Sobre um poema de "Os Poemas Fingidos" de Pedro Braga Falcão

Poemas-Fingidos.png

Dentro em pouco, será lançado este livro de Pedro Braga Falcão (agendado para a Barraca, Lisboa, dia 29, com leituras a três na bela livraria Flâneur, Porto, dia 31 de Março de 2018). Acho que vai haver revelações, tanto mais que será a nossa editora, e poeta, Tatiana Faia a escrutinar o trabalho do Pedro. Chamo-lhe “trabalho” para não repetir palavras (aprendi isso com a minha professora primária, que sufocou a empatia à nascença). Em boa verdade, poderá uma obra ser considerada trabalho? Que diabo de palavra é esta que consegue misturar economia, teologia e fisiologia, acabando, sem o saber, no reino mais conservador da metafísica? Enfim, avancemos: Pedro Braga Falcão, parte dele, quer estar à margem da actualidade, por isso (ou por outra razão, mas aqui calha bem estabelecer essa relação) traduziu as Epístolas e as Odes de Horácio (Cotovia) e um dos seus livros de poesia chama-se Do Princípio. Sei parte disto também porque ele o confessou numa espécie de autobiografia para a Enfermaria, embora a arte do oximoro, que por vezes encanta ouvintes (usa ainda a viola, com a qual ressuscita música antiga, a quem, como é sabido, ninguém resiste), deva acautelar juízos perentórios.

Conheço o Pedro há pouco, ou melhor, encontrei-me com ele duas vezes, numa já tínhamos bebido uns copos (e sem autocensura entra-se no reino do disparate, excepto os bukowskianos), na outra, há poucos dias, estávamos envolvidos por uma multidão de estudantes a satisfazer uma das necessidades mais básicas da Pirâmide de Maslow (comer), contexto pouco propício à visão oblíqua que extrai segredos importantes do parceiro discursivo. Mas enfim, percebi, entre outras coisas, que acha a filosofia moribunda (eu fui atrás, quando devia ter cruzado ferros), o homem mais interessado na esperança de vida do corpo (bons auspícios para antropotécnica) do que em cuidar do espírito e os ritos teológico sem a raridade que lhe confeririam o poder mágico de trazer a transcendência até nós. Portanto, duas conversas e aproveitar o sentido do que vai escrevendo, também para a Enfermaria, ou está nas críticas às suas obras contaminará pouco a minha hermenêutica (uma hermenêutica fenomenológica, perdoe-se o centauro pretensioso). Não do livro inteiro, mas de um poema, um único poema que, sem resumir o sentido, ou sentidos, da totalidade, pode indicar o tom para apanhar o autor pelas costas (o velho sonho de capturar o universal no singular). Modo de dizer, sabe-se (embora poucos acreditem) que os autores são ultrapassados pelas obras, e mesmo estas vão sendo reescritas pelos leitores. Contudo, autorizo (e creio que até facilito) o autor a rir-se desta leitura, devo-lhe isso.

O poema é o 11.º do terceiro capítulo do Livro II:

Como essas crianças aí, estupidamente felizes,
porque não ter a estupidez de uma felicidade,
e comprometer-me ao estilo de mexer os braços?
Ser de uma estupidez intolerável.
E não entender nem um pouco mais do que entendo.

Ser como os que desprezamos, nós,
os que vivem na cabeça e deixam o corpo órfão,
à espera do dia em que lhe dirigimos a palavra,
na doença, na podridão dos nervos,
nos intestinos virados do avesso.
E aquela criança estupidamente infeliz
porque lhe morreu a mãe e não tem ninguém,
que não brinca e baixa os olhos e não nos vê?
Será que nós, os sábios que idolatram a ignorância,
fomos ou queremos ser estúpidos como ela?
Ou a ambivalência das grandes frases e frustrações
nos deixa perplexos perante a nossa estupidez?
Ou de tal modo ociosamente retóricas
as perguntas se desfazem num humor sujo
a que todos nós chamamos o néctar dos deuses.
E ainda assim confessamos que a ciência,
essa deusa macabra, não brinca
como brincam essas estúpidas crianças.

Pedro Braga Falcão evoca aqui a antiquíssima questão sobre a origem, a proveniência da felicidade. Problema que exige um certo grau de sofisticação intelectual, daí que os pobres de espírito (haverá tal coisa?) vivam felizes ou infelizes, enquanto os ricos de espírito (haverá tal coisa?) reflictam sobre como viver feliz ou infeliz (que às vezes declinam nos termos tristeza e melancolia, combinando-os com um cigarro e um copo de vinho tinto reserva). E isto são dois mundos irredutíveis, não há qualquer transvase de sentido entre eles. No primeiro andamento do poema critica o destino por lhe ter recusado a linha de vida das crianças “estupidamente felizes”. Lamento frequentemente ouvido nos eruditos quando se cansam da bibliomania que os aprisiona; mas seria estranho que repentinamente deixassem o corpo visitar lugares afastados das estantes ou mesas de trabalho (regressou a palavra equívoca), reeducar o corpo demora muito tempo, e vá lá saber-se se eles querem verdadeiramente isso. Sobretudo, como diz Pedro Braga Falcão, porque os que “vivem na cabeça” “deixam o corpo órfão”. Mas o idílio da estupidez, entramos no segundo andamento, pode não ser o do intangível Caeiro, antes o de uma criança sem mãe, uma estupidez da miséria e do sofrimento. E claro, a tensão entre a realidade vivida e a realidade fingida só podia criar a ambivalência que reverte o jogo dialéctico inicial, mostrando que os campeões da semântica (com a sua fé absoluta nas palavras) são, afinal, grandes estúpidos (às vezes, poucas, magníficos). E nem a ciência resiste, porque o seu poder fantástico de descrever os diagramas das leis naturais não a dispensa de uma estupidez essencial em relação ao que é propriamente humano, escapa-lhe que nós vivemos com um pé no jogo e outro no cemitério, brincamos e moremos, não de uma só vez, mas em modo gerúndio: vamos brincando e morrendo, e isso escapa à “deusa macabra”.

Portanto: Pedro Braga Falcão, cuja poesia mistura muitas vezes o Antigo Testamento com a paideia de gregos e romanos antigos – epicuristas e estóicos, menos cínicos –, heróis que se deixavam alegremente vencer pelos caprichos do Cosmos (talvez o chaosmos de Joyce), quere-se, antes de mais, lúcido. A sua poesia desnuda os nervos que decidem o movimento das coisas, das ideias e das emoções, e os nervos não mentem, nem lhes interessa a beleza poética, revelam as coisas como são. Neste caso, a estupidez é estúpida e quem a glorifica vive rodeado de dicionários e esqueletos andantes, ou então, como dizia uma personagem célebre, “sofre de fartura”.  

O Anjo Aniquilador no FB

Now my advice for those who die
Declare the pennies on your eyes

The Beatles, “The taxman”, Revolver, 1966

foi em 2004
nunca me esquecerei
Paris
todas a manhãs caminhava de Montmartre
até ao Quartier Latin
atravessava o Sena
ora pela Pont des Arts
ora pela Pont Royal
dependendo do meu humor
do tempo
e do fluxo de turistas
antes das aulas
ia ler para um café
sempre o mesmo
na Rue des Écoles
lia a poesia de Celan
e sentia a poesia de Celan
como só em Paris
num dia de Primavera
se pode sentir
a poesia de Celan
uma lata de Coca Cola
custava 4€
a arte exige sacrifícios
é quando estamos prestes a desistir
que o véu de Maia se rasga

a Beleza
o anjo aniquilador
de que falava Rilke
é insuportável
disse em voz alta
como se fosse a divindade
que falasse através da minha voz

é insuportável
porque infinitamente humano
foi precisamente então
que nasceu o meu primeiro livro
Um Parto de Espanto

escreve o poeta no Facebook
antes de distribuir prodigamente
likes como autógrafos
nas sessões de leitura
que regularmente organiza

abaixo
uma fotografia
do anjo aniquilador
projectando sobre a paisagem
a sua sombra indómita
sobreolho franzido
por pensamentos pesados
a cerveja consumida nas leituras de poesia
pode ser considerada
uma refeição de trabalho
para efeitos
de declaração de impostos?


mais abaixo
ainda
a imagem
do anjo aniquilador
erguendo um cachecol do Benfica
a legenda
reza somente
no domingo
até os comemos

Eduardo Quina, Ausência (recensão)

ausencia-capa.jpg

Em ausência [pequena liturgia de um regresso] (Eufeme, 2017), Eduardo Quina experimenta uma poética do desconsolo, indicado pelo título e confirmado por uma semântica da dor, do disforme, do abandono, da solidão, do desamor, da desesperança.... Estranho, quando sabemos que há muito se estabeleceu uma corrente isomórfica entre o êxtase poético e o êxtase religioso (entre nós, por exemplo Tolentino de Mendonça ou João Moita). Mas Eduardo Quina quis inverter Novalis, em vez da criação poética ajudar à criação do Universo, vemo-la mais como um apontador, e amplificador, da imperfeição e do desespero. Os recortes que imprime no tecido do mundo abrem para lugares sombrios. A transcendência, mistura de deuses pagãos e bíblicos, não funciona como um refúgio de compaixão, é antes um catalisador do mal. Esta interpretação ousa o que talvez não devesse, como diz Pessoa “Os Deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser.” (Livro do Desassossego). Ou seja, a Alteridade jamais compreendida. De qualquer forma, Eduardo Quina compôs a sua língua e com ela fabricou um universo (não o Universo de há pouco), mais perto de Francis Bacon do que de Gustav Klimt, de Nietzsche do que de Kant, de Joseph Conrad do que de Gabriel Garcia Marquez, de Beethoven do que de Mozart. Um universo sem paz nem alegria, mas um universo. E isto é capaz de conjurar muita coisa.

O primeiro poema do livro, “[nota]”, mostra um trilho que podemos seguir para nos aproximarmos do pensamento, mais vasto do que o do autor, que lhe deu origem. Aí se evoca, numa tonalidade trágica, Orpheu, a penúria, a impunidade dos deuses, trazidos à luz pela palavra poética, que não passa de “estilhaços repercutidos e insignificante”. Uma evocação que revela o pano de fundo do livro: “memória e ausência.” Serão estes termos – teológicos e históricos – a compor a possibilidade do recomeço, com gestos tensos, elementos de um corpo que aguçou os sentidos do sofrimento, por isso as palavras, como diz em “[Re]começar”], só podem explodir-nos nas mãos e silenciar-se na voz.

Eduardo Quina desafia o vórtice do tempo com “relâmpagos poderosíssimos / para que se erga a luz sobre as imagens”, mas, como julgamos acontecer aos humanos que juntam arte e eternidade, compõe pequenas ramificações poéticas que parecem rijas, embora acabem por não pesar na política do Cosmos. Por isso, não deve haver “remorsos ou falsos consolos”, a escuridão combate a luz, e parece ganhar-lhe. E quando isso não acontece, a resplandecente e magnânima luz divina tem somente a força caprichosa do seu ensimesmamento: “a vida é apenas um conjunto de subtracções / e parece que os deuses nos sabem magoar / como são belos os deuses desprovidos de misericórdia.” (“3.”). Os deuses transportam “morte e ilusão”, até porque vivem numa “arbitrariedade compulsiva”, mesmo quando imaginamos essa compulsão feita de amor.

Se isto poderia heroicizar o homem, como pensava Nietzsche? Não. A nossa incompetência, com as palavras e com a vida, revela-se irredutível quando lemos Ausência. Não sabemos dizer as coisas demiurgicamente e deixamos morrer a amada duas vezes. Resta ao poeta ir de “alucinação em alucinação”, embora aqui, como não podia quase deixar de ser, Eduardo Quina abra uma frincha por onde entra claridade, permitindo-lhe, quando abandonar o ofício e se proteger com a armadura de uma espécie de amor fati, ainda “escrever humildemente / longe do mundo”.

Isto dá-se sensivelmente no meio do livro, a partir de onde parece ser possível construir “os vícios, etapa a etapa”, mesmo no impasse de “um estático clarão” ou na inclinação para o mal que provoca uma segunda morte. É assim que lemos no poema “13.” “uma papoila que floresce uma última vez: / abre-se onde já nada se espera / no som definitivo da demência”. Este desvio à lucidez é uma pequena bênção que permitirá outra liberdade do corpo (talvez o marcador semântico mais usado por Eduardo Quina), lembremo-nos de Dioniso. A alteridade é agora partilhada entre a transcendência e a imanência, sem empatias salvíficas, mas vemos aparecer uma nova política dos afectos. Pode olhar-se o futuro, mesmo quando nos “rendemos à ideia de tragédia.” O mito e a metafísica, o labirinto e o Céu, envolvem-nos agora sem nos esmagar, podem dilacerar-nos, mas não esmagar como quem se alegra do som de uma barata pisada numa geometria calculada de sapatos caros. E mesmo terminando, noutra “[nota]”, a revelar-nos que há somente medo, facas, barbárie, delírio, inferno, demência e que “a poesia é uma farsa.”, e talvez seja isso mesmo, Eduardo terminou um livro que alguém lerá embebido pelas forças emotivas da vigília. O autor, mão dos deuses, da alma e do corpo, terminou um livro que viajará pelo mundo, com a sua orografia acidentada e a combater – perdendo? – o tempo da pressa. Escolheu cuidadosamente as palavras, teve essa liberdade (apesar de nos alertar para a pujança do destino), olhou para as folhas em branco e anteviu o olhar do leitor em parágrafos com formas orgânicas. Acusou os deuses ao mesmo tempo que os louvou (a indecisão habita os crentes genuínos). Deformou o corpo. Invocou a morte, não como um fim mas como um meio (a pior das mortes, diz-se). Esboçou uma metapoética, à semelhança dos seus companheiros de ofício (quem resiste a esta tentação?). Olhou para o alto e percebeu que se afundava no sem-sentido ou pisava um campo minado. Mas fez tudo isto em júbilo; sombrio, se quisermos. E este trabalho, que exige uma recepção audaciosa, é a luz negra que prova a nossa filiação prometeica, insistimos e rimos, mesmo quando não conseguimos sair da esquina da primeira circunvalação do labirinto e isso nos deveria entristecer para sempre. Experimente-se, pois, a ausência.

Antes da morte que um português merece

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Lisboa, Rua da Escola Politécnica 

Não me lembro ao certo da primeira livraria da minha vida tão cheia de livrarias. Suspeito que pode bem ter sido a Bulhosa em Entrecampos, de todo não tão decadente então. Eu devia ter talvez quinze anos. Esta é uma primeira vez – a primeira vez em que comprei um livro absolutamente sozinha, longe do burburinho de pais, primos e irmãos. Com a audácia de um leitor que entra numa livraria certo de si. Há umas semanas, Elena Ferrante tinha uma crónica no The Guardian sobre a intensidade das primeiras coisas, primeiro beijo, primeira vez, primeiro dia de escola, primeira palavra lida, primeiro emprego.  A autora italiana fala de como as primeiras vezes não são necessariamente as ideais, as melhores. O que afinal torna as primeiras vezes tão importantes é o seu carácter de momento marcante, a dimensão mitológica, a relação indelével entre a primeira vez que fazemos algo de particularmente significativo na história das nossas vidas e a noção de que isso se vai tornar parte da nossa história ou um hábito. Ternura, alegria, decepção, amargura - a primeira vez enquanto ponto a partir do qual narrar, nem que seja só a nós próprios, a crónica de nós próprios. Séneca escreveu que nada do que é humano nos é alheio, mas a articulação do humano tem uma velha ligação com a habilidade de nos fazermos entender. Tudo o que fica de fora dessa intuição, o que é inenarrável, é tão mais precioso ou monstruoso exactamente porque pode apenas ser indiciado pela linguagem. Mostrado, não demonstrado. Não sei então porquê esse primeiro livro, nessa livraria em Lisboa. O dia de escola devia ter acabado, podia ter sido uma tarde livre, eu devia estar a fazer tempo para que chegasse o autocarro. E porque naquela altura eu me queria tornar uma classicista, gostava de dizer que foi algo como Platão ou Homero, mas isso foi mais tarde. Uma helenista não era o que eu queria ser naquela altura. Provavelmente algum livro chato, sobre história do império romano. E no entanto há qualquer coisa como um golpe de felicidade, como um fruto aberto ao meio, como a certa evocação do odor de romãs no princípio do Outono, sobre uma mesa de madeira, quando Lisboa entardece sobre as suas mais amplas artérias. O ruído do tráfego e os faróis apontados à estátua dos Heróis da Guerra Peninsular e o livro na mão, atravessando a estrada, correndo para o outro lado daquele dédalo de semáforos. Qual foi o último livro que comprei? Uma tradução de Safo, apressadamente, numa livraria em Bloomsbury, no bolso do casaco depois, numa caminhada em direcção a Holborn, Oxford Street, Marble Arch, no autocarro de volta a Oxford abrindo o livro. Dando por mim, essa primeira cena da adolescência repete-se nesta. Coexiste com cenas de outros livros, versos de outros poetas: a cena da madalena em Proust, aquele texto de Borges em que um homem é esfaqueado para que se repetisse a cena da morte de César, sobretudo essa epifania amarga, aquela frase de Pavese, tantas vezes repetida, só é nosso aquilo que perdermos, o que existe intimamente na memória e que pode voltar de repente, inesperadamente, como uma conclusão.

Londres, Regent Street

Londres, Regent Street

Estas são as coisas amadas, foi o que o poeta disse, previsivelmente. Estão unidas porque uma certa coerência as enlaça. Mas não é uma coerência da memória, é um impulso. Queria crer, pretensiosamente, que a paixão de um leitor une estes dois momentos, queria dizer que o que acontece em Londres pode resgatar a cidade deixada para trás, que me divertem as intermitências da nostalgia, mas é adulto este cansaço e sério, e a noite das quatro da tarde em Londres faria dessa afirmação uma espécie de hybris. Antes da morte que um português merece (por saudade), tento pensar noutros lugares, ou de como eles se podem ultrapassar a eles próprios, salvarem-nos um pouco da contingência, ou de como todos os lugares são efémeros, que só uma coragem de ferro e algum amor pela inesperada estranheza do mundo nos mantém de pé no anonimato rotineiro de qualquer cidade. Que mesmo onde as palavras que enchem os livros confinam com o que não saberíamos dizer, mesmo no mais estranho dos lugares, algo de reconhecível pode ser resgatado e isso pode ocorrer-nos como um começo. Por exemplo, no bolso do casaco, sei que há algures um fragmento em que se pode ler:

κατθάνην δ’ ἴμερός τις [ἔχει με καὶ
λωτίνοις δροσόεντας [ὄ-
χ[θ]οις ἴδην Ἀχερ[

but a kind of yearning has hold of me – to die
and look upon the dewy lotus banks
of Acheron

(Tradução de Anne Carson em If not Winter: Fragments of Sappho, Virago, Londres, 2003)

Livros indirectos

Ulysses James Joyce.png

Por diferentes razões, há estantes cheias de livros silenciosos, ou melhor, de livros silenciados. Os que merecem o olvido são textos que se esgotaram, ou porque revelaram tudo, monótona e simploriamente, ou porque não conquistaram o sopro vital dos leitores (num retorno de generosidade).

Contra o fracasso, alguns defendem a sujeição do livro a uma qualquer utilidade, e o mais útil que se possa imaginar é dizer ao leitor aquilo que ele quer ouvir. Acredito, pelo contrário, que um livro deve ser excêntrico, abrir para o desconhecido, fabricar um pouco do porvir, sacudir o leitor, alargar o mundo. Resistir às interpretações lineares, armando-se de múltiplas centralidades, estar sempre um pouco à deriva, ser, como queria Jacques Derrida, indecidível. Ou ainda, conter linhas impuras e opacas que impeçam comentários claros e definitivos, dissolvendo a lógica, mais económica do que estética, do bestseller. Não pretendo elogiar a obscuridade pela obscuridade, entendam-me bem; é evidente que um livro tem de revelar algumas das suas intenções, ter força sugestiva e elucidativa, conduzir à emulação... Trata-se, antes, de denunciar a transparência a qualquer custo, a simplificação estéril, os sound bites que definem de uma vez por todas um qualquer sentido (era bem isto que a novilíngua pretendia). E por isso todas as obras devem ser indirectas, ter uma presença densa e polifónica.

Um livro sem uma certa indecidibilidade, um inteligente claro-obscuro, um livro directo transforma-se rapidamente em matéria inerte, e passará pelos escaparates como cão por vinha vindimada, como um meteoro pelo olhar de uma claque de futebol. Se deixar que se esgotem os seus significados, se não forçar uma e outra vez o jogo da reflexividade, onde o exterior (actualidade) se confronte com o interior (subjectividade), se sucumbir à nitidez e à utilidade terá uma esperança de vida, se chegar realmente a viver, tão curta quanto merece (a longevidade continua a ser o grande critério artístico). Deixem-me, para melhor me compreenderem (mas não totalmente), dar exemplos de alguns autores que me incitam a lê-los infinitamente, desses que não se deixam apanhar à primeira, nem à segunda, nem.. Platão, Dante, Shakespeare, Dostoiévski, Nietzsche, Kafka, Joyce, Celan. Autores que vêm até nós com rodeios, autores enigmáticos, enganadores, hilariantes, cheios de circunvoluções, mas que ao mesmo tempo nos permitem descobrir novas parcelas do mundo, ou de mundos, que aumentam a vida porque trazem sempre um derradeiro arroubo de lucidez enlouquecida.