Dois poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

Herbert List, Depois do Banho, Portofino, 1936

2009


Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos


a Jannis Birsner


Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Pinguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.

 

*

2013


Carta ao pai


Agora que o senhor 
mais assemelha pedaço 
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há de morrer só
porque nem a própria 
saliva poderá engolir 
por si na companhia 
somente desta sonda 
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas 
e se deveras me amaria 
tanto menos soubesse 
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela 
da Globo da Record 
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical 
com a tradição
e se deveras faria 
sobrevir a eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho 
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa 
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre 
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido 
o cérebro em veias 
como riachos insistentes
em correr 
fora das margens
se o senhor 
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa 
de todos os patriarcas
ainda me pergunto
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa 
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem 
e semelhança invertidas
tal espelho 
que refletisse opostos 
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras 
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém gerido
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente 
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai 
eu
mesmo pedaço 
de carne 
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio