Anne Carson

Anne Carson

O percurso de Anne Carson enquanto escritora é bastante difícil de classificar. As designações mais óbvias poderiam descrevê-la como poeta, tradutora e ensaísta mas estas três práticas contagiam-se umas às outras mais ou menos constantemente. Por exemplo, em 2009, Anne Carson publicou uma tradução da Oresteia. A Oresteia, assim explicará qualquer estudante do primeiro ano de clássicas, é uma trilogia composta de três peças de Ésquilo (Agamémnon, Coéforas, Euménides). O Agamémnon narra a história do regresso do Rei Agamémnon de Tróia e da morte deste às mãos da sua mulher, Clitemnestra, depois de este ter morto a filha de ambos, Ifigénia, para propiciar os deuses e poder partir para Tróia. Coéforas narra o dilema e a decisão do filho de ambos, Orestes, de matar a mãe para expiar o homicídio do pai. Orestes é instigado a tomar esta decisão pela irmã, Electra. A última peça é um marco na história do teatro na Europa e na história da filosofia ocidental sobre a justiça, talvez ainda mais do que todas as outras. É sobre como Orestes é perseguido pelas Fúrias, divindades tresloucadas que o enlouquecem por causa do crime que ele cometeu e de como, em Atenas, ele é finalmente julgado segundo uma nova forma de justiça, no tribunal do Areópago, o que põe fim a um ciclo de violência ancestral que, de outra forma, se perpetuaria infinitamente. Tudo isto estaria certo, mas a peça de Anne Carson não é nada disto. Anne Carson desconstrói a Oresteia de Ésquilo, agrupando três peças que não estas exactamente: passamos do Agamémnon de Ésquilo para a Electra de Sófocles e daí para Orestes de Eurípides, cujo final opõe ao peso da justiça esquiliana (e à narração vagamente propagandística do mito fundador de um respeitável tribunal ateniense) uma acção tragicómica, preocupada com a mesquinhez humana e com a vingança, com muito humor negro e melodrama à mistura, numa das representações mais negativas de Helena de Tróia que a tradição clássica nos legou. A peça termina com o casamento de Orestes com Hermíone, filha de Helena. É só depois de casado com a prima que Orestes é enviado para Atenas para ser julgado.

Há nos clássicos uma intensidade e uma violência que de várias formas são profundamente próximas do estilo de Anne Carson. Em Grief Lessons, outro volume de traduções de tragédias gregas, desta vez dedicado à tradução de quatro tragédias de Eurípides, Anne Carson escreve a propósito de Eurípides:

 

Who was Euripides? The best short answer I’ve found to this question is in an essay by B.M.W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) said of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind from doing so.” Knox’s essay is called “Euripides: The poet as Prophet.”

 

E continua:

 

There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point. It breaks experiences open and they waste themselves, run through your fingers. Phrases don’t catch, theories don’t hold them, they have no use. It is a theatre of sacrifice in the true sense. Violence occurs; through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time; that’s all it is.

 

“There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point...” e “through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time…” Há qualquer coisa nesta frase que podia servir para descrever a inteligência de Anne Carson e a experiência de a ler. Pensamos, por exemplo, nas suas traduções dos fragmentos de Safo, a mais importante das poetas líricas gregas, intitulada If Not Winter onde, com um cuidado que relembra um pouco o cuidado mítico dos tradutores do Pentateuco em Alexandria, Carson traduz todos os fragmentos de Safo, enfatizando assim a nossa relação com a perda desses textos e expondo a paixão da nossa curiosidade pelo que é fragmentário, enquanto ao mesmo tempo somos envolvidos nas paixões fragmentárias de Safo. Este “some kind of learning that is always at the boiling point,” por outro lado, assoma no seu primeiro livro de ensaios, Eros the Bittersweet, o seu estudo das representações da fragmentação das emoções na literatura erótica da Grécia antiga.

Há depois livros que são alicerçados num dos traços mais vincados do estilo de Anne Carson, as ligações inusitadas, extremamente improváveis, que definem o seu pensamento crítico. Anne Carson é provavelmente a grande poeta comparatista do nosso tempo, se bem que esta etiqueta não descreve exactamente o seu método. Mas, The Economy of the Unlost, por exemplo, é um longo ensaio sobre a relação entre outro poeta lírico grego, Simónides de Ceos, o primeiro poeta a colocar um preço a um poema e a vendê-lo por dinheiro e não por outra coisa qualquer, e o poeta alemão Paul Celan, que, tão isolado no seu contexto como Simónides, teve de escrever poemas sobre coisas às quais é impossível colocar um preço. Penso que esta ideia de quanto vale um poema é uma obsessão de poetas de um modo geral, mas uma obsessão muito particular de Anne Carson, que, por vezes, nos seus livros, encontra expressão indirecta noutros contextos. O que vale um poema em face do suicídio de um irmão é uma das perguntas que pode parecer estruturar Nox, o livro que ela escreveu após a morte do irmão e sob a influência de um poema do poeta romano Catulo, um poema também ele escrito sobre a morte de um irmão, o chamado carmen 101.

Ou, para falar dos livros que a não edições tem traduzido e editado em Portugal, eles às vezes expandem a nossa percepção do que os géneros literários podem fazer para lá de quaisquer designações mais óbvias. Por exemplo, em teoria, Autobiografia do Vermelho, originalmente publicado em 1998, publicado pela primeira vez em Portugal em 2017, em tradução de Ricardo Marques e João Concha, é uma reescrita do mito de Gerião, mas é também algo que nunca antes tinha sido escrito, é um bildungsroman, um romance de formação, que é também a autobiografia de uma metáfora. Gerião é Gerião mas é também a metáfora de uma infância e adolescência de um artista, definidas pelo trauma e pela desadequação, pela auto-descoberta e pela auto-invenção. Gerião, a personagem e a metáfora, apesar do trauma, não se fecha, continua a procurar fora de si qualquer coisa que o traduza, apaixona-se, descobre-se parte de um triângulo amoroso, e regressa para uma sequela, red doc. Anne Carson chama a esta autobiografia um romance em verso.

Autobiografia do Vermelho, não edições, 2017

Alguma relação entre consequência, sequela e crise existe entre os outros dois livros que Anne Carson publicou e que eu traduzi para a não edições, A Beleza do Marido e Vidro, Ironia e Deus. A Beleza do Marido é o mais recente dos dois, foi publicado originalmente em 2001, enquanto Vidro, Ironia e Deus foi publicado pela primeira vez em 1995. A não publicou-os inversamente, A Beleza primeiro, em 2019, e Vidro, Ironia e Deus em 2021. Estas coisas confundem-se na cabeça dos leitores, mas A Beleza do Marido foi um dos primeiros livros de Anne Carson que li, durante um verão parcialmente passado no quarto de uma residência de estudantes que ficava nos arredores de Budapeste. Estava a dividir este quarto com uma jovem académica oriunda de Israel que encheu as minhas noites de um relato épico sobre a complicada linha de contactos a cultivar se queria ver os meus artigos publicados numa determinada revista da especialidade, um discurso cheio de confiança debaixo do qual se escondia a terrível precariedade e a competição muitas vezes amarga que são a condição da vida de jovens investigadores. Partilhava esse quarto e pensava constantemente em voltar a Oxford para desistir da tese de doutoramento que estava quase a acabar de escrever para escrever outra tese, o que na verdade acabou por acontecer. Dentro da minha mochila tinha viajado comigo de Inglaterra esse livro de Anne Carson, The Beauty of the Husband: a fictional essay in 29 tangos e eu costumava pôr um fim abrupto àquelas sessões gratuitas de aconselhamento profissional de alguém que, bem vistas as coisas, estava tão perdida como eu, dizendo que precisava de ir fazer um telefonema e ia lá para baixo, para o campo de basquetebol, ver os jogos e ler A Beleza do Marido. Eu estava nessa altura a vários anos de distância de começar a traduzir Anne Carson e de me cruzar com um famoso poeta norte-americano que tinha sido colega de Anne Carson na NYU e que, quando lhe contei que estava a traduzir este livro de Anne Carson, disse que quem lia o livro ficava com a impressão de que o marido era o único responsável por aquele divórcio. Noutra altura eu teria querido mesmo saber mais, mas não me interessou perguntar. Algures entre 2012, quando eu primeiro li A Beleza, e 2018, quando ouvi este comentário, a minha curiosidade febril acerca da biografia de Anne Carson tinha passado. Não há muito que se possa dizer sobre o grande trauma de um divórcio que seja particularmente original ou edificante quando o tom com que a conversa começa é normativo e aponta para questões de justiça retributiva. Nunca tinha pensado em A Beleza do Marido como um livro óbvio desse ponto de vista. O marido que aparece em A Beleza do Marido é certamente uma figura peculiar e tóxica, caracterizado como é pelas infidelidades recorrentes, pelas mentiras compulsivas e desnecessárias, pela fascinação com os jogos perigosos. Mas há qualquer coisa na natureza da mulher que é atraída por esse comportamento e que permanece inexplicada, o que talvez sugira uma natureza elusiva como a do marido. A ambiguidade do marido e a ambivalência da mulher, por outro lado, têm paralelos com o tipo de inteligência conjugal que se encontra na Odisseia, tornam-nos parte de uma longa tradição de literatura acerca de gente casada. Ao longo desses vinte e nove poemas talvez se reconstrua a linha de atracção, decepção, perda e, finalmente, resgate da beleza que podem sobreviver ao fim de uma relação. Pode-se então dizer que A Beleza do Marido é um livro que é um pouco como algumas das tragédias gregas que Anne Carson gosta de traduzir, é sobre expiação e veneno e sobre o veneno enquanto cura também. Desta forma, o livro evoca o lado inexplicável de certos laços que nos definem e da beleza que se agarra a esses laços, coisas que não se confinam puramente a uma lógica da tristeza – amantes, amigos, fragmentos de conversas, torradas, quartos de hotel, bolos de casamento, bagos de romãs, Tolstoi e Homero.

Vidro, Ironia e Deus, que acaba de ser publicado, é um dos livros mais estranhos de Anne Carson, embora pareça, em teoria, um dos mais convencionais. De todos os que aqui mencionei é aquele que em termos de classificação de género literário parece mais fácil de arrumar: cinco longos poemas e um ensaio. Mas os poemas são ensaísticos. Criam até o efeito estranho de subordinarem a uma dicção que muitas vezes parece convocar o tipo de estranheza que caracteriza a linguagem de um poeta difícil e caro a Anne Carson, Ésquilo, versos decididamente prosaicos, de onde qualquer musicalidade parece estar ausente. Este estilo de poesia ensaística gera cortes e elipses que se enchem de associações inusitadas, é fonte de drama e paródia, instaura muitas vezes o ritmo que se podia dizer que é o de alguém a pensar na própria música silenciosa do pensamento.

A Beleza do Marido, não edições, 2019

Vidro, Ironia e Deus é um livro que começa com a crónica de uma leitura obsessiva de O Monte dos Vendavais de Emily Brontë e que termina com um ensaio sobre o género do som ou, melhor dizendo, um ensaio sobre interpretações misóginas de certas vozes. Entre um texto e outro, muitas outras vozes se ouvem: a da narradora, a da mãe da narradora, a de Anne Brontë, a de Sócrates, a de Heitor, a de Deus, a de Isaías, a de uma mulher romana chamada Anna Xenia a quem morreu um filho. À medida que estas personagens se sucedem questiona-se o lado nocivo de sociedades estruturadas por convenções patriarcais, o que sabemos do passado, como reconhecemos os outros, como é que eles nos conhecem a nós, porque decidimos viver de determinadas maneiras, porque viajamos ou empreendemos longas caminhadas pelo gelo. Sentimos, à medida que lemos, que nos tornamos “…intimate with some characters… in an exorbitant way for a brief time…” Porquê essa exorbitância?, é uma pergunta que Anne Carson, que gosta de analisar primeiras causas aristotelicamente, poderia colocar. Não sei se existe uma resposta exacta a esta pergunta, mas no último parágrafo de Vidro, Ironia e Deus lê-se:

 

Ultimamente comecei a questionar a palavra grega sophrosyne. Interrogo-me sobre este conceito de auto-controlo e se realmente é, como acreditavam os gregos, uma resposta à maior parte das perguntas sobre bondade humana e dilemas de civilidade. Pergunto-me se não haverá outra ideia de ordem humana para lá da repressão, outra noção de virtude humana para lá do auto-controlo, outro tipo de eu humano que não um fundado na dissociação de interior e exterior. Ou, de facto, outra essência humana que não o eu.

 

Anne Carson, Vidro, Ironia e Deus, não edições, Lisboa, 2021, p.162 (tradução minha).

VIdro, Ironia e Deus, não edições, 2019

Dois poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

Herbert List, Depois do Banho, Portofino, 1936

2009


Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos


a Jannis Birsner


Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Pinguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.

 

*

2013


Carta ao pai


Agora que o senhor 
mais assemelha pedaço 
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há de morrer só
porque nem a própria 
saliva poderá engolir 
por si na companhia 
somente desta sonda 
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas 
e se deveras me amaria 
tanto menos soubesse 
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela 
da Globo da Record 
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical 
com a tradição
e se deveras faria 
sobrevir a eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho 
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa 
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre 
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido 
o cérebro em veias 
como riachos insistentes
em correr 
fora das margens
se o senhor 
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa 
de todos os patriarcas
ainda me pergunto
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa 
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem 
e semelhança invertidas
tal espelho 
que refletisse opostos 
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras 
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém gerido
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente 
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai 
eu
mesmo pedaço 
de carne 
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio

Dois leopardos e algumas distracções

Um amigo que é poeta uma vez contou-me a história de como costumava atravessar toda a baixa de Nova Iorque, num tempo anterior aos telemóveis, para ligar a outro amigo nuns telefonemas em que ambos tinham umas conversas alucinantes, entre outras coisas, sobre as pausas de Frank O’Hara para o almoço, de onde saiu Lunch Poems.

A coisa que mais prendeu a minha atenção nesta história é que no fim o meu amigo contou-me que tinha querido escrever um poema sobre aqueles telefonemas desde sempre, mas só o conseguiu fazer bastantes anos depois do amigo ter morrido. Quando lemos esse poema parece que a conversa entre eles está a acontecer naquele momento, mas o que nele fica registado não é tanto o conteúdo de algum diálogo mais memorável quanto o tom e o estilo deles dois a conversar, as frases banais trocadas entre pessoas que sentiam uma pela outra um amor imenso. Há ali ainda qualquer coisa da alegria interminável daquelas conversas e a medida exacta da gratidão do meu amigo por aqueles diálogos alguma vez terem existido no mundo.

Penso que as minhas aspirações a poeta se vão e irão reduzindo cada vez mais a tentar escrever poemas que sejam da ordem deste tipo de conversa. A escritora italiana Antonia Pozzi, que se suicidou bastante cedo, com apenas 26 anos, escreveu numa carta que os poemas são sempre expressões de um desejo frustrado por alguma coisa. Não sei se para mim é bem isso. Parece-me às vezes que os poemas são um pouco mecanismos que na verdade amplificam tudo, o lugar de uma atenção absoluta, o exercício de uma atenção que imita a forma como nos apaixonamos, ou lugares onde se registam os contornos de visões que de outra forma desapareciam sem deixar rasto. Há muito disso, parece-me, no Leopardo e Abstracção, e, também, gente que se perde, que desaparece e ressurge em lugares inesperados, ou estão deslocados, ou onde não é suposto. Os trespasses de um modo geral interessam-me, os acidentes das desadequações e das inconveniências. Os poemas são bons lugares para isso.

Não há, ao contrário do que seria de esperar, muitos leopardos em Leopardo e Abstracção. Na verdade, existem apenas dois: o que aparece na epígrafe de Hilda Hilst, onde se lê que “leopardos e abstracções rondam a casa,” e os homens que são descritos como tendo uma força confiante “como a dos leopardos,” num poema que levou dois anos a ser terminado, “materiais facilmente inflamáveis,” que aparece lá mais para o meio do livro. Os homens que são descritos como leopardos são os que aparecem na Ronda da Noite de Rembrandt, um quadro que está no Rejksmuseum em Amsterdão. Estes homens, arquétipos de uma certa prosperidade burguesa numa cidade protocapitalista do início da época moderna, em retrospectiva, não são bem como os aristocratas que aparecem no mais famoso dos livros que contém a palavra leopardo no título, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. É sabido que o felino que dá título a esse romance não é de facto um leopardo, mas um seu primo distante, o serval, um animal exótico que se parece muito com o leopardo e que na Sicília era por vezes mantido como animal doméstico por aristocratas. O Leopardo de Lampedusa não é tão famoso como a adaptação para cinema que Visconti fez do livro. O príncipe Tancredi sabe que é o último dos leopardos e não sabe muito bem como viver com isso. Há pelo menos um ou dois poemas no Leopardo e Abstracção que são sobre o fim do mundo, ou sobre o fim de certos mundos, mas talvez apenas no sentido em que são salas de espera para as tranformações que trazem consigo outros começos. É, por exemplo, esse o caso dos poemas “ao preço da chuva” e “alguns sons antes da manhã.”

O Leopardo é então uma referência menos obviamente importante para Leopardo e Abstracção do que a epígrafe de Hilda Hilst que acompanha o livro e de onde veio o título, mas tenho-me perguntado se qualquer coisa nos poemas se liga muito indirectamente ao romance de Lampedusa. Isto é porque a primeira pessoa a aceitar publicar O Leopardo foi o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000) na casa editorial Feltrinelli. O romance saiu postumamente, em 1958, um ano depois da morte de Lampedusa, depois de ter sido rejeitado por outras duas grandes casas editoriais italianas, a Einaudi e a Mondadori. Ora, o único poema em Leopardo e Abstracção em que um leopardo aparece passa-se no escritório de uma grande casa editorial, onde as personagens que nele trabalham recebem a tarefa de destruir livros, ou como se diz no jargão técnico, guilhotiná-los. É estranho reparar em retrospectiva que embora a escrita do princípio e do fim desse poema esteja separada por pouco mais de dois anos, o desaparecimento destes livros na primeira parte desse poema liga-se à mutilação, mais famosa, na segunda parte do poema, d’ A Ronda da Noite, que em 1715 foi cortado pelos holandeses para o fazerem transportar para a câmara municipal de Amsterdão. O quadro não cabia na entrada e foi cortado nos quatro lados, o que fez com que duas figuras desaparecessem da composição.

Voltando a O Leopardo de Lampedusa, estudiosos de literatura italiana há muito que se ocupam de comentar a relação entre esse romance e o mais famoso dos romances de Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, outro texto que se tornou famoso por causa de um filme. Bassani aparentemente tinha um desprezo absoluto pela versão cinematográfica do seu livro, realizada por Vittorio de Sica. Ambos os livros são frescos de períodos conturbados da história de Itália, ambos falam de decadência e mudanças sociais, no caso de O Leopardo, a decadência dos aristocratas na Sicília no período do risorgimento, no de O Jardim dos Finzi-Contini, o horror que é imposto à comunidade judaica de Ferrara nos anos em que os fascistas promulgam as leis raciais que decretam a segregação dos judeus italianos. Talvez a grande diferença entre O Leopardo e O Jardim dos Finzi-Contini é que em O Jardim tudo o que muda jamais voltará a ficar na mesma, daí a melancolia definitiva das personagens de Bassani. Há qualquer coisa no meu livro de outra melancolia, a que vem da minha percepção do que é potência e energia desperdiçada (há qualquer coisa disso no poema “A segunda mulher do escritor,” por exemplo).

Na altura em que escrevi os poemas que agora compõem Leopardo e Abstracção eu estava muito obcecada, então, não com Lampedusa mas com Giorgio Bassani. Em 2016 a Penguin começou a publicar novas traduções de O Romance de Ferrara pela mão de um amigo meu, o poeta inglês Jamie McKendrick, e eu comecei a reler os livros nessa tradução. Mas parece não haver traço de Bassani no meu livro, mesmo quando falo de uma rua muito importante para ele em Roma, Via delle Botteghe Oscure, de onde a revista homónima tirou o nome e de onde um outro escritor – o francês Patrick Modiano – retirou o título de um romance seu. Às vezes pergunto-me como é que os escritores se contaminam uns aos outros, como é que as minhas conversas com os meus amigos que são escritores ou tradutores passam para os meus poemas, ou quais são as reconfigurações dos meus diálogos com certos livros e certas ideias no que escrevo. Isto importa-me porque sei que muitos dos poemas vêm daí, tal como sei que por vezes essas ligações são oblíquas e inexplicáveis, e que os poemas também não as tornam mais evidentes, tornam-nas presentes de outras formas ou complicam-nas ou tornam-nas noutra coisa. Isso passa-se no Leopardo, por exemplo, quando uma amiga, a Francisca, me deu uma cidade, Berlim, que aparece no poema “primeiro poema de berlim,” outro amigo ajudou-me a escrever outro poema quando me deu a ouvir as “Leçons des ténèbres” do Couperin, que é a música que dá título ao poema homónimo. Isto talvez também explique porque é que os meus poemas são mais inteligentes do que eu alguma vez serei.

Num dos últimos textos de O Cheiro do Feno, o último volume do Romance de Ferrara, Bassani fala do seu método de escrita e diz que sempre escreveu com grande esforço, às vezes dolorosamente, e muito por acaso, por causa de coisas que lhes foram dadas por amigos, não há nele espaço para grandes inspirações.

Por outro lado, sei que o primeiro e o último poema de Leopardo e Abstracção se lêem um ao outro e isso talvez tenha qualquer coisa do tipo de acidente criativo que vem da inspiração. O primeiro poema passa-se num aeroporto e o último numa cozinha, mas queria pensar que, se não são falhanços completos, ambos são sobre o trânsito dos corpos, sobre a extrema necessidade de vez em quando sermos habitados pelas nossas próprias ultrapassagens, de as reconhecermos com um aceno ao mesmo tempo de espanto e familiaridade, se é que isto faz sentido. São também sobre transfigurações, objectos que significam mais do que aquilo que parecem significar.

Diverte-me pensar que depois de muitos anos passados a queimar as pestanas com a história do império romano, talvez o meu grande contributo para a disciplina tenha sido ter conseguido reduzir alguns dos meus muitos problemas com a figura de Gaio Júlio Cesar, um dos últimos ditadores da república romana, à dimensão de um relógio de cozinha em forma de cabeça de gato que é baptizado com o nome do famoso general e que é o objecto que dá o título ao último poema do livro. Isto talvez seja um daqueles falhanços espetaculares, uma falta de educação até, em sentido literal, que, no entanto, acho mesmo que só pode ser ensaiada num poema. Não sei bem o que é que esta retroversão de um dos mais brutais generais de um regime imperialista, de onde em parte saiu a civilização em que vivemos hoje, diz acerca da relação de homens dotados de poderes despóticos com a suposta domesticidade inofensiva de uma cozinha, da nossa relação de um modo mais geral com o lado convencional da violência e dos papéis que nela representamos, dos modos em que somos partes dela ou a recusamos, ou das formas como a partir da reconfiguração dessa violência no mundo dos poemas se possa procurar pensar outras versões do mundo. Então talvez Gaio Julio Cesar seja sobre uma certa habilidade para amar as coisas apesar da violência do mundo, até da violência, que parece simples e banal, da mera passagem do tempo (os minutos de que tentei falar nesse poema são ao mesmo tempo minutos de alívio e perda). Para concluir, em jeito de spoiler, o meu mais recente relógio de cozinha chama-se Marius Julius Cesariny e é uma joaninha. Não sei o que é que vai sair daí.


Nota: Este texto foi lido na apresentação de Leopardo e Abstracção na Casa da Cultura no Porto, no dia 13 de Novembro de 2021. Eu não preciso de atravessar a baixa de Nova Iorque para ligar à Inês Morão Dias, malhas que o WhatsApp voice messaging tece – o que nos dá a ambas minutos ilimitados para gravar divagações surrealistas entre Oxford e o Porto, e devo confessar que é um pouco irónico ter sido ela a apresentar o meu livro, porque quando o livro dela, o Par de Olhos, saiu na Fresca, era suposto ter sido eu a apresentá-lo, o que nunca aconteceu. Sucede que veio a pandemia, e eu também nunca mais voltei a pensar em apresentar o Leopardo. Tendo viajado até ao Porto por alguns dias em Setembro passado, pensei que talvez fizesse sentido tentar fazer a apresentação. Queria agradecer à Inês ter aceitado o convite, ao Francisco e ao Nuno da Poetria terem incluído o Leopardo na belíssima colecção da Fresca e, finalmente, à reitoria da Universidade Porto a cedência do seu espaço para uma conversa em torno do livro.

Isabel de Sá. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

Mas o nosso amor resistirá
 às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
 da felicidade universal.

 

        Isabel de Sá, A Alegria da dúvida.

 

 

A beleza de um texto fala pelo seu fogo. É difícil explicar o fogo. “Porque sem beleza não se aguenta estar vivo” (p. 11) é o título do primeiro poema desta antologia de poesia de Isabel de Sá com organização de Graça Martins. De títulos surpreendentemente belos, feitos de imagens vitalíssimas que se querem dentro, que se querem saber de memória: é possível um poema transformar-se no tecido do próprio coração, como o ar o sangue, a poesia, tudo a transformar-se também em nós, no nosso próprio tecido, estamos também feitos de imagens, de histórias, como diria Mia Couto em O Universo num grão de areia (2019): “A humanidade nasceu em África. Mas podemos também dizer que a humanidade nasceu da capacidade de produzirmos e contarmos histórias. Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados” (COUTO, 2019, p. 27). E por isso ter os pés no chão é uma revolução e escrever é também caminhar, traçar uma rota segura, da poesia de Isabel de Sá poderia dizer-se, como Camus “escrevo como nado, porque o meu corpo assim o exige” (CAMUS, 1978, p. 87); os poemas de A Alegria da dúvida celebram um mergulho na vida em que tudo se mede através do corpo (enquanto escala humana e divina), celebrada através de uma reivindicação urgente no “poder redentor das palavras” (p. 23), na esperança como um mínimo relâmpago que ainda assim nos ilumina e ilimita por dentro; a sensação de fluidez é contínua e vital, na celebração da memória e do amor é que estes poemas nascem como constelações que se tocam, há por isso uma infância e um fogo e uma ressurreição contínua que atravessam, como se a nado, cada um destes poemas, e nisso as palavras são redentoras e são libertadoras; livres de constrangimentos, e de imposições linguísticas, e nisso se pode afirmar que a poesia de Isabel de Sá é livre, digna, verdadeira, transparente, nítida e concreta, e por isso tudo é bela, habitada pelo espanto e pelo estremecimento de imagens que nos enchem e humanizam no seu sentido mais pleno, no seu sentido criador, de verbo: “Tudo o que disseste / no desaforo da paixão / só podia incendiar a vida inteira / e encher de esperança o universo” (p. 31), a esperança é aqui parte indissociável do corpo e da experiência amorosa, que faz lembrar um verso, muito feliz e cheio do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “A poesia deste momento inunda a minha vida inteira” (ANDRADE, 1978, p. 16). É desta inundação (enchente de luz, de amor, de paixão, aguda, estrema e central), que os poemas de Isabel de Sá nascem, disso só podemos ter a certeza, como de uma esperança, redentora que nos cure da “mentira de um amor que acaba” (p. 35). É talvez para resistir à mentira de um fim que se escreve sempre, e nisso A Alegria da dúvida é um livro de resistência: resistência contra o acabado, o pré-feito, resistência contra o estéril e contra o vazio, resistência contra o medo e contra qualquer imposição, contra o ódio e o ignóbil, contra os muros de fogo e a injustiça. Escreve-se para resistir, para insurgir, para dizer eu sou sendo ao mesmo tempo tudo em toda a parte, escreve-se para celebrar e aproximar, para preencher com vida e para acender a vida: “Se a arte /não for insubmissa / se não permanecer / desobediente / e não escapar ao controlo / é o quê? // Se a arte / não for inssurrecta / se não permanecer / pedra viva escaldante / é o quê /a arte / se não disser eu sou?” (p. 37).

 

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

CAMUS, Albert. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1978.

COUTO, Mia. O universo num grão de areia. Lisboa: Caminho, 2019.

SÁ, Isabel de. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

 

 

        Nuno Brito, 30 de Julho de 2021.

 

 

 

 

Fernando Guerreiro, A cadeira (do) Fantasma

 

Fernando Guerreiro

A cadeira (do) Fantasma

Cinema excêntrico

ensaio/ cinema

Enfermaria 6, Lisboa
Outubro de 2021, 304 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

16€

 
 

Cada um, com efeito, vem ao cinema com o(s) seus ”fantasma(s)” e introduz-se (fraudulentamente) nas ficções (hipóteses) dos filmes (ficções) em curso, alterando-as no seu sentido, procurando sempre dar corpo e fazer crescer os seus cenários, de modo a, como o personagem de Sonny em Texasville (1990) de Peter Bogdanovich, se tornar parte pregante da super-produção (elementar e pobre) .