Quatro poemas de Anelise Freitas

Canto XXVI (ou texto da aliteração velar-oclusiva I)

quando o gato das cordas gastas
pede no cantinho gemido
do ouvido um gesto me distrai
pegaria o resto e o registro
e rasgaria todas as fotos
gritando tus bolas batendo
guá! a onomatopeia ve-
lar e oclusiva enquanto eu pango 

 

Canto XXVII (ou texto da aliteração velar-oclusiva II)

sente enquanto cresce e não tem fim nem pingo
nem ponto nem garantia de que transformar um poema
em uma coisa capenga será extraordinária não garantimos
nada pra hoje gangue gago gota galinha e o paralelismo
de um poema é quando as sílabas apagadas ganham equilíbrio
aliteração e assonância = rima
ainda pingamos um pagode aqui
e outro em pindamoguangaba ou
pasárgada mas é preciso que rime, rimemos
riremos (muda o verso)

 

Canto XXVIII (ou texto da aliteração velar-oclusiva III)

pego um pequeno adendo pra dizer.
diga. digamos que: eu tenha nutrido amor por poeta
e amar é muito mais que corpo, é presença e gosto ainda
de você
enquanto chora,
talvez entre aquele cigarro e o agora
o mundo tenha acabado
e eu nem vi.

 

Canto XXIX (ou texto da aliteração velar-oclusiva IV)

e se eu te dissesse que amo você
que amo a maneira como aquele corpo
se move quando encontra música
que amo o rosto da menina portuguesa enquanto
sorri ou acende um cigarro
(que eu sei, eu estive lá,
eu precisei sair pra encontrar aqueles lábios)
que amo observar as costas
nuas da menina que pratica meditação
que eu amo aquela que dança sobre
a mesa ou veste maiô tatuagem
que eu amo a garota que transforma e
gerencia as coisas e tudo garante engaveta-se nela
que amo também a tua forma
irônica de encarar a vida não
porque eu admire ou me complete, mas
porque é uma forma criativa de ver a poesia
na sujeira dos sapatos que te acompanham
e os críticos guturalmente preveem crise no
pós-guerra


Portugal incandescente

Se falássemos de literatura ou de filosofia, das que se aventuram para lá das grelhas lógicas ou das concordâncias sintácticas, da submissa correcção ortográfica ou da citação exacta, o título desta crónica indicaria um passeio por belos trilhos de ideias e palavras, talvez nos levasse até lugares sublimes, reais ou imaginários, fazendo eclodir o que melhor sabemos ser e fazer, enquanto humanos, sempre primeiro, e portugueses. Infelizmente isto conduz-nos antes para sítios cinzentos, muito cinzentos (uma cor mal-amada porque muita linguagem continua no reino metafórico).

Portugal está literalmente a arder, ou melhor, arde neste país (que nunca é “nosso”, é bom dizê-lo) grande parte daquilo que ainda podia arder: o Trás-os-Montes e Minho mais arborizados, o Douro Litoral e as Beiras Litoral e Alta. Isto deve-se, como referiu Manuel Carvalho no Jornal Público de 14/8/2016, a uma execrável ineficiência política e a preferir-se o lucro fácil e rápido, os arraiais e a Providência; em vez de planear, de prevenir sistematicamente, de realizar um trabalho de base, invisível mas estruturante. Manuel Carvalho acaba, porém, num tom ligeiramente optimista porque remete para o Estado, esse velho mastodonte, e o valor económico da floresta o poder de fazer renascer das cinzas mais uma fénix (ou tirar um coelho da cartola).

Eu, com filtros cada vez mais pessimistas, tenho menos esperança. Parece-me que preferimos o alcatrão e o betão às árvores e arbustos, os estádios de futebol aos jardins, a cidade ao campo. Mesmo a literatura, depois de Miguel Torga e um pouco de Eça e Garrett, abandonou a natureza; ninguém louva ou se interroga sobre a beleza de certas paisagens, a pintura prefere as pessoas, a sociedade ou os conceitos, o cinema as viagens interiores ou a crítica social, a fotografia rostos, pores-do-sol e linhas de horizonte abstractas. Só podemos amar aquilo que compreendemos, diz Maria Filomena Molder, e como compreendemos muito pouco o que ultrapassa o nosso pequeno território biográfico, feito de entretenimento, trabalho, galhofa e queimaduras solares, como nos alienamos ainda mais na ideia de que ser humano é ser tudo, como o contemplador se desqualifica na grelha da seriedade se olhar longamente para a natureza, e depois mergulhar nela para sentir vibrações da alteridade, como não tivemos, nem teremos, um Rousseau, um Goethe, um Nietzsche, repórteres como Albrecht Dürer, Claude Lorrain, Nicolas Poussin, William Turner, Jean-Baptiste Corot, Gustave Courbet, Monet, Renoir, Pissaro, Seurat, Caspar David Friedrich, Cézanne..., homens de suprema inteligência e de amor incondicional às forças vitais da flora, aos arrepios que a montanha provoca num caminhante solitário que se elevou acima da sua condição de existente, como não temos nenhum partido ecologista sério, como erigimos em modelo de vida um apartamento na cidade (melhor, ainda assim, do que as casaronas da periferia, colonizando o dobro do solo que seria necessário), o guarda-sol na praia, a mariscada e o gin, os festivais de verão e as touradas, os centros comerciais e os futebóis... Como gostamos de viajar velozmente através do Marão (o novo túnel evita os “perigos da montanha”) ou do Alvão, parando apenas nas áreas de serviço para energizar as máquinas. Preferimos isto tudo a uma consciência e vivência alargada, acolhendo, e recolhendo-nos, no não-humano, numa encosta de urzes ou giestas ou num ribeiro nascente, num montado de sobreiros ou numa mata de carvalhos, num souto de castanheiros ou num bosque multiforme, na fauna selvagem (mais uma metáfora) ou nas estrelas que pontuam, há milhões de anos, os céus e que agora escondemos com os holofotes da iluminação pública (para “vermos de noite como de dia”, isto é, para não vermos o que a noite é capaz também de mostrar, fonte de inspiração dos grandes mestres da palavra, por exemplo), no lado abrigado de uma fraga que pontua um cume montanhoso. Como preferimos isto tudo, ficamo-nos pela identidade reduzida de um eu cheio de autocontentamento, uma minúscula biografia individual sem exterior, reconhecendo mais facilmente o lateral direito suplente do Benfica do que as espécies arbóreas autóctones representativas da nossa flora. 

Mata naturalmente descuidada numa praia da Costa da Caparica, onde estacionar custa €3,5

Mata naturalmente descuidada numa praia da Costa da Caparica, onde estacionar custa €3,5

Neste drama (os bombeiros e os militares gostam da expressão “teatro de operações”) pícaro ainda há lugar para a indignação, não a sensata, como deve ser sempre, mas expelida aos berros de “ninguém faz nada por isto!” Parecem ser esses “ninguéns” que destroem o país, não eu ou tu, ele ou nós, mas esses gajos que podiam prevenir ou apagar rapidamente os incêndios para que este fumo não incomode, já basta o do churrasco ou da sardinhada.

P.S. 1 Claro que há uma hierarquia na responsabilidade: pesa mais a quem permitiu a pinheirização, primeiro, e a eucaliptização, depois, do centro e norte de Portugal; a quem comprou meios de combate aos incêndios obsoletos; a quem preferiu, sem critério, o combate à prevenção; a quem subsidiou e subsidia cantores pimbas para as festarolas em vez de apoiar associações ambientalistas que intervêm no terreno (e há bastantes, sem reconhecimento ou suporte); a quem gastou rios de dinheiro em estádios ou auto-estradas que estão às moscas; a todos os políticos que tiveram o poder de fazer alguma coisa e não fizeram nada, por indolência, calculismo eleitoralista, convicções destorcidas, análises estúpidas. Não quero, pois, reproduzir a amálgama de “todos somos culpados”, mas também não devo alargar muito o campo da inocência.

P.S. 2 A obra de arte que abre este artigo é de uma pintora, Isa Lotte, que reúne actualmente nos seus trabalhos duas das suas preferências: árvores e fogo. Em simbiose estética. Passar esta simbiose para a vida é a minha utopia. Não escolhi, pois, o quadro por cinismo.

Eu falo para aqueles que correm de seus corações numa tarde de sol

Numa esquina você espera o ônibus
bem na frente do ponto de ônibus
bem na frente de um terreno
um terreno do tamanho da sua mão fechada
mas o terreno é um campo aberto
bem aberto, bem mais que seus dentes
bem mais que a justificação da caminhada
talvez até mais impenetrável que suas unhas

mas seria imponderável calcular um momento ou o todo
ao redor. seria pesado, do tamanho de um olhar que a gente
nunca quer ter.

eu falo para aqueles que correm de seus corações numa tarde de sol
e levam no bolso o passe do ônibus com todos os créditos
eu falo para aqueles que correm descalços pelo asfalto das ruas desossadas
e desatentos não tropeçam nos buracos

eu esfolo os olhos numa tentativa de fala
mas nada
nada
nada
parece alcançar a pequenez necessária
que se deve ter para que escutem a pele

eu falo para aqueles que subiram em suas cabeças e viram de lá
que o mergulho é algo que inunda
e corro atordoado por tantos muros
atento a tantas cercas
e falo para aqueles que ainda correm
falo correndo para aqueles que ainda estão

eu levo no bolso um peito aberto
um rebento
um sopro
uma barragem estourada

e agora te vejo ai
e te aviso:
teu ônibus vem,
mas demora. Os teus pés não precisam da espera, porque são asas.

Entre mim e o mundo

Tu existes. Tu Importas. Tu tens valor. Tens todo o direito de usar um gorro, de ouvir música tão alta quanto quiseres. Tens todo o direito de seres tu. E ninguém deverá impedir-te de seres tu. Tens de ser tu. E nunca podes ter medo de seres tu.

Visto o vídeo e lida a citação, peguem nos auriculares e carreguem no play.

Esta lista será a vossa companhia ideal para a leitura do livro e, caso decidam arriscar, a leitura deste pequeno apontamento sobre uma das grandes obras literárias dos anos mais recentes.

 

Imaginem nascer e crescer num país onde sabiam à partida, pelo vosso mais básico instinto e por toda a cultura que vos rodeava, que o tom de pele seria decisivo para a vossa sobrevivência ou a vossa morte. Foi nessa realidade que Ta-Nahisi Coates cresceu e tomou nas mãos o seu destino, recusando render-se às evidências que o apontavam como apenas mais um na estatística.

Escritor, jornalista, professor, escreveu Entre Mim e o Mundo (Ítaca, 2016) para tentar explicar ao filho adolescente o que significa ser negro nos EUA de hoje. A resposta não é fácil, feliz ou maniqueísta, separando o Mal e o Bem com a facilidade irresponsável do cinema americano que vende bilhetes.

Ser negro nos EUA é um perigo de morte e ele sentiu-o por diversas ocasiões, inclusivé na presença do filho.

Digo-te agora que a questão de saber como se deve viver dentro de um corpo negro (...) é a questão da minha vida, e descobri que a busca incitada por esta questão em última instância se responde a si mesma.
Quando aceitei tanto o caos da história como o facto do meu fim total, vi-me livre para finalmente considerar como querida viver – em particular como viver livremente neste corpo negro. É uma questão profunda, pois a América vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a América é obra dos homens.” “A questão não tem resposta, o que não a torna fútil. A maior recompensa desta interrogação constante, do confronto com a brutalidade do meu país, consiste em ter-me libertado de fantasmas e em ter-me fortalecido contra o terror puro da perda do corpo.

Empatia. O ingrediente secreto das vidas e das literaturas que contam. Sobrevalorizada ou essencial à sobrevivência? Será ainda relevante na sociedade de hoje, sustentada por uma rede de relações artificialmente mediadas? E perante a sua ausência, valerá a pena sustentar as mentiras tantas vezes ditas, até que se tornem verdade? Valerá a pena continuar a lutar, pacifica e resilientemente, esperando que cesse a injustiça e o ataque ao que de mais fundamental existe na condição humana?

A resposta cabal de Ta-Nahisi Coates é N Ã O.

Natural da Baltimore escalpelizada na seminal série The Wire, o escritor serve-se da sua obra, súmula de registo biográfico e diarístico, a espaços jornalístico e intimista, para detalhar a origem desta dissidência face ao discurso conciliador, de resistência pacífica, preconizado por Martin Luther King, e a preferência pelo contemporâneo e iconoclasta Malcolm X.

A sua argumentação tem por base a sua existência, no que acaba por se traduzir num inortodoxo bildungsroman.

Seguindo a herança familiar que lhe foi inculcada por pais e avós, a descoberta e fortalecimento das suas bases identitárias e mundividência é feita através do questionamento constante.

Desde cedo, percebe que a formulação das perguntas e o caminho para o seu esclarecimento são infinitamente mais importantes e formativas do que as respostas. A sua evolução e dialéctica com o Mundo são sempre precedidas ou complementadas por este artifício, com as perguntas a crescerem em abrangência e profundidade, em paralelo com o seu auto e heteroconhecimento.

Parecia-me agora essencial interrogar incessantemente as histórias que as escolas nos contavam. (...) Levei estas perguntas ao meu pai, que quase sempre se recusava a dar uma resposta e em vez disso me sugeria mais livros. A minha mãe e o meu pai estavam sempre a afastar-nos de respostas em segunda mão – mesmo daquelas em que eles próprios acreditavam. Não sei se alguma vez encontrei respostas minhas que fossem satisfatórias. Mas, de cada vez que as formulo, a pergunta torna-se mais refinada.

Com uma infância e juventude presa entre as ruas e a escola, nunca confiou no formato institucional da educação que lhe era disponibilizada, nem quando chegou ao ensino superior na Universidade de Howard (a sua amada Meca) onde, apesar de ter encontrado uma casa, escapava às aulas para se perder na biblioteca e estudar aquilo que mais lhe interessava.

Comecei a ver as ruas e as escolas como armas do mesmo monstro. Umas estavam investidas com o poder oficial do Estado, ao passo que as outras tinham a sua sanção implícita. Mas as armas de umas e de outras eram o medo e a violência. Falha nas ruas e os gangues apanhar-te-ão quando deres um passo em falso e reclamarão o teu corpo. Falha nas escolas e serás suspenso e enviado de volta para essas mesmas ruas, onde o teu corpo será reclamado

A natureza profundamente pessimista (realista, dirão alguns), contenciosa e insatisfeita do seu discurso narrativo, paradoxalmente transforma “Entre Mim e o Mundo” numa obra de improvável cariz filosófico, no sentido mais clássico do conceito. A maiêutica que Sócrates cunhou e Platão eternizou na palavra escrita, surgem aqui como fundamentais.

A digressão dialógica e argumentativa em forma de questionamento, sem dar a resposta cabal ao problema inicialmente formulado, supera-o e por vezes subverte-o, convertendo-o em mero pretexto para debater o que de essencial oculta a sua particularidade.

Embora “Entre Mim e o Mundo” seja uma longa carta ao seu amado filho, poderia facilmente transformar-se num diálogo, sem que o sentido da obra se perdesse.

O seu eixo central é a identidade.

Mais de seis décadas depois de Ralph Ellison (com o fantástico Invisible Man) ter desbravado o caminho para que a negritude nos EUA fosse problematizada com a merecida elevação, Ta-Nehisi Coates torna todo este percurso mais pessoal e pungente, perante o retrocesso a que os direitos dos negros americanos, tão arduamente conquistados desde os anos 60 do século passado, têm sofrido nos últimos anos.

Com o nascimento do seu filho Samori, momento em que a vida deixou de ser só “sua”, a urgência e o inevitável temor pelo perecimento do seu corpo e dos seus amados torna-se ainda mais premente. Por toda a obra, relembra-nos que todo o discurso é vão perante a imponderabilidade do momento ou local errado, do gesto irreflectido, da palavra descuidada.

Com o leitor estabelece-se uma proximidade cúmplice, como se assistissemos, por um vidro baço que nos oculta, à história de Ta-Nehisi e, por intermédio da sua escrita, vislumbrassemos desassombradamente o que significa ser negro nos EUA de hoje.

Contudo, o principal destinatário (e simultaneamente cenário e objecto de análise) é a federação dos EUA, com o seu tão contraditório e eternamente adiado “Sonho” excepcionalista da “city upon a hill”, que propositadamente exclui os negros e os expõe ao perigo constante, apesar de deles se ter servido como combustível para o seu próprio progresso.

Toda a minha vida assisti a esse sonho. É um sonho de casas perfeitas e relvados prazenteiros. (...) E por muito tempo quis escapar para dentro do Sonho, (...) Mas essa possibilidade nunca existiu, por que o Sonho assenta nas nossas costas (...) é feito com os nossos corpos.
Pouquíssimos americanos proclamarão directamente que os negros devem ser entregues às ruas. Mas um grande número de americanos fará tudo ao seu alcance para preservar o Sonho. Ninguém proclamará directamente que as escoals foram concebidas para santificar o fracasso e a destruição. Mas um grande número de educadores falou de «responsabilidade pessoal» num país criado e sustentado por uma irresponsabilidade criminosa. O porpósito desta linguagem de «intenção» e «responsabilidade pessoal» é o de garantir uma vasta exoneração.
No início da Guerra Civil, os nossos corpos roubados valiam quatro mil milhões de dólares, mais do que toda a indústria americana, todas as ferrovias, oficinas e fábricas americanas combinadas, e a principal mercadoria que os nossos corpos roubados produziam, o algodão, era a principalexportação da América.(...)É este o motivo da grande guerra. Não é segredo.

Sobre cada trecho pesa o temor, como se todas as páginas fossem irrelevantes perante uma força que cada negro norte-americano reconhece como extrínseca à sua vontade e intrínseca à sua condição e, como tal, irremediável e inamovível, embora não necessariamente indestrutível ou irreformável.

O tom do discurso é duro e intrangisente, mas sempre a coerente e realista, escapando aos estereótipos linguísticos e sociológicos.

Concomitantemente ao seu próprio desenvolvimento enquanto homem e cidadão, assistimos à maturação da sua mente, aos desafios colocados ao seu auto-conhecimento.

"How long?Not long, because the arc of the moral universe is long, but it bends toward justice."Assim discursava MLK, em Montgomery, Alabama, depois de terminada a marcha desde Selma a 25 de MArço de 1965, que teve como consequência a extensão do direito de voto aos negros nesse mesmo ano.[i]

Mas o medo, décadas depois, mantém-se intenso, entorpecedor e constante, em casa e fora dela. A música e a moda, presentes em qualquer esquina de Baltimore, “a sua armadura contra o mundo”, eram um refúgio, reclamando intensamente essa identidade, corpo e mente, para largos milhares de almas que se viam esbulhados desses e de outros traços essenciais.

A Morte inescapável,eternamente presente e passada, surge nos lugares vazios à mesa ou nos retratos recentes cujos gestos e sorrisos se dissolvem em espectros.

“Ou lhe bato eu ou lhe bate a polícia”, dizia o pai. A violência era o baptismo para o Mundo no seio familiar, como um rito de passagem e preparação para a possibilidade iminente da perda do corpo.

Na leitura, Ta-Nehisi encontra o refúgio para este cerco em que se tornara a sua vida.

Lia vorazmente porque os livros eram a luz que espreitava pelas frinchas da porta, e para lá dessa porta talvez existisse um outro mundo, um mundo que estivesse para lá do medo paralisante que sustenta o Sonho.

Encontra em Malcolm X o pragamatismo ausente de todos os escritos que lhe haviam passado pelas mãos. Pelo seu exemplo de honestidade e liberdade, no discurso e na conduta, sentiu ser possivel escapar à prisão de uma herança quase inexpugnável.

A “Meca – ponto de encontro da diáspora negra”, a Universidade de Howard, fez o resto do trabalho. Com o seu poder inclusivo, um corpo discente e docente de eleição e um campus borbulhante de novidade e diversidade, Coates “via agora que o mundo era mais do que um simples negativo das pessoas que acreditam serem brancas. (...) no nosso corpo político segregado, éramos cosmopolitas. A diáspora negra não era apenas o nosso mundo, mas, de tantas maneiras diferentes, o próprio mundo ocidental.”

A negritude ganha nova dignidade nestes anos de estudo profundo e revelações impactantes.

Descobre a poesia como depuração dos pensamentos até que “sobrassem apenas as verdades frias, aceradas da vida”, a discórdia como verdadeiro poder e forma última de auto-análise, o Amor e a genuína tolerância, como derradeira libertação e redenção.

Com a paternidade e o casamento, depois de deixar Howard sem concluír a licenciatura, a transformação é irreversível. Ao filho, deixa as passagens mais belas do livro.

A verdade é que te devo tudo o que tenho. Antes de ti tinha as minhas perguntas, mas em jogo estava apenas a minha pele (...) Mas um facto simples centrou-me e domesticou-me: se eu caísse agora não cairia sozinho.” “Havia um antes e um depois de ti, e neste depois tu eras o Deus que nunca tive.

Anos depois, descobre por acaso a morte de um amigo da faculdade – Prince Carmen Jones – perseguido por vários estados por um policia à paisana, para depois ser assassinado, com tirosde caçadeira à queima-roupa, a curta distância da casa da namorada que pretendia visitar, supostamente por semelhanças com um suspeito.

A próposito desta morte sem sentido de um pai, amado e respeitado por pares, amigos e familiares, Ta-Nehisi discorre sobre o sistema policial e judicial viciado e corrompido que permite tamanhas arbitrariedades. Insurge-se, comove-se e, como sempre, verte na escrita e no trabalho jornalístico a raiva que o invade.

Prince não fora assassinado por um agente isolado, mas sim assassinado pelo seu país e por todos os medos que o marcaram desde o seu nascimento.” “ A verdade é que a polícia reflete a América em toda a sua vontade e medo, e o que quer que pensemos acerca da política de justiça criminal deste país, não se pode dizer que ela tenha sido imposta por uma minoria repressiva. Os abusos (...) são o produto da vontade democrática.

Com este episódio e a descoberta de Paris, o americano abraça a tranquilidade do anonimato na capital francesa e é para lá que se muda, para uma nova vida familiar e pacata.

O livro termina com um fugaz “momento de alegria”, uma festa em que Ta-Nehisi regressa a Howard e se deixa dissolver numa efusão de corpos e ritmos, encontrando uma ponte para um património comum, independentemente da côr, género, orientação sexual ou política.

A ameaça ao corpo negro é real e constante, profusamente documentada e comprovada. Contra ela, não há escalada, aviso ou prevenção possivel.

Para manter a sanidade, o equilibrio e, em última instância, a vida, a solução possível de Ta-Nehisi foi a escrita, a proximidade com as pessoas por via do jornalismo e o questionamento como caminho e terapêutica.

A sua religião pessoal, que prega a quem o quiser escutar, é a recusa da perpetuidade da retórica excepcionalista enraízada no sistema politico norte-americano, e do pacifismo desde sempre associado aos movimentos dos direitos civis de MLK e dos seus discípulos: vazio, elíptico, em que a condição do negro é de paciente espera por dias melhores e o arco da História se verga para lugar nenhum.

Não vai haver um melhor amanhã e já não basta dar um murro na mesa. É necessário derrubá-la e reconstrui-la, para qur todos tenham lugares equiparados na grande família humana.

O caminho implica inteligência e tenacidade, conhecimento profundo da condição do negro contemporâneo, vigilância (adaptando o sentido bíblico do “vigiai” de Mateus, aqui para escapar à tentação de seguir os impulsos mais primários da violência e da vingança) e intervenção social e cívica.

Nesta última vertente, como em tantas outras, o livro e o seu autor têm sido exemplares.

Com a vitória na categoria de não-ficção dos National Book Awards de 2015 e a concessão da MacCarthur Grant (uma bolsa de 625.000 dólares, distribuida por 5 anos, sem qualquer contra partida, atribuida a personalidades que se destacam no panorama cultural desse ano, também chamada “genious grant” ou “bolsa para génios”), Ta-Nehisi contribuiu deveras para uma já adiada reapreciação da literatura negra.

Os candidatos e vencedores que se seguiram nos prémios literários anglo-saxónicos mais destacados, têm incluído sempre um ou mais escritores negros, contribuindo assim para uma maior representatividade nos palmarés e, consequentemente, nas vendas e na projecção mundial das respectivas obras. Os exemplos são já numerosos, mas destaca-se a vitória do inovador “A Brief History of Seven Kilings” do jamaicano Marlon James, ainda indisponível em português, no Booker Prize de 2015.

Entretanto, Ta-Nehisi Coates foi convidado a ressuscistar uma personagem esquecida da Marvel, um super-herói negro com o sugestivo nome de Black Panther, publicada com grande sucesso de crítica e de vendas, batendo recordes de décadas. 

A frase é batida, mas o caminho faz-se mesmo caminhando. Ta-Nehisi deu um passo de gigante com a sua obra prima e a nós, comuns mortais, resta-nos lê-la e partilhá-la, sucumbindo ao poder singular que a literatura desta estirpe possui de nos tornar parte de uma dissonância estranhamente harmoniosa de vozes, projectadas para um futuro desconhecido, que ansiamos livre e tolerante.

[i] A citação completa é de Theodore Parker (1810–1860), pastor reformista branco do Massachusetts e rezava assim: “I do not pretend to understand the moral universe; the arc is a long one, my eye reaches but little ways; I cannot calculate the curve and complete the figure by the experience of sight; I can divine it by conscience. And from what I see I am sure it bends towards justice."

 

Agosto

“Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.”

Miguel Torga

 

Quase que chega Agosto, o mês da fome farta e da loucura
E sei de cor as curvas que se desenrolam Marão acima
E o pé que falha no rio passado da infância,
Só a sinfonia dos insectos à noite, continua indecifrável
Como as companhias cintilantes que da distância impossível
Nos visitam, do horizonte virão suspiros e pestilência,
Um Sol velado e uma Lua vermelha e mais um pedaço de pulmão
Que se calcina, nas ruas estreitas um cão novo que nos ladra
E um olá antigo que será um adeus e nem se sabe,
Os figos serão as estrelas da canícula e as folhas da figueira
A companhia fiel e silenciosa que guarda nas nervuras
Todos os segredos que o corpo repousado lhe conta em silêncio,
Quase que chega Agosto e todos os regressos tão breves
Que mal se chega e logo alguém pergunta quando é a partida.

27.07.2016

Turku