura de quem é amado: o amor aparece tão só como mais uma das dinâmicas de confrontação entre os corpos, como um enigma próprio da paisagem, e o beijo como um detrito do vocábulo ou um ósculo de rebentação. Quando amados, os corpos procuram a sua proximidade, querem a faísca do seu magnetismo, procuram visceralmente ceder à sua vertigem. Quando amados, ou, melhor dizendo, quando atraídos pelo amor, os corpos desmembram-se e tornam-se elementos da paisagem.

            O amor tem essa faculdade, de operar uma transformação das coisas, dando-lhes exaustiva vida própria, uma outra utilidade, vemos neste livro, mãos que se tornam água, que arredondam pedras, que sulcam a derme e fendem desejo, que se alimentam do que criam e que criam o que alimentam. É um momento de subtração para gerar novas substâncias, de cair verticalmente a meio e aparecer de pé sobre a laje do teu futuro.

            E é quando há a possibilidade de o amor desaparecer, mais que quando se extinguiu o ânimo de uma criatura, o sujeito de um corpo, ou a textura de uma paisagem, surge o momento de maior fulgor e violência nos poemas. Fala-se de rasgar o corpo amado de cima a baixo, de incendiá-lo e encontra-se o verso que dá título ao livro é na pedra que a luz afia o gume, como se fosse possível torcer a própria espinha dorsal da luz, do canto, para torná-lo acutilante, perigoso, feroz, penetrante como uma faca.

            Neste livro assistimos a uma cosmogenese, o que há de substantivo parece surpreendentemente alinhado num conjunto de teses que organicamente dialogam entre si e se reforçam, sobre a aparência de uma linguagem desconcertantemente límpida e soberana. Tem lugar um teatro dos corpos alimentados pela sua própria paixão mas sem ter, propriamente, um pendor onírico, uma fabulação romantizada.

            A paisagem está descarnada, despida, os ossos expostos. Onde nos desconcerta, é a sensualidade que evoca este desvelar por vezes tórrido, por outras vezes sereno. Os corpos enquanto actores, figurantes e cenário procuram-se e procuram se a si próprios, enfrentam a noite e a escuridão de tudo o que lhes rodeia, do seu desígnio, do seu passado, da sua descendência, da sua paixão, a dor e a morte despem-se, apresentam-se puras, não-mediadas, escorrendo sem coágulo.

            Só, talvez, na memória dos anciãos da família, surge uma afecção dir-se-ia pessoal, mas em todo o resto é um livro completamente acabado e que nos perturba na medida em que se alheia categoricamente do que nos é próximo, como uma casa nossa que nunca visitáramos onde de cada aresta depende o confronto com a ruína. Na mesma medida que se afasta de si próprio, procura-se a si próprio como um outro, como um olhar projectado de fora do crânio para o corpo mas não como um corpo que se olha ao espelho, porque não é necessariamente reflexivo, não é o sujeito que se pensa, é algo que pensa fora do sujeito sobre o sujeito e que para isso usa o que vê, as pegadas que invocam a passagem do tempo.

            Não há linhas de fuga projectadas por eventuais desequilibrios, as única linhas de fuga são as que o seu próprio corpo indica e lança para lá de si, um corpo desmembrado, para depois ser recosido, e ainda assim manter todo o seu potencial alegórico, a sua fantasia. Foi a isto que quisemos chamar desconcerto. Um dedo outro entrando em ferida alheia sendo um dedo nosso entrando em ferida nossa.

3 poemas de Miguel Ezcurdia Royo

 

 

Sabão e Água Contra o Linho Marcado

 

No final da manhã a minha avó

subia ao terraço e estendia os lençóis

do meu sono, os sonhos presos no linho

como fantasmas distendidos, rasgados ao meio

pelo gume quente do dia, como um porco

na celebração mais antiga: avó,

hoje é dia de limpeza. És fantasma

no alto do terraço da aldeia, o lençol sobre os cabelos

brancos do vento, soltos, os teus ombros são o estendal

dos meus sonhos mais fundos, raízes que passam

de cabeça obsoleta para cabeça nascente, a minha.

 

Sabão e água contra o linho marcado

a medo: os sonhos, húmidos, para lá da ombreira,

para lá do alpendre onde faca e fantasma se quebram. A lâmina brilha

no último piso, a minha ascendência cravada

na carne, celebrada: limpeza,

cheira a sabão que seca e a lavanda.

 

Da Vide


É Sobre a Pedra que a Luz Afia o Gume

 

Recorro à metáfora violenta para aceder

ao teu corpo e coloco-o no pedestal: rasgo-o

de baixo para cima com um movimento

ritual do ventre até à boca porque

sei que é nos intestinos que metabolizas

as imagens anteriores onde a luz

não chega: eu trago os instrumentos

do fogo e incendeio os teus órgãos internos.

 

É sobre a pedra que a luz afia o gume

morno dos primeiros dias. Com as mãos separo

a carne e os dias, levo duas pedras de sílex

para atear a velha fogueira apagada.

 

Da Vide


O Sal Não Mata a Sede

 

Já não nos afogamos no mar distante.

A nossa garganta não se enche com a maré alta

e as ondas não batem contra a escarpa

da laringe erodida a golpes de água:

sem sentir o sal dos lábios

morremos na praia, deitados

tão perto do mar, como se o corpo recusasse

a sua condição motora. Mas o sol, a água: por cima do corpo

o tempo sonha no sentido contrário dos órgãos. Escapa

pela boca onde cresceu a água, mas o sal não mata a sede.

 

Da Vide

Algo resiste no sentido do centro

Querias as redenções mais rápidas para os teus pecados furtivos
a tua glória silenciosa ardendo por dentro dum peito
frio por fora, aberto às intempéries do real
ciclo orgânico-emocional dos dias, do tempo
sem a lava, sem um sinal exterior do lume, sem ti: mas estás,
algo resiste
no mesmo compasso onde esse algo desaparece e o paradoxo invoca as terras mais inférteis
aquelas onde o grão já plantado não cresce e as orações se tornam espiga
para nenhum pão, porque não as há
as mãos: o templo profanado já não guarda as antigas relíquias
o ouro índio roubado das areias, através das areias marcadas
no mapa e na cartografia fidedigna do corpo: assim se profanam
os templos, com a deslocação espacial da matéria sacra e a sombra
do mito sem esquina para dobrar: foi nos museus abertos
das 8 às 8 onde expuseram as nossas peças mais estimadas
onde turistas hereges se satisfazem com seus tamanhos e suas formas
excepto
nos feriados e na duração da noite, quando penso em ti e nos símbolos
resíduos abstractos do que antes fora religião local
agora credo e rosário conduzido pelos caminhos interiores
no sentido do centro
sempre do centro quando a janela se fecha e os pássaros já não bebem
da água benta das nossas fontes, dos nossos jardins onde os frutos:

Sim, antes havia.

agora nas mãos (apenas as primeiras) seguramos os poucos capitéis que salvámos, mas tornamo-nos mais turistas com os dias, com o tempo real aberto às intempéries, dentro do ciclo orgânico-emocional desta ausência (a nossa) e entramos nos museus como quem confunde o sagrado com o profano, os altares com os quadros e esquece a colheita, a horta esperando outras mãos, sempre as mesmas.

 

Da Vide