Dois poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

2016

Os afazeres domésticos



                                    “Há de nascer de novo o micondó — 
                                     belo, imperfeito, no centro do quintal.”
                                                Conceição Lima


É o nosso trabalho dizer agora que hão de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninar.

E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã.

E que o vô morto voltará em sonho para ralhar
até a bandeira nacional mudar de cor
com estes desnaturados que não se cansam
de dar desgosto a seus antepassados
que cruzaram oceano não só para a desgraça
trocar de passaporte e vegetação ao fundo.

E é nosso trabalho dizer que os avós sequestrados
d'além mar hão de alforriar-se em nossos corpos
e que os antepassados deste lado do Atlântico
hão-de reaver seus quinhões de terra preta,
e juntos, entre a hortelã, o boldo e o capim-cidreira,
de mão em mão as xícaras da saúde que nos elide.

*

2019

A timidez do linho

Você tem vergonha dos vizinhos
e reclama da finura das cortinas,
nós, aqui nus em plena
tarde na cama à janela,
e explico de novo, meu querido,
que é branco o tecido
porque reflete toda a luz do sol,
tornando impenetrável aos olhos
dos vizinhos que bisbilhotam
mesmo a finura das cortinas,
puídas como nosso lençol,
então sussurro no seu ouvido:
não é bonito
que a própria luz nos esconda?


NB: Os restantes poemas desta série e outros poemas de Ricardo Domeneck podem ser lidos aqui.

Dois poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

Herbert List, Depois do Banho, Portofino, 1936

2009


Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos


a Jannis Birsner


Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Pinguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.

 

*

2013


Carta ao pai


Agora que o senhor 
mais assemelha pedaço 
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há de morrer só
porque nem a própria 
saliva poderá engolir 
por si na companhia 
somente desta sonda 
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas 
e se deveras me amaria 
tanto menos soubesse 
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela 
da Globo da Record 
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical 
com a tradição
e se deveras faria 
sobrevir a eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho 
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa 
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre 
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido 
o cérebro em veias 
como riachos insistentes
em correr 
fora das margens
se o senhor 
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa 
de todos os patriarcas
ainda me pergunto
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa 
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem 
e semelhança invertidas
tal espelho 
que refletisse opostos 
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras 
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém gerido
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente 
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai 
eu
mesmo pedaço 
de carne 
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio

Três poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

2001

 

Eu digo sim até dizer não

 

as circunvoluções
             e caprichos
        da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono 

            sopro
                   vento
             em que
                  uma primeira esfera
          de ar impele
                        outra ao movimento 

          ou em alto-mar
temendo menos a ausência
                  de resgate na superfície
que a povoação alheia
              e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real 

    só a lucidez abre caminho
                  para o imaginário 

                            mas a carne insiste
                  no contínuo 

onde as pedras são comestíveis
          e exige-se a fome;
                           durante a transfiguração
             em que anjos e bandejas
        circulam seu jardim
                                é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
         é com o linho enfaixando toda a
                    pele e a pedra
       separando esta caverna
da saúde do ar
            que se espera um Lázaro!
            Lázaro! e um segundo
         antes da asfixia
crer ainda
       que seja este o meu
               nome, seja ESTE o MEU
                             nome 

                    se cada folha parece
           percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
                                              para o vazio  

                                  o mundo
                    é tão simpático 

           da montanha que fala resta
                  a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta 

               mão em mão com passos lentos

    mas foi Isaque a carregar a lenha
          nas costas, tomar o fogo e o cutelo
          na mão; e caminhou junto de seu pai 

     todo sacrifício é aparente e inútil, 

                              nenhuma
                árvore camufla
                            suas frutas:
                    as expõe
            ao pássaro, ao
                            chão, ao suco
                     na garganta, à recusa
                        do estômago 

            por
                          tanto 

         percorro os andaimes
                       de equilíbrio precário
                            :
                 ferro oxidável
                             saudoso
               de água 

              e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
       espera que seu corpo, de repente
                   forte, sobreviva ao sacrifício, 

como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca

*

2005

O poeta vai para o monastério

I.

como adormecer num longa
do Pasolini e despertar
num curta do Kieslowski;
e tem sentido, eu pergunto,
abstinência, parcimônia
polissílabas? se meu corpo
sempre foi teatro
do precário? êxtase
em ascese,
mas as extremidades
começam a cansar-me,
quem me dera
agora um dilúvio
na ponta dos pés;
a perda acopla-se
mas o oxímoro não
me acalma, ninguém
que preencha
meu ônus,
caminhando pelas ruas
como uma papisa,
uma diva, uma Kate
Bush ofendida,
cantarolando
“de longe sim flauta de luva”
para que não
se entenda que
entre dentes
cerrados invoco
(a primeira onda
sobre minha própria
cabeça) o
déluge sintflut dilúvio 

II.

derramo o leite no
chão de propósito,
firo,
furo os dedos
no garfo,
quero tanto
agradar e intuo
que Deus aprecia
desperdícios; assim
deslocado
como um peixe
n’água, olho
continuamente para
o teto à procura
das câmeras que
tornem oficial
meu protagonismo
nesta história,
pela manhã
o primeiro sussurro
sendo homem
ao mar homem
ao mar e só hoje
entendo minha
mãe gritando após
as surras “não
me venha
com esta
cara de Maria
Madalena
arrependida”;
ah o martírio
rosa de jamais
ter filhos que eu
possa chamar de
Abel
Rocamadour 
Luke Skywalker 

*

 

2007

Mula

                  Minha
senhora: os unicórnios
que caem com a raiz
não
voltam mais; ainda
que vangoghes
até que engasgues,
         sigo mula
a indiciar o caso
excepcional
do sem espécie,
self-archived tool, exílio
                 dos catálogos
a especificar o espaço
para a porcentagem da escolha
do puro, alheia que se agita
antes de abrir, dose cavalar
de juramento e
eguidade. Poupa-me,
Popeye: longe de mim
impor-me híbrida
à tua hípica - 
brutalmente homogênea,
especialista em fronteiras,
             eject de habitat,
eis-me, excelentíssimo,
a de cascos
             não retornáveis,
nula nulla
tal qual highbred hybrid
relinchando o já morto:
muslos de mulícia,
esterilizável, aureolar,
                 multívaga
             ambiquestre
     de mulas prontas,
perdoai vossa serva
preguiçodáctila aos berros
perturbando vosso áureo
piquenique do sublime,
           illicit mule
espirrando em vosso épico.
               Não
Blade
Runner
que resista
mesmo euzim
                         fake mullah,
insciente dos teus métodos,
ó sussurrável, hoof muffler
da palha do meu estofo.
Prometo-me estoica
           e subcutânea,
bem fazes em esporear-me
o couro catecúmeno à chuva
do teu cuspe, inestimável
senhor de eco intumescido:
       até que a mula
      aqui fale
como manda
o figurino,
e encontre a exit
de quem às caras
me dera lamber o mundo
com a própria língua: mulo
fundindo
       com a função da forma
os extremos do exorcício e
a fanfarra do sem categoria. 

*

Mesmo o silêncio gera mal-entendidos (Edições Garupa, 2021) antologia 20 anos de poesia de Ricardo Domeneck. O livro pode ser adquirido aqui. Achamos que este é um dos livros do ano em língua portuguesa e, em jeito de divulgação/ celebração, ao longo do mês de Dezembro partilharemos neste espaço mais alguns trabalhos de Ricardo Domeneck.