Livros dos editores (II)

 

 

João Coles

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Nã…

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Não se trata de um romance nem de uma recolha de contos. Digamos uma recolha de histórias ou de episódios encadeados, como cada dia que despertamos forma uma história diferente, umas mais outras menos longas. Bennett fala-nos sobre os prazeres e desprazeres da vida solitária contados por uma mulher que vive longe da cidade, dos devaneios e da dispersão da mente enquanto cozinhamos ou cortamos as unhas dos pés ou quando estamos de papo para o ar ou estamos a ler um livro, da relação íntima com a casa e com os objectos que nela habitam, desta poética do espaço de que falava Bachelard e que muitas vezes nos é alheia: “[home as] a stone plant with cosmic roots, a kind of intimate conduit between the subterranean and the aerial” - quando entrevistada à The Paris Review (PR). O livro é sobretudo isto, um relato da existência da mente em solidão. A solidão que, explica ainda na entrevista à PR, traz atmosfera a uma obra de ficção; a atmosfera rodeia mais eficazmente uma voz solitária tal como a chama de uma só vela.

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para cri…

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para criar há que destruir primeiro a matéria prima), por outro, é aqui que o vemos no seu melhor. Continuamos no seu imaginário de L.A., a sua linguagem crua, o seu humor aguçado, todo o álcool derramado também, claro, mas vemos com maior clareza o que nos romances e nos contos acaba por se camuflar, ou seja, o Charles Bukowski que em sua casa lê “The Shower” para as câmaras de filmar em pouco menos de 2 minutos. A epígrafe da primeira parte do livro resume-o muito bem: “one more creature dizzy with love”.

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões…

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões intensas sobre arte e literatura e estética. Sim, entrevê-se nestas cartas uma espécie de crítico literário desconhecido escondido entre o beberrolas e o durão das ruas de Los Angeles, ofuscado por Henry Chinaski. Sheri Martinelli foi das primeiras pessoas a publicar a obra de Bukowski, e a sua revista a primeira a recenseá-la. Tudo isto não antes de a chumbar numa primeira abordagem com uma carta de rejeição muito singular na qual lhe dá conselhos gratuitos num tom condescendente, o que, claro, leva Bukowski a reagir tempestuosamente, defendendo a sua estética e o seu estilo, o seu meio de expressão que não obedecia a quaisquer regras a não ser as dele. É assim que começa este livro, com as duas cartas que criaram a centelha desta relação improvável entre estes dois extremos opostos e que se manteve viva durante sete anos.

José Pedro Moreira

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tan…

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tanto um porto de abrigo, antes uma cidade estrangeira onde nos sentimos surpreendentemente em casa. No início de 2017, o Brexit e a eleição de Trump anunciavam um mundo mais sujo, mais desigual e mais indecente. Talvez por isso tenha sentido a necessidade de reler Antigos Mestres. Um velho crítico de arte misantropo tenta não se matar depois da morte da sua companheira, a única pessoa que tornava a existência tolerável. Thomas Bernhard escolheu, como subtítulo, comédia.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, clar…

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, claro, um guia sóbrio e com sentido de humor. The Dream of Enlightment, a continuação, fará certamente parte das minhas leituras de 2018.

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do qu…

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do que eu seria capaz. Basta-me dizer que Love is a dog from hell foi o meu livro de poesia favorito do ano.

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apes…

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apesar de muitos de nós passarmos umas quantas horas por semana a jogar videojogos, sabemos muito pouco de como são feitos. Blood, sweat and pixels acompanha o longo e quase sempre tortuoso processo de criação de dez jogos recentes. Schreier é um jornalista exímio, e cada capítulo está apoiado em horas e horas de entrevistas. É também um bom contador de histórias, que consegue transportar-nos para o meio do caos que é um projecto criativo que envolve centenas de pessoas, pressionadas por prazos e expectativas irrealistas. Há tanta peripécia que por vezes nos esquecemos que não estamos a ler um livro de contos. Dei por mim a encontrar pathos onde menos esperava: o capítulo sobre Stardew Valley, por exemplo, obra solitária de Eric Barone (também conhecido Concerned Ape), lê-se como uma história de obsessão, amor, tolerância e desejo irracional de criar algo único, e é difícil não sentir empatia pela figura.

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na co…

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na companhia da sua namorada e do seu amigo vampiro. Vão à procura de busca de deus – que parece ter deixado os céus e estar a fugir deles.

Sabia que era uma das colecções mais importantes dos anos 90, e parece ser impossível descrever os livros sem usar as expressões  “iconoclástico” e “ridiculamente violento”. Não são desadequadas, Preacher compraz-se em chocar os leitores, mas minimizam a elegância de como a obra aborda temas de amizade, amor e religião. Que uma meditação humanista sobre deus coexista com uma personagem chamada Arseface ou um vilão que parece um caralho andante sem se perder num riso pueril atesta a qualidade da escrita de Garth Ennis.

Tatiana Faia (continuação)

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de u…

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de um vegetarianismo radical, que num dado momento a leva a estabelecer uma comparação entre o abate de animais e o holocausto, termina num ensaio sobre as raízes clássicas e bizantinas do mundo em que vivemos, sobre a religião, sobre África, sobre Kafka como autor fundamental do nosso tempo, sobre o vazio da vida de escritor, que surge como uma profissão que exige um compromisso e uma honestidade de pendor quase espiritual, quase uma independência sobre-humana. Perturbador, profundo, impecavelmente bem escrito. Não há neste livro nada que não seja relevante para pensarmos o que seja viver eticamente. 

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law /…

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law / That we must suffer, suffer into truth. Uma das unidades sociais mais básicas do mundo em que vivemos continua a ser o casamento. Não há nada de escandaloso ou chocante neste livro de Rachel Cusk, ainda que o livro tenha sido violentamente atacado. Aftermath é sobretudo um ensaio sobre o violento colapso de uma ordem, sobre feridas e cicatrização. Como arrancar um dente. The last supper, Outline, A life’s work, Aftermath. De um modo quase discreto, capturando o que parecem ser as situações mais comuns que estruturam as vidas de mulheres, o parto, o casamento, trabalhos e férias de família, os livros de Rachel Cusk lembram-nos que há na literatura um poder testemunhal que nos ajuda a viver um pouco melhor.

Livros dos editores (I)

Três dos editores da Enfermaria 6 trazem aqui alguns dos livros preferidos de 2017.

A lista continuará na próxima semana.

 

Victor Gonçalves

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean …

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean Wahl, Walter Kaufmann, Wolfgang Müller-Lauter), Dorian Astor mostra uma inteligência hermenêutica e um conhecimento da obra nietzschiana capazes de renovar o interesse, sem fetichismos, pelo solitário de Sils Maria. A sua escrita alia clareza e profundidade, o melhor de dois mundos, pois. 

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha te…

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha tecnologia de comunicação. Que tanto serve para tecer emoções como para geometrizar o mundo. Traduzir, expor o interior do corpo, refazer as relações sociais, programar o desaparecimento, repensar a escrita, anotar partituras, listar as tarefas diárias, versejar palavras banais... De tantos modos de escrever fala (ou escreve) esta obra. 

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicçõ…

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicções. Como se pode a partir de uma frase ou de uma imagem contaminar sem remissão a beleza e a grandeza da vida temerária. Um livro de história e um livro de antropologia, deixando que se encaixem nesses dois universais as pequenas histórias cheias de euforia e de disforia, uma a seguir à outra. Imprescindível. 

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) com…

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) comunista, um igualitarismo (pelo menos para a grande maioria) imposto à lei da bala e da prisão. Despir homens e mulheres da sua pele cultural e olhar directamente para as estratégias mais elementares, amorais, de sobrevivência, já sem raiva ou alimentados pelo espírito de vingança, em puro para lá bem e mal. E depois, uma extraordinária desvalorização da vida em favor da marcha da história, um caminho visionário que alguns acharam por bem, caprichosamente, elevar a lei cósmica. Uma Teodiceia ao contrário. 

Paulo Rodrigues Ferreira

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se sab…

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se saber estar no mundo sem a pessoa amada, apesar de todas as zangas e defeitos. Quinhentas e tal páginas, longuíssimas frases, reflexões sobre a vida, o amor e a dor, tudo para dizer que Sofía e Rímini não se conseguem afastar. Por mais que se afastem, estarão para sempre juntos. E acabam juntos. Este é um livro para leitores a sério.

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura…

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura, lê e comenta atentamente os seus próprios contos. Explica, por exemplo, que lhe interessa o universo do “fantástico”, na medida em que o fantástico é, ao contrário do que possamos pensar, algo que tem como objectivo fazer pensar. Acompanhar o pensamento de Cortázar é uma forma de regressar aos seus contos, de relê-los, de vê-los a partir de outros pontos de vista. 

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá…

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá-los, de não ter mais espaço, por exemplo). Em Manguel passamos de Homero a Borges sem darmos pela passagem de duzentas páginas. 

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o r…

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o resto que tenho lido. Este livro é uma criação genial de Piglia, uma investigação de Emilio Renzi, conhecida personagem ficcional, sobre um tio intelectual a tender para o libertário, que largou uma mulher rica para fugir com uma mulher de má fama e viver no mais puro anonimato. 

Tatiana Faia

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pr…

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pressão de regressar à América, ao destino convencional e medíocre a que primeiro tentara escapar. A Sport and a Pastime tem uma segunda parte aparentemente repetitiva, seguimos Dean e Anne-Marie, a rapariga por quem ele se apaixona, de hotel de província em hotel de província, noite após noite, em círculo, até que quando chegamos às últimas páginas entendemos que A Sport and a Pastime é um romance sobre a natureza e a fragilidade da felicidade, do veneno de sucumbir a convenções, abdicar de sonhos, abdicar de nós próprios, uma espécie de carta de resistência, tendo por cenário a beleza das pequenas cidades provinciais de França, intacta, espécie de sinal ao alto da potência da vida.

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian …

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian Past que a Paris Review, na entrevista feita ao autor, definiu como colossalmente sórdido. É um livro sobre os bairros de Paris mais afastados da circunferência imediata do Quartier Latin e do Boulevard Saint Michel. É de alguma forma um guia ilustrado sobre a formação da identidade contemporânea de Paris, particularmente concentrado nos séculos XVIII e XIX e nos bairros periféricos. The Other Paris é povoado de flânerie, personagens bizarras, ruas e cafés onde se deram os encontros e os acontecimentos mais estranhos. Um livro indispensável, não só porque amar Paris é indispensável, mas porque cada ano merece pelo menos um belíssimo livro sórdido.

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um …

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um olhar crítico à precariedade de Inglaterra para pensar no valor da arte, da fotografia, da cultura em criar pontes entre as pessoas, em treinar a empatia. É um livro fundamental sobre a ligação entre actos de decência básica, ausência de preconceito, beleza e amizade. Neste país tão amado, que parece à superfície estar condenado a virar-se para dentro, há aqui um voraz olhar para fora, acto sem o qual nunca estaremos exatamente vivos. Redescobrimos ainda aqui a arte das colagens de Pauline Boty. 

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por …

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por terminado, num desses processos de escrita que são afinal o que a expressão “o poema contínuo” pretende definir, a noção de uma obra nunca acabada, que continua a trabalhar no autor muito depois do ponto de publicação. O título é uma alusão ao facto de todas as histórias se passarem dentro dos muros de Ferrara. Escritas no pós-guerra, quase todas as histórias são marcadas pela memória violenta desse período. A vida de uma cidade de província que é uma epítome da história da Europa, da história do mundo. Num dos contos lê-se: “The truth is that the places where you have wept, where you’ve suffered, where you’ve had to find the many inner resources to keep hoping and resisting, are the ones you grow fondest of.” Assim Ferrara para Bassani. 

Bailey

6.30 em frente à tua porta
não sei ao certo como começou
talvez fosses madrugador por natureza
nenhum de nós faltava
nem mesmo
nos dias de chuva
caminhávamos juntos
até ao fim da rua
contavas-me como iam
as coisas no clube
a pressão da liderança
de como todos querem
algo de ti
os mais novos
são ambiciosos
estão mortinhos
por me ver fracassar
já não sou o mesmo de outros tempos

mas todos te respeitavam
até a Betsy
apesar da rivalidade
sempre suspeitei
que ela tinha
um fraquinho por ti
6.30 em frente à tua porta
vinhas ter comigo
eras um bom ouvinte
acho que estou para perder o emprego
e depois de escapar à ronda de redundancies
estou farto daquilo
acho que não fui feito para ser
animal de escritório

caminhavas ao meu lado
até ao fim da rua
exortavas
as virtudes da paciência
e voltavas para trás
ainda passo pela tua porta
todas as manhãs
já vai para um ano
que faltas
ao nosso encontro

Da utilidade e dos perigos da caricatura para a vida

Dada.jpg

A caricatura exagera os traços do objecto, verga os limites, rasga-os por vezes, introduzindo, assim, o risível, o ridículo no que representa. Neste sentido, diz José Gil, “A caricatura é como um monstro cultural”.

Mas deformar o significante ou o referente é útil para a vida porque acrescenta significados, enriquecendo o sentido do que é caricaturado (a Contra-Informação, e.g., ampliava os ângulos e os pontos interpretáveis das personagens).

Pelo contrário, ela é perigosa para a vida porque contamina com suplementos espúrios o significante ou o referente, mostrando-o disforme e volátil, numa palavra: sem valor (nas guerras os inimigos também se combatem assim). Retirar a seriedade ao objecto fá-lo implodir ou torna-o irrelevante, a não ser quando ele próprio se apresenta desde a origem constituído no e para o anedótico (por exemplo, o movimento DADA). Na cultura do sério, cheia de quantificações e de moralidade, a introdução da irrisão desbarata a estrutura que a mantém ordenada.

Desta forma, a caricatura é um pharmakon (dispositivo linguístico grego para a ambiguidade). E não vale a pena conjurar a sua negatividade, já que ela se aloja na própria utilidade (devíamos ter mais presente a metafísica do yin/yang). Por outro lado, o impasse político-social que aprisiona actualmente a Europa (com uma brutal crise demográfica, de que quase todas as outras são, parece-me, consequência) pode levar ao recrudescer da seriedade mortífera (necessariamente conservadora e dogmática, é impossível ser sério sem acreditar na Verdade e numa escala de valores que polariza simploriamente o bem e o mal, juntando-lhe as respectivas interdições/permissões e punições/recompensas). Revejam os semblantes cadavéricos dos facínoras nazis (e também, claro, os risinhos cínicos). Apesar de tudo, se controlarmos os riscos, a caricatura será uma das poucas formas de, numa época niilista como a nossa, combater a rigidez conservadora, sobretudo a intolerância moral que parece pronta a conquistar novamente a Europa, a começar pelo Leste.

Livros do ano (passado): Reiner Stach: Kafka

"Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic..."

Stach-Kafka_DecisiveInsight.jpg

Com um total de 1832 páginas dispersas por três volumes, Reiner Stach tornou-se o autor da mais completa e autorizada biografia de Kafka, cuja tradução em língua inglesa foi publicada pela Princeton University Press entre 2013 e 2016. A Princeton University Press não funciona como a maior parte das editoras de textos académicos do mundo anglo-saxónico. Num modelo semelhante a um punhado de outras editoras ligadas a grandes universidades dos Estados Unidos, a PUP edita os seus livros utilizando os fundos de um endowment, um subsídio se assim lhe quisermos chamar, o que significa que esta editora escolhe muito criteriosamente o que publica, publicando muito menos do que as casas editoriais que competem nos mesmos mercados. Significa também que não existe necessariamente pressão para gerar lucro, porque este não é necessariamente o fim para o qual esta casa editorial existe. Não faço a mínima ideia de quem seja o(/a) editor(a) das humanidades da PUP. Não tenho qualquer ilusão de que se possa imaginar esta pessoa como alguém imune às pressões de justificar perante um conselho editorial as suas decisões em termos financeiros, nem que em editoras que funcionem sob a pressão de gerar lucro estes projectos não existam também, mediante um certo compromisso. Nem estou com isto a dizer que o que gera lucro tem necessariamente falta de qualidade, ou que o que o não gera é necessariamente bom, belo e justo. A existência destes volumes cor-de-laranja avermelhado, no entanto, pode dar-me as expectativas erradas, mas faz-me pensar mais em alguém como Aldo Manuzio do que alguém que confunda o trabalho de editor com uma extensão do serviço de apoio ao cliente. Não sei quem é o editor das humanidades da PUP mas gostava de lhe apertar a mão. Quero com isto sublinhar a minha absoluta apreciação pela singularidade do que reconheço pode não ter sido exactamente um investimento. O leitor romântico em mim fantasia que algumas casas editoriais deviam mesmo funcionar nos mesmos moldes de um sistema nacional de educação ou de um sistema nacional de saúde, com uma espécie de compromisso tácito entre o governo e os cidadãos, de que é aceitável que a finalidade de certas instituições não seja gerar lucro, mas educar os cidadãos, melhorar a qualidade de vida, ajudar a elevar o nível do debate democrático. Alguns livros darão sempre prejuízo mas há um valor imaterial na sua existência. Tenho uma dívida de gratidão para com esta pessoa que resolveu que fazia sentido editar Reiner Stach em inglês. Não sabendo ler alemão, nunca teria tido a mínima hipótese de ler os dois últimos volumes da biografia de Kafka escrita por Reiner Stach se não fosse pelo que imagino só pode ter sido uma combinação de idealismo e uma ausência de receio perante o risco de prejuízo. Não li ainda o primeiro volume porque disputas que envolvem os herdeiros de Max Brod atrasaram substancialmente a pesquisa de Reiner Stach para a primeira parte da biografia, que acabou por sair no final de 2016.

Reiner Stach sumariou a extensão do desafio de escrever uma biografia de Kafka numa frase que aparece na introdução ao segundo volume: “Even today, a biography of Franz Kafka that bore the title A Life would seem ironic.” Um pouco mais adiante RS elabora sobre este ponto: “If a person who was so inconspicuous in his social surroundings was capable of generating a shock wave in the history of world culture, the echoes of which still resound today, it seems inevitable that we need to regard life and work as incompatible worlds, each with its own set of laws.” No cerne de Kafka (o conjunto dos livros mas também o autor) está esta tensão. Um crítico notava que, paradoxalmente, Kafka teve uma das vidas mais bem documentadas do século XX. RS dá-nos os números: “...Kafka generated about 3,400 pages of diary entries and literary fragments...Virtually all of Kafka’s approximately 1,500 letters that were preserved have been published...”

Há um tópico na literatura grega antiga que diz que as gerações dos homens são como as folhas, que florescem e fenecem reflectindo o arco das estações do ano e que desaparecendo dão lugar a novas. Aparece em Homero primeiro e depois em Mimnermo. Enquanto escritor, a actividade de Kafka termina num momento de profunda cisão, pouco antes de o terror da Segunda Guerra se instaurar e a meio, Kafka viveu metade de uma vida, morreu quando normalmente se chega ao auge. Das muitas coisas que a biografia de RS é, aquela que é talvez mais relevante prende-se com facto de estes livros demonstrarem como esta vida de um judeu de Praga que viveu mais ou menos no anonimato, que trabalhava como advogado num instituto público de seguros, que publicou pouco durante a vida e ironizava com a sua falta de sucesso comercial (na livraria tal havia onze livros meus, eu comprei dez, matava para saber quem comprou o décimo primeiro), que tinha uma irmã favorita que dava pelo diminutivo de Ottla, que passava horas a sonhar acordado num sofá, que em Munich fez uma leitura pública e desastrosa da própria obra, que invejava alguns dos escritores seus contemporâneos, que esteve noivo duas vezes da mesma mulher e nunca se casou com ela, que quis combater na Primeira Guerra e o chefe não o deixou ir, que gostava de remar e de trabalhar a terra, que amava o teatro e tinha amigos actores, que se apaixonou por uma jornalista que era uma mulher casada e formidável, chamada Milena Jesenská, Kafka, para quem um dos últimos encontros é com um grupo de raparigas a quem ele sorri, e elas olham para ele apelidando-o com desdém de judeu, é uma das vidas essenciais do século XX, talvez a vida essencial do século XX. Não apenas por causa da dimensão da aventura intelectual do seu percurso de escritor, algo que, em qualquer dos casos, é difícil de documentar e que o trabalho de RS descreve incrivelmente bem, mas porque há toda uma dimensão da história do século XX que é personificada no percurso de Kafka.

O que se segue é uma selecção de alguns excertos desta biografia monumental.

(Sobre o barulho constante na casa dos Kafka) “Kafka called this prose piece “Great Noise”. He jotted it down in his diary on November 5, 1911, and about a year later published it in a Prague literary journal for the “public flogging of my family,” since the circumstances depicted in it had not changed in the slightest. It is unlikely that Hermann Kafka ever saw with his own eyes the mark that his trailing robe left in German literature.

(Do diário, sobre Werfel, um jovem poeta amigo de Max Brod) I hate W., not because I envy him, but I envy him too. He is healthy, young, and wealthy, everything that I am not. Besides, he has written very good things early and effortlessly, using his sense of music; he has the happiest life behind him and before him; I work with weights I cannot get rid of, and I am completely detached from music.

(Sobre a leitura pública de um texto sobre Yiddish) Kafka caught his listeners unawares, and played an aggressive game with their expectations, alternately confirming and demolishing them. A reader would be hard pressed to find a comparable example among Kafka’s contemporaries of such a modern, reflective intensity.

(Sobre literatura, de uma carta a Felice Bauer) Not even the part about the “artistic bent” is true; in fact it is the most erroneous of all these erroneous statements. I have no literary interests; I am made of literature; I am nothing else and cannot be anything else.

(Sobre o início da Primeira Guerra Mundial) On August 2, 1914, just a few hours after the Great War began, Kafka walked away from the cheering, the special news supplements, the singing, announcements, addresses, rumours, hoarding, parades, porters hurrying by, horses clopping, rolling gun carriages, sparkling uniforms, freshly ironed flags, and weeping girls. The diary entry with which he turned his back on the world was, “Germany has declared war on Russia – Swimming in the afternoon.”

(Kafka recebe correio de um fã a propósito de A Metamorfose) Now [my cousins] they’ve written to me. They want me to explain the story to them because I am the one with a doctorate in the family. But I am baffled.
Sir! I spent months fighting out with the Russians in the trenches without flinching, but if my reputation among my cousins went to hell, I would not be able to bear it.

(Depois de uma leitura em Munich, nota de Kafka sobre o juízo de Rilke) After some extremely kind remarks about “The Stoker,” he [Rilke] went on to say that neither “The Metamorphosis” nor “In the penal colony” had achieved the same effect. This observation may not be easy to understand, but it is perceptive.

(Sobre Milena Jesenská) Unlike Felice Bauer or Julie Wohryzek, her personality was stronger than Kafka’s. It is conceivable that he could have molded himself to Milena, but it is not conceivable that she would have followed him into his world…Her experiences went well beyond the risqué rumors in Prague and could not be reconciled even with the vague idea of Bohemian libertinism. Two abortions. Two suicide attempts. Shoplifting and document forgery. A lesbian relationship. Drug abuse. Work as a baggage handler. Cohabitation with her husband’s mistress. It was thought she was turning the world order on its head, both economically and morally.

(Sobre o fim da época de Kafka) The fate of many people he was close to was sealed, and countless traces of Kafka’s life that were left behind in the collective memory were wiped out. Letters, photographs, literary estates, even entire archives were destroyed. The violence that gripped the era often made it impossible to identify what was lost, and even to ascertain that it was lost. If Kafka had had the double good fortune of surviving tuberculosis and then a concentration camp, he would not have recognized anything left after the end of this catastrophic blow to civilization. His world no longer exists. Only his language lives.