à maneira de m.c.r.

trago na mochila
o jornal da semana passada
e doem-me os olhos
das intermináveis horas
das luzes artificiais do convés 

atravessei barcos e portos
vi os pássaros voarem contra o vento
desistirem não desistirem
até se perderem de vista
antes de aportar em égina
em hidra, em spetses
antes de adormecer de cansaço
em quartos em casas de amigos 

os homens estão aprisionados
dentro dos seus corpos
dentro das veias dos seus corpos
estão cansados, feridos
são ferozes, solitários
não sabem conversar
pararam de correr
há muito que não sonham
com tentar fugir
com um prazer cego de discordar
isento de uma necessidade homicida  

trago as mãos cheias de pequenos cortes
que ainda não começaram a cicatrizar
a novos golpes de sol e mar
passaram pelas cordas
estão laceradas por dentro e por fora
sangram, infectam
tacteiam os interruptores
de aguçadas luzes artificiais
que suspendem aquela muito longa noite
onde algum inquieto sonho seria conselheiro
de coisas que ainda não descansaram
sobre o meu colo 

espero atentíssima
e demoro-me diante das vitrines
para ver camisas de linho
azuis, brancas, às riscas azuis e brancas
atadas em espera da resolução de um corpo
são mercadoria e no entanto sua é também
a estranha dignidade
das variações da cor do mar
a perfeita memória do verão
na paixão de algum apaixonado artífice
surreal e agora quase impossível
na luz estagnada do inverno
uma visão deslocada
de pura velocidade
feita para traficar no idioma dos milagres 

estou ainda naquela cidade onde já não estou
estarei talvez já naquela cidade onde estarei 

entretanto os homens correm
fumam estão doentes
são sordidamente impacientes
com a tristeza de clientes
a quem foram dadas demasiadas escolhas
ou demasiado poucas escolhas 

chegam esquecidos do assombro
demasiado alto dos orgasmos
balbuciando vagas coisas
sobre confusas metáforas
sobre a electricidade nas fábricas
as palavras não os resolvem
servem para que tropecem
para que se afundem
mais na própria queda 

de manhã, atrasada, quase demasiado tarde
sentada atrás de ti vejo o teu corpo inquieto
que se move na cadeira
sigo-o com o olhar
move-se devagar, inclina-se, espraia-se
soergue-se e eu penso nas praias
nos corpos flutuando à superfície do mar
num dia de sol no sal sobre a pele
e ele ocorre-me querido como o ar 

vejo-o em todas as idades de uma vida
sem data, sem lugar, sem gramática

antes dos nomes próprios
a tua voz começa a encher a sala
e reconheço como é natural reconhecer-te
de repente, na vontade de dançar  

Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Oxford, 12 de Dezembro de 2023

A República do Silêncio, Jean-Paul Sartre

Depois da libertação da França no pós-Guerra, a 9 de setembro de 1944, Sartre escreve um manifesto sobre a liberdade num diário criado em 1941, Lettres françaises, que viria a ser um instrumento importante do Partido Comunista Francês. Sartre publicara o seu enorme e brilhante L’Être et le néant (O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica) em 1943, no qual se confrontou, e nos confrontou, com a condição humana despida de qualquer comiseração humanista, uma descrição fria e precisa sobre a nossa condenação à liberdade (apesar das situações), a má-fé que usamos para evitarmos a responsabilidade insuportável que isso transporta, o inferno estar nos outros (com uma formulação diferente), o homem ser uma paixão inútil, uma dialética sem síntese entre o em si e o para si, uma autenticidade feita de fingimento… (podem ler o prefácio que escrevi para a segunda tradução em português, aqui).

Um ano depois, já não se trata de pensar a nossa condenação à liberdade (necessidade esvaziada de quase todo o valor, um amor fati sem o sobre-homem nietzschiano), mas de descobrir a liberdade mais pura onde julgávamos ser impossível encontrá-la, ou, no máximo, apanhar dela aí apenas alguns frágeis farrapos. Segue-se a minha tradução de «La République du Silence».

«Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos, em primeiro lugar o direito à palavra; éramos insultados na cara todos os dias e tínhamos de nos calar; éramos deportados em massa, como operários, como judeus, como prisioneiros políticos; por todo o lado, nas paredes, nos jornais, no ecrã, víamos a face imunda que os nossos opressores nos queriam dar de nós próprios: por causa de tudo isto, éramos livres. Como o veneno nazi se infiltrava até aos nossos pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; como uma polícia todo-poderosa procurava constranger-nos ao silêncio, cada palavra tornava-se tão preciosa como uma declaração de princípio; como éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso de um compromisso [engagement].

As circunstâncias muitas vezes atrozes da nossa luta permitiram-nos finalmente viver, sem farol e sem vela, essa situação dilacerante, insuportável a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro, a morte sobretudo, que são habilmente mascarados nos momentos felizes, eram para nós os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendemos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas exteriores: tivemos de os ver como a nossa sorte, o nosso destino, a fonte profunda da nossa realidade de seres humanos; a cada segundo vivíamos na sua plenitude o significado desta pequena frase banal: «Todos os homens são mortais». E a escolha que cada um fazia de si era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre ter-se exprimido sob a forma: «Antes a morte do que...». E não falo aqui da elite que foram os verdadeiros resistentes, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não. A própria crueldade do inimigo levou-nos aos limites da nossa condição ao constranger-nos a colocar a nós próprios as questões que evitamos em paz: todos aqueles de nós — e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? — que conheciam alguns pormenores interessantes sobre a Resistência, perguntavam-se angustiadamente: «Se me torturarem, resistirei?»

Assim, levantava-se a própria questão da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si. Porque o segredo de um homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, o seu poder de resistir aos suplícios e à morte. Para aqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da sua luta traziam uma experiência nova: não combatiam em pleno dia, como os soldados; perseguidos na solidão, presos na solidão, resistiram aos suplícios no abandono, na miséria mais completa: sozinhos e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados e bem vestidos, que gozavam com a sua carne miserável e cuja consciência satisfeita e poder social desmedido lhes davam toda a aparência de terem razão. No entanto, no fundo desta solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; bastava uma palavra para provocar dez, cem detenções. Esta responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvelamento da nossa liberdade?

Esta negligência, esta solidão, este risco enorme era igual para todos, dirigentes e homens; para aqueles que levavam mensagens cujo conteúdo desconheciam, como para aqueles que decidiam sobre toda a Resistência, havia uma única pena: a prisão, a deportação, a morte. Não há exército no mundo no qual haja uma tal igualdade de riscos para o soldado e para o generalíssimo. E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado e para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta na disciplina.

Assim, na sombra e no sangue, constitui-se a mais forte das Repúblicas. Cada um dos seus cidadãos sabia que devia isso a todos e que só podia contar consigo próprio; cada um deles cumpriu, na mais completa negligência, o seu papel histórico. Cada um deles comprometeu-se, contra os opressores, a ser ele próprio, irremediavelmente e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolheu a liberdade de todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, teve de ser conquistada e afirmada por cada francês em cada momento contra o nazismo.

Eis-nos agora à beira de outra república: podemos esperar que ela conserve, em plena luz do dia, as virtudes austeras da República do Silêncio e da Noite

Livrarias ou Bibliotecas?

Eu (é um outro), durante um café filosófico na livraria Snob

Ontem, encontrei um apontamento que guardei da revista Philosophie magazine, creio que pertence a um dos cronistas residentes, mas não tenho a certeza (as web-pesquisas foram infrutíferas). Costumo revisitar as ideias que me vão marcando, sei que sou o resultado, dentro e fora da minha memória, daquilo que elas compuseram na rede psicobiológica que ampara as linhas de inteligibilidade. Muitas, em modo de corsário ingénuo, recuperei-as de mentes muito mais avisadas, como a de Nietzsche, do que eu. Notas pausadas ou fulgurantes, profundas ou superficiais, complexas ou simples, únicas ou sujeitas a um ecossistema discursivo, verbais ou imagéticas, também os sons, a música que, para Schopenhauer e outros, revela, não sem perigo, o âmago do mundo. Tudo isto forma a minha biblioteca de sentidos, um arquivo que vai orientando uma cosmovisão (nunca fixa), várias motivações, por vezes contraditórias, e também alguns imperativos. Um solo que não evita, e até alimenta, uma certa imperfeição grosseira, e por isso me projeta para o futuro em modo, nem sempre inteligente, de autossuperação. Posso dizer que me vou tornando «naquilo que sou» (percebi finalmente esta sentença nietzschiana), sem esperança, nem receio (oh, os meus amigos estoicos! Lamento todos os dias que não tenham derrotado à nascença o cristianismo).

Por tudo isto, mas não apenas por isto, há muito que me apaixonei por bibliotecas e livrarias, são os meus templos de ascese. Da biblioteca da Gulbenkian numa cidade bafienta de Trás-os-Montes à da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Da livraria Buchholz à Snob, passando pela FNAC do Chiado. Conheço poucas no estrangeiro, apesar de ter viajado bastante. Talvez signifique que o fetiche se fica pelos livros, os livros que posso ler (em diferentes línguas, é verdade, mas sobretudo em português, é esta a minha língua preferida (uma escolha?), apesar de ser capaz de pensar em francês, castelhano e quase em inglês e alemão). Não é, pois, o esplendor do local, mas os livros o que mais me interessa. E muitos, cada vez mais, são em grande parte projetos de leitura, não há tempo para tantas conversas impressas, conversas que fazem vibrar membranas da alma, não levo livros que ambicionem menos. Mas nenhum fica por folhear até encontrar uma página, um capítulo capaz de incendiar a razão, e quase nunca deixo de pegar fogo.

Vejamos o que anotei (sem autor, um descuido que não é comum) sobre a diferença entre livrarias e bibliotecas: «gosto mais das livrarias do que das bibliotecas. As livrarias obrigam-nos a confrontarmo-nos com tudo o que devemos ler, enquanto as bibliotecas nos convidam a ler tudo o que queremos ler. Umas sentam os corpos debaixo de candeeiros de secretária como manjedouras de cultura, outras abrem horizontes e põem em movimento. Se a livraria é essencial, não é apenas pelas coisas essenciais que vende, é porque aí se encontra o que não se estava à procura. E, por vezes, encontra-se porque alguém, um livreiro por exemplo, tal como eu tento fazer ao partilhar convosco as minhas leituras na revista Philosophie magazine, vos diz: “Toma, devias ler isto, deve interessar-te, agradar-te...”. Se as livrarias são essenciais, é porque, tal como o sentido de beleza de Kant, tornam os livros universalmente comunicáveis.»

A loucura de Nietzsche

Nietzsche com a Mãe, Franziska Nietzsche, depois do colapso mental do filósofo

O colapso mental de Friedrich Nietzsche tornou-se evidente no início de janeiro de 1889. Há um rascunho de carta de 25 de dezembro de 1888 para Cosima Wagner com indícios de loucura, por exemplo assina com Der Antichrist, mas a tergiversação sem retorno começa a 30 de dezembro e acentua-se a partir de 1 de janeiro até à última missiva de 6 de janeiro a Jacob Burkhardt. A 3 desse mês terá protegido um cavalo dos acoites no meio da rua, caindo logo depois desamparado e lavado em lágrimas, sendo posteriormente transportado para a sua modesta pensão da praça Carlo Alberto, em Turim, pelo seu hospedeiro, Davide Fino. Este episódio, real ou não, pouco importa, recorda-nos que os cínicos gregos eram sobretudo criticados por misturarem as formas humana e animal, ignorar os limites essenciais da nossa identidade (na altura, a moral tinha mais que ver com o Ser do que com o dever ser). Entre 3 e 7 de janeiro fecha-se no seu quarto, alguns pensionistas dizem tê-lo ouvido vociferar, proferir longos monólogos em voz alta, ensaiar cantos e improvisações histriónicas ao piano. Escreve várias cartas até 6 de janeiro, aos poucos amigos que ainda julga ter (Meta von Salis, Georg Brandes, Paul Deussen, Malwida von Meysenbug, Franz Overbeck, Heinrich Köselitz, Erwin Rohde, Heinrich Wiener, Jacob Burkhardt), mas também a Cosima Wagner, ao Rei Umberto, ao Cardeal Mariani. Assina com Nietzsche Caeser, Dionysos ou Der Gekreuzigte (O Crucificado). Refere encontros com o Papa, príncipes, heróis históricos. Parece ter o poder geopolítico de sacudir a Europa inteira. Quer nomear os redatores-chefes do Journal des Débats e do Journal des deux Mondes. Assegura que os seus livros Assim Falou Zaratustra e Ecce Homo salvarão o mundo ou matarão quem os ler sem preparação. Mas logo a 31 de dezembro lamenta desconhecer a sua morada (talvez uma coisa menor para quem julga que vai refazer o mundo).

Como disse, a 6 de janeiro escreve ao seu antigo colega Jacob Burckhardt, historiador da arte na Universidade de Basileia, começando por confidenciar-lhe que «preferia muito mais ser professor em Basileia do que Deus» (zuletzt wäre ich sehr viel lieber Basler Professor als Gott), refere também que afinal é Victor Emmanuel, mais, mostrando-se um pouco embaraçado, parece agora não ter dúvidas de que, no fundo, é todos os nomes da históriaWas unangenehm ist und meiner Bescheidenheit zusetzt, ist, dass im Grunde jeder Name in der Geschichte ich bin»), esta dispersão onomástica, laceração dionisíaca da identidade (preparando o mergulho no «Uno primordial») já estava presente numa carta de 3 de janeiro a Cosima Wagner. Quase a terminar a missiva endereçada a Burckhardt sentencia o dever de suprimir Wilhelm Bismarck e todos os antissemitas.

Ao ler a carta, Burckhardt percebeu que Nietzsche perdeu a razão e avisa um amigo próximo, Franz Overbeck, que depois de se aconselhar com o diretor clínico do hospital psiquiátrico de Basileia decide ir buscá-lo a Itália. Primeiro, é internado na clínica psiquiátrica de Basileia, depois na de Iena. O diagnóstico, nas duas instituições, vai no sentido de uma paralisia geral («desordem mental devido a uma paralisia») provocada pela sífilis (uma bactéria patogénica, capaz de ficar latente durante mais de 20 anos, que só terá cura em 1929). Nietzsche deixou o hospital a 24 de março de 1890, ficando ao cuidado da mãe até julho de 1897 e depois, até à sua morte (25 de agosto de 1900), ao da sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche, 1846-1935), no Nietzsche-Archiv de Weimar.

A queda na loucura originou várias teorias, algumas amigas da conspiração, mas por detrás do dissenso entre perspetivas (sífilis, psicose, envenenamento lento, descompensação religioso-moral…)[1] há uma certeza: a loucura contribuiu para a fama do autor. Podia ter sido ao contrário? Talvez, mas para isso Nietzsche devia escrever e pensar menos brilhantemente, a sua genialidade (ainda podemos usar este termo?) salvou-o da pequena loucura em retrospetiva do «maluco da aldeia». E àqueles que insistem em ver, por exemplo, nos títulos dos capítulos «Porque escrevo livros tão bons» e «Porque sou um destino» (ambos em Ecce Homo) a megalomania de um louco, talvez devamos responder que não passam do efeito de uma «razão ardente», como lhe chama Eduardo Prado Coelho,[2] «para a qual não há “acontecimento em si”, mas uma pluralidade de “sentidos”». Ou atender, respeitando-o talvez mais do que devemos, ao que amigo Heinrich Köselizt disse: «Nietzsche tinha o direito de ser megalómano porque era brilhante». Ou, ainda, recordar a apologia da loucura lúcida de Erasmo de Roterdão. De qualquer forma, Nietzsche sabia que muitos se interessam mais pelo autor do que pelos textos (ele próprio, aliás, defendia a importância indelével da biografia para a interpretação da obra)[3], e culminar na loucura alimenta quase sempre o culto da personalidade, uma santidade invertida, mas ainda assim santificável.

Das múltiplas leituras que, sem dúvida, podemos fazer da loucura de Nietzsche, umas mais centradas na linha clínica (psicanalítica ou neurológica), outras na hermenêutica (interpretações ao discurso com e sem biografia à mistura), Michel Foucault é porventura o autor que mais nos estimula a pensar. Porque analisa a loucura do ponto de vista dos «sistemas de pensamento» e consequente organização sociopolítica e dos «modos de discurso», atendendo ao caso particular de Nietzsche (também de Goya, Van Gogh, Artaud ou, entre outros, Hölderlin), esse filósofo revolucionário (talvez, para Foucault, malgré lui) que marcou a mutação (assegurada pela sua obra mas igualmente por aquilo que estava à volta e fora dela) do sistema de pensamento e regime de discurso filosófico.

Em termos muito gerais, Foucault lê a loucura de Nietzsche em dois registos diferentes em L'Histoire de la folie à l'âge classique[4] (História da Loucura na Época Clássica) e num manuscrito de 1966, Le discours philosophique[5] (O Discurso Filosófico). Entre os dois textos não há linhas irredutíveis de antagonismo, mas a mudança permite compor uma leitura do pensamento nietzschiano mais abrangente e profunda. Na História da Loucura, Nietzsche serve — depois de mostrar como se concebeu uma relação diferente entre a loucura e a normalidade, sobretudo a discursiva — para demonstrar que a partir de um certo momento, primórdios da pós-modernidade, cessa de haver uma passagem da loucura à obra e desta àquela. No Discurso Filosófico, Foucault pensa, já em pós-estruturalista, a mutação do modo discursivo próprio (historicamente próprio, não essencialmente próprio) à filosofia instaurado no tempo de Descartes. O discurso filosófico deixa de procurar a verdade, buscando, analisando e justificando «ideias claras e distintas», através de um eu impessoal, e abre-se a uma subjetividade (não kantiana) capaz, como em Nietzsche, de usar, com objetivos mais performativos de constativos (para influenciar mais do que para revelar), diferentes modos discursivos, já não se distinguindo irrevogavelmente do literário e do religioso, para diagnosticar o presente. Projetando-se, assim, uma mutação que parece atrair a morte da filosofia porque permite, contra a História da Loucura, que a loucura incendeie o discurso filosófico, como o faz na poesia e na religião.

História da Loucura:

Neste ensaio (um estruturalismo entre a história e a filosofia, sendo, por isso, nas palavras de Foucault, uma «arqueologia») mostra como a loucura, esse outro da razão, começou por ser recebida no Renascimento enquanto esplendor da imaginação; com inúmeras práticas heterogéneas, muitas ritualísticas, o louco seria uma figura do limiar. Bosch denunciava o verniz frágil da racionalidade com que nos cobríamos. Os loucos passageiros (muitos andavam em navios à procura de um porto que não os mandasse de volta para o mar, para esse utopos que parecia ser o lugar mais apropriado para um outro humano, o da noite) mostravam as zonas porosas entre a loucura e a razão. Com Erasmo de Roterdão e Montaigne, essa denúncia foi esbatida e o pesadelo do reino do Caos substituído em grande parte pela ironia. Mas o mais importante é que a época Clássica varreu de uma só vez todas as ambiguidades perturbadoras, inventou e justificou o grande enfermement (encerramento), internaram-se os loucos, os mendigos, os vagabundos, os delinquentes, os pobres... A época Clássica, reino da razão, desmistificou a loucura e outros comportamentos desviantes, ao diálogo com o reverso da luz contrapôs medidas administrativas, dessacralizou a loucura e fez dela um problema de saúde pública que, a favor da «ordem social», impunha construir muros altos e protetores. Todavia, nesta época só se é louco «na medida em que a [nossa] loucura não se esgota na verdade do louco. É por isso que, na experiência clássica, a loucura pode ser simultaneamente um pouco criminosa, um pouco fingida, um pouco imoral, um pouco razoável também[6] Isto deu ao louco uma liberdade ambígua: a de ser livre mas investido da respetiva responsabilidade. Cheirando a contradição e a injustiça, os primórdios do Iluminismo decidiram encerrar os loucos para que pudessem exercer plenamente a liberdade sem os riscos da responsabilidade: «libera-se da familiaridade com o crime e o mal, mas para o encerrar [enfermer] nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é totalmente inocente no absoluto de uma não-liberdade»[7]. Por isso, «O louco é agora totalmente livre e totalmente excluído da liberdade[8] Ei-lo alienado, ensimesmado na sua liberdade e na sua verdade, sem exterior. É assim que se compreende esta sentença de Foucault: «A loucura clássica pertencia às regiões do silêncio[9] Descartes foi uma das testemunhas de acusação da loucura, excluindo-a por completo da filosofia: A vontade, e necessidade, da verdade torna impossível o lirismo da desrazão. É isso que nos assegura nas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641). Para ele, o erro é possível e, até, legítimo (resulta da nossa condição dual: corpo e alma, sonho e lucidez). Mas não a desrazão, o louco não pode (porque não consegue percorrer o caminho da verdade) filosofar. Contudo, esta situação altera-se nos séculos xviii e xix, lentamente a loucura ganha uma linguagem na qual pode falar. Foucault dá o exemplo de Le neveu de Rameau de Denis de Diderot (escrito entre 1762 e 1773) e da poesia romântica, sobretudo a alemã. Nesta última, a linguagem é a do «fim último e do recomeço absoluto: fim do homem que se afunda na noite, e descoberta, no fim dessa noite, de uma luz que é a das coisas no seu primeiríssimo começo.»[10] Com isto, diz Foucault, o louco redobra o seu poder de nos fascinar, a sua linguagem continua a não poder revelar, como a cartesiana, as figuras invisíveis do mundo, mas assume a revelação das «verdades secretas do homem»[11], mas «ele transporta mais verdades do que suas próprias»; por isso, «do homem ao homem, o caminho passa pelo homem louco[12] Neste sentido, as características dos autores, seja a melancolia de Swift, o delírio de Rousseau ou a loucura de Torquato Tasso pertencem às suas obras.

Relativamente a Nietzsche, exemplo, com Van Gogh, Goya e Artaud, do fim da modernidade — quando o homem parece desaparecer do primeiro plano a favor da linguagem —[13], a História da Loucura conclui-se pela definição da loucura como «ausência de obra»:[14] «A loucura é a absoluta rutura da obra».[15] Os últimos escritos de Nietzsche do janeiro de 1889 (as chamadas «Cartas de Loucura»), marcam a ruína total da possibilidade de continuar a produzir obras, limiar a partir do qual reina o silêncio ou as gesticulações inconsequentes. De igual modo, van Gogh e Artaud sabiam que a loucura os afastava irredutivelmente das suas obras. Mas antes do colapso, a possibilidade de enlouquecer alimenta já o receio da catástrofe da dispersão ou da dissolução, do eu e das interpretações. Se para Nietzsche, diz Foucault, as interpretações nunca se completam – sendo a filosofia uma espécie de «filologia suspensa» —, é também pelo receio de poder atingir um ponto de não retorno. A correspondência de Freud mostra igualmente esse escrúpulo. Assim, num trabalho muito próximo da História da Loucura, «O que está em questão no ponto de rutura da interpretação, nesta convergência da interpretação em direção a um ponto que a torna impossível, poderá bem ser qualquer coisa como a experiência da loucura.[16] Regressemos, porém, à História da Loucura para concluir com a tese definitiva de Foucault relativa à loucura de Nietzsche e à ausência de obra: «não interessa muito saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, da humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura. Só há loucura como o instante último da obra — esta repele-a indefinidamente para os seus confins: onde há obra, não há loucura».[17]

O Discurso Filosófico:

No capítulo onze, no qual Foucault nos informa de que a multiplicação dos heterónimos nietzschianos «indicam o estilhaçamento do sujeito filosofante, a sua existência múltipla, a sua dispersão por todos os ventos do discurso.»[18] E isto vai provocar uma mutação (mutation) na relação entre o discurso filosófico e quem o enuncia, abrindo a «possibilidade do filósofo louco[19] «Com Nietzsche, continua Foucault, a decomposição do discurso filosófico deixa-o desprotegido e indefeso contra a loucura. Esta tem agora a possibilidade de o incendiar, tal como pode incendiar a fúria dos poetas, o delírio dos tiranos, a embriaguez dos homens de Deus».[20] Assim, a separação clara entre obra e loucura na História da Loucura é agora substituída pela abertura da filosofia, das obras filosóficas à loucura. A partir disto é legítimo vermos na megalomania nietzschiana presente pelo menos desde 1876-78 (Humano, Demasiado Humano) um sinal de loucura, fornecendo aos textos outras linhas de inteligibilidade. Podemos, inclusive, questionar-nos se Nietzsche teria escrito Assim Falou Zaratustra (1883-85) ou Ecce Homo (final de 1888) com tanto fulgor se não fosse já um pouco louco. É, portanto, outro paradigma do discurso filosófico que Foucault descobre em 1966. E, ao mesmo tempo, como veremos na citação que se segue, a loucura que podia fazer parte do lirismo poético, como em Hölderlin, passa agora a poder habitar a filosofia: «Nas últimas cartas de Nietzsche, na convocação dos soberanos, no postal a Strindberg, na mensagem final a Peter Gast, é, de facto, o pensamento de Nietzsche que se afunda. Mas podemos reconhecer aí os limites da sua filosofia — mais a sua suspensão do que a sua interrupção —, e de, a partir de agora, estarmos dispostos a perguntar a toda a loucura não só o que pode incluir de poético, mas o que pode, no seu abismo, enunciar de filosófico, é um sinal de que o discurso filosófico se desenrola segundo um novo modo de ser e se organiza segundo um novo regime. “Cantai-me um cântico novo, o mundo está transfigurado”».21

[1] O artigo de Éric Vartzbed, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche» (in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27), permite enquadrar o problema e está disponível na Web.
[2] Introdução a Michel Foucault, As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, trad. António Ramos Rosa, p. 10 na nova edição das Edições 70, 2022 [1966].
[3] «Conto, simplificando-a, a história destes filósofos [Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates]: só quero extrair de cada sistema o ponto que é um fragmento de personalidade [Persönlichkeit] e pertence à parte do irrefutável e indiscutível que a história tem de preservar». (Werke: kritische Studienausgabe, 15 volumes, Munich-Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1999 — KSA —1, pp. 801-802). Em Para a Genealogia da Moral II, § 7, centra a análise noutro ponto: o do casamento. Nenhum grande filósofo foi, diz, casado, é, aliás, impossível imaginá-los assim (no panteão de pensadores celibatários estão, entre outros, Platão, Descartes, Schopenhauer e Kant). No § 8 da mesma obra, elogia a vontade de silêncio e um timbre de voz suave. Para logo depois se concentrar no recato, os filósofos detestam mulheres, glória e príncipes.
[4] Paris: Gallimard,1961/1964, cito a partir da edição tel de 1972 (há uma tradução em português do Brasil na editora Perspectiva, 2/2022).
[5] Publicado em 2023 pela Gallimard/Seuil com um extenso aparato crítico, da responsabilidade de François Ewald, Orazio Irrera e Daniele Lorenzini, está prevista para breve, meados de 2024, uma tradução minha nas Edições 70.
[6] Histoire de la folie, op. cit., p. 635.
[7] Idem, p. 636.
[8] Ibidem.
[9] Idem, p. 637.
[10] Idem, p. 639.
[11] Idem, p. 640.
[12] Idem, pp. 640 e 649.
[13] É célebre o final de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault arrisca dizer que «O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.» (idem, p. 497).
[14] Podemos deduzir do que refere Foucault que ele não nega que nestes autores a loucura faça parte das suas obras, mas apenas ao nível da receção, são os leitores que incluem a loucura terminal deles nos seus escritos prévios. (Cf. idem, p 661).
[15] Idem, p. 662.
[16] Michel Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx» [1967], in Dits et écrits I, n.º 46, pp. 592-608, Paris: Gallimard/Quarto, 2001 [1967]. O texto foi lido no Colóquio de Royaumont de 1964.
[17] Histoire de la folie, op. cit., p. 663.
[18] Le discours philosophique, op. cit., p. 185.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem. No aparato crítico da edição da Gallimard/Seuil, que fará também parte do que vier a ser publicado nas Edições 70, há a seguinte nota importante redigida pelos editores: «possibilidade do filósofo louco» de que falava Foucault em 1963, e que se aproxima mais de O Discurso Filosófico do que da História da Loucura, no seu ensaio sobre Bataille, foi, de facto, (re)aberta por Nietzsche: «É exatamente o inverso do movimento que sustenta a sabedoria ocidental desde Sócrates: a linguagem filosófica prometia a esta sabedoria a unidade serena de uma subjetividade que triunfaria nela, tendo sido inteiramente constituída por ela e através dela. Mas se a linguagem filosófica é o que repete incansavelmente o tormento do filósofo e lança ao vento a sua subjetividade, então não só a sabedoria já não pode valer como figura de composição e de recompensa, como se abre inevitavelmente uma possibilidade, no fim da linguagem filosófica [...]: a possibilidade do filósofo louco. Quer dizer, encontrar, não fora da sua linguagem (por um acidente do exterior, ou por um exercício imaginário), mas no seu interior, no âmago das suas possibilidades, a transgressão do seu ser filósofo» (M. Foucault, «Préface à la transgression»).
[21] Idem, p. 186. Foucault cita uma carta de Nietzsche de 4 de janeiro de 1889 a Heinrich Köselitz (Peter Gast), Turim. A carta completa termina depois de «transfigurado» com «todos os céus se alegram» e é assinada por «O Crucificado»: «Singe mir ein neues Lied: die Welt ist verklärt und alle Himmel freuen sich. Der Gekreuzigte.» Friedrich Nietzsche, Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986, p. 575.

Livros do Ano 2023

Viajei muito este ano e li muito erraticamente, com aquele espírito hesitante que a deslocação pode causar: é algo que perturba uma certa impressão de rotina de que normalmente depende a minha atenção de leitora. Observo, no entanto, que isso me devolveu uma certa urgência de ler, uma certa paixão desorganizada pelos livros. A desorganização não é necessariamente confusão e, de qualquer forma, sou uma daquelas pessoas que acha que ler e viajar são equivalentes, actos que se espelham no sentido recompensador de procurar até encontrar aquilo que me inunda e assim me ultrapassa com a consciência de estar a ver algo pela primeira vez.

 

Chus Pato: Um fémur de voz corre a galope: A antologia de Chus Pato, com tradução de Jorge Melícias que foi publicada pela Officium Lectionis no fim de 2022, a que se soma a outra tradução que dela em português circula e que eu prefiro, Carne de Leviatã, pela Douda Correria, com tradução do João Paulo Esteves da Silva. A primeira vez que ouvi Chus Pato ler a sua poesia foi em Oxford, na companhia da sua tradutora inglesa, Erín Moure, que de resto estava no meu radar por ser a tradutora de uma das versões mais interessantes e desassossegadas que conheço, para língua inglesa, de O Guardador de Rebanhos. A poesia de Chus Pato estava pouco representada em língua portuguesa, o que talvez se explique pela proximidade de ambas as línguas, mas esta era uma falha. Os seus poemas acontecem à velocidade do mergulho, qualquer coisa neles me faz pensar em Herberto Hélder, e na profundidade das línguas de um modo geral, na sua relação com os corpos. Se a poesia é ofício e a sua especificidade é a elevação através da metamorfose que as metáforas permitem, que desarrumam a nossa relação com o que achamos que sabemos sobre o mundo, então essa antologia de Chus Pato foi o meu primeiro encontro deste ano com a pura poesia. Esta nota sobre a poesia de Chus permite falar de outro livro de poesia espanhola traduzido este ano, em que tenho andado a pensar e que ainda não li, Canção Errónea de António Gamoneda, traduzido por João Moita e publicado pela Flâneur. Fica para este ano. 

Mulher ao Mar e Corsárias de Margarida Vale de Gato. Este projecto é uma espécie de variação sobre uma ideia de poema contínuo, muito embora esta continuidade tenha mais que ver talvez com Walt Whitman do que com Herberto Hélder. Acrescentaria aqui também uma antologia preparada por MVG que me fascinou, como me fascina aquilo que os movimentos decadentistas têm de fertilidade e renovação, de surrealista antes do surrealismo, O Outono de Oitocentos, publicada pela Flop. Anoto aqui outro livro que quero ler e que algo me diz estará em diálogo com esta antologia, Metal de Fusão de Fernando Guerreiro, publicado numa colaboração entre a Black Sun Editores/Homem do Saco/ 100 Cabeças. Esperei este livro de FG com grande antecipação: acho que os anos novos devem começar com alguma espécie pouco razoável de fé nas revelações que os livros de poemas podem trazer.

É de Fernando Guerreiro o posfácio a outro livro de poemas que melhorou consideravelmente o meu ano, que, porque eu sou parcial à beleza dos meus amigos, é a poesia reunida de uma grande amiga, Não Desfazendo de Rita Taborda Duarte, publicado pela INCM. Há uma entrevista dada pela Rita à Raquel Marinho em que ela diz que a poesia serve para não nos resignarmos à língua, à própria linguagem, que a poesia permite a possibilidade do mundo sem o peso de uma língua comum, que nos deixa ver o mundo a configurar-se de outra maneira. Se fosse possível definir Não Desfazendo a partir de uma explicação, podia ser esta. Dois dos livros de poesia portuguesa contemporânea que mais amo podem ser encontrados nesta colecção: As Orelhas de Karénin e Roturas e Ligamentos. Se a linguagem poética pode ser outra maneira de reconfigurar o mundo, há outros dois livros de poemas que li este ano que podem ser aqui mencionados como representativos desta ideia. Oníricas (Assírio e Alvim) de Ana Marques Gastão, é um livro muito singular, se é que reconfigura o mundo (talvez não seja essa expressão), fá-lo buscando nas imagens do subconsciente, que surgem em sonhos. É um livro delicado e belo, que corre obliquamente ao real, transfigurando de alguma forma a sua respiração. Fui lê-lo porque uma amiga me disse que era sobre coisas que só as mulheres entendem. Eu estava a sentir-me esperta nesse dia e respondi que não sabia o que pudesse isso ser. Mas ao mergulhar nestes poemas, acho que entendo o que a minha amiga quer dizer. O outro livro de poesia que li este ano e prolonga esta linhagem de mundo reconfigurado é Canina (Tinta da China) de Andreia C. Faria, fá-lo a partir de uma ligação eminentemente metafórica, lírica desse ponto de vista, com o mundo animal, e nisto prolonga, ou aproxima-se da investigação que encontrámos num livro de Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio. Há em Canina o lado aguçado da linguagem em estado de paixão (que de resto liga a poética de Andreia C. Faria à de Margarida Vale de Gato) e por vezes uma frieza que remete para os campos retóricos dos que são capazes de amar sem limites, numa espécie de exame da luz que emana de certas feridas iniciais e estruturais. Um livro afiado, feroz, e ao mesmo tempo capaz de uma vulnerabilidade que talvez possa se não salvar o mundo, como dizia outra amiga sobre a poesia, talvez chegue para salvar o minuto.

O livro de poemas que foi o lugar da minha alegria este ano foi Lantânio, publicado na colecção Elementário da Flan de Tal, coordenada pelo João Pedro Azul, é o mais recente livro de José Luís Costa, e tem um enredo. Narra o regresso de um adolescente fantasma, Leonardo, que, entre outras aventuras e desventuras, marca a tinta de spray comboios ali para os lados da linha de Sintra, é nietzscheano e a sua presença fantasmagórica devolve-nos a geografia de um bairro de Lisboa, a Penha de França. Lantânio, o elemento, partilha a etimologia com uma das palavras preferidas de José Luís Costa em grego moderno, lathos, errado, erro. Há um manual sobre a poética da arte do elogio no poeta grego antigo Píndaro que se intitula Graceful Errors: Pindar and the Performance of Praise, assim um pouco a trajectória de Leonardo. Ouvir Nuno Moura a ler poemas do livro na sua apresentação na Poesia Incompleta foi um dos pontos altos do meu ano.

Falando em Píndaro, uma releitura: Acidentes (Relógio de Água) de Hélia Correia, um exame de formas de crueldade social, com recurso a uma observação a partir do seu enraizamento tanto na história como numa certa história da literatura e da cultura (Grécia, Byron), que, sugerem os últimos poemas, é redimível pela beleza e pelo amor. O livro prolonga o diálogo com a Grécia de A Terceira Miséria. Na sua busca deliberada de falar de uma certa ambiguidade moral, para rejeitar e denunciar o ponto em que ela cai para o mal, há qualquer coisa de um exercício de liberdade e nisso este livro une-se, para mim, a um breve ensaio filosófico publicado este ano pelas Edições 70, na tradução de um dos outros editores da Enfermaria, Victor Gonçalves, Para uma Moral da Ambiguidade de Simone de Beauvoir. Há um modo de pensar lógico neste livro que não deixa o leitor esquecer-se que a tese de doutoramento de Beauvoir era sobre Leibniz. É um texto que se concentra nas linhas de força do existencialismo para encarar uma das suas contradições lógicas, procurando resolvê-la, que o existencialismo na sua defesa de uma liberdade radical não poderia comportar uma moral, e é justamente a configuração dessa liberdade existencialista e suas implicações de que este livro trata. Uma proposta radical de liberdade. Esta ideia de uma liberdade radical implica, claro, um convite a dançar diante da morte, o que me levou a revisitar um texto que me continua a causar uma viva emoção, alguma espécie de reserva sem limites por achá-lo uma perfeita arte de viver, o Teoria e Jogo do Duende, onde se encerra a poética dionisíaca de Lorca, e também a reler várias vezes com assombro sempre ascendente o mais belo poema da história do mundo, que é Llanto por Ignacio Sanchéz Mejías.

As minhas duas outras releituras de 2024 foram Poesias Completas de Alexandre O’Neill (um dos tijolos da Assírio & Alvim), em estado de adoração absoluta, com a gravidade e a graça que O’Neill inspira e uma releitura que envolveu para mim uma cuidadosa reapreciação de um livro que continua a ser, segundo me parece, bastante singular entre a poesia escrita pelos meus contemporâneos, Jóquei de Matilde Campilho. Há críticos que, frequentemente com a misoginia mal-disfarçada que por vezes passa por discurso sobre a poesia, têm atacado este livro como representativo do trabalho de uma poeta imatura. Mas há qualquer coisa a ser dita pela imaturidade dos poetas, no sentido em que ela permite lançar um olhar renovado sobre certos lugares-comuns, no espanto do olhar, no acto do canto, há uma espécie de vitalidade da poesia, de asserção do espanto que continua a explicar porque é que ainda hoje acho que não conheço outro livro como este escrito naqueles anos em que todos éramos melancólicos e líamos Cesare Pavese. E há um calor sem cinismo neste livro que o torna inadiavelmente humano. Agrada-me nele o que tem de desmesura retórica, de nerve, que é um modo de cantar amores difíceis, correndo à velocidade de um jóquei algures entre a vivência e a sobrevivência.

Jovem é o tempo de Lalla Romano, um pequeno grande livro de poemas breves que são objectos daquele tipo de beleza tão simples que se torna extrema, nos arrasta na sua cadência até algum limite recôndito, como catarse e revelação de coisas óbvias mas facilmente esquecidas. A tradução é de um dos ex-editores deste blogue, João Coles, e fui publicada pela Sr. Teste. Do mesmo tradutor e também digno de celebração, A Longa Estrada de Areia de Pasolini, um livro de viagens – pela costa italiana num Fiat Millecento. O outro livro de poesia traduzida que melhorou o meu ano foi Cafés and Comets after Midnight and Other Poems, uma antologia do poeta surrealista grego Nikos Engonopoulos, que era uma destas figuras que o surrealismo produziu, um grande poeta e um grande pintor, um pouco como Cesariny entre nós. Engonopoulos é um poeta de experimentações ousadas, poemas que configuram imagens em que se estranha o mundo para escutar o que nele é vital, absoluto, absurdo. Engonopoulos viveu em tempos cruéis para gente que escreve sem medo. É ainda mais extraordinário por isso. Esta antologia feita por David Connolly para a Aiora Press (uma pequena editora sediada na rua Mavromichali em Atenas, vizinha de um café onde se joga xadrez, mas com loja online) permite reapreciá-lo ou descobri-lo e amá-lo.  

Li com o deslumbramento de quem regressa sem parcialidade a uma amiga o breve livro de Francisca Camelo que saiu na Nova Mymosa, Quem Me Comeu a Carne, poemas sobre o amor cruel e a fome que este causa, sobre a sua beleza perigosa e violenta, sobre a racionalidade com que isso se revê e que não reconstitui nada.

Uma novela de reescrita de um romance que me deu muito prazer ler, Tancredi, o Napolitano de Paola d’Agostino, publicado pela VS Editor em tradução de Vasco Gato. Devia ser de leitura obrigatória nas escolas, a par com Os Maias para desarrumarmos o que achamos que sabemos sobre o cânone, para pensarmos nos livros como um modo de regressar às vozes que ainda não ouvimos.

Dois livros que se espelham e olham para o mesmo fenómeno, Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule de Édouard Louis e Regresso a Reims de Didier Eribon, o fenómeno que ambos os livros investigam é supostamente o das vidas daqueles que a sociedade francesa denomina de traidores de classe, pessoas que cresceram numa extrema pobreza e que, por educação, conseguem ascender socialmente. A coisa mais impressionante acerca do livro de Édouard Louis, além do facto de que ele era (e é) extremamente jovem quando o publicou, é a sua interminável raiva que redunda numa denúncia que não chega a nunca ser racionalização da violência e da pobreza do ambiente em que cresceu. É um relato que avança de estigma em estigma até chegar a um gesto final muito simples, de um casaco que se deita fora, e que é uma maneira de demonstrar como há feridas que não se fecham nunca. O que Édouard Louis não consegue fazer, descrever racionalmente, pormenorizadamente, a psicologia social colectiva que os eventos que ele descreve supõem, é o que o livro de Didier Eribon, algumas gerações mais velho que E. Louis (mas afinal pouco mudou em termos da história social que é contada em ambos os livros), faz, com imensa clareza e lucidez. É a psicologia das perdas que a desigualdade social gera o assunto deste livro.

Dois livros sobre depressão: um sobre o suicídio, o estudo clássico sobre este assunto, que toma como ponto de partida o suicídio de Sylvia Plath, The Savage God de Al Alvarez, e o livro de Andrew Solomon, The Noonday Demon, uma história da depressão, que olha para ela de vários pontos de vista, tantos quantos a doença é múltipla, difícil de mapear e de entender.

Um romance assombroso, e difícil de ler, Kairos da dramaturga alemã Jenny Erpenbeck, crónica do colapso da Alemanha de Leste, revisto pela lente de uma dramaturga que recorda a relação que manteve, na juventude, com um escritor trinta e quatro anos mais velho, com quem ela se encontra por acidente, à espera de um autocarro, num entardecer de chuva de 1986 no leste de Berlim. Podíamos dizer que o que se segue é um estudo que progressivamente vai fechando o seu foco sobre a destruição moral que uma geração mais velha, e corrupta, impõe sobre uma mais jovem, como metáfora da história de um país. Mas Kairos é um objecto muito mais complicado do que isso e mais difícil de definir, quase tão complicado como aquela velha ideia de que nunca se conhece totalmente alguém. Lembra um pouco o filme As Vidas dos Outros, são objectos que existem no mesmo espectro.

Três livros biográficos: a investigação de Ian Gibson da morte de Garcia Lorca, The Death of Garcia Lorca, quase uma tentativa de criar um diário que reconstituísse os últimos dias da vida do poeta, retrato da monstruosidade e da corrupção da Guerra Civil Espanhola.

Nos antípodas deste, uma releitura que é para mim sempre um prazer, de um livro que acho uma espécie de colecção fundamental de apartes contundentes sobre as personalidades míticas de um século todas juntas numa cidade mítica, The Autobiography of Alice B. Toklas de Gertrude Stein.

Finalmente, a biografia de um poema, um pouco relacionada com o livro de Ian Gibson, mas que talvez seja um retrato sobre as diferenças de classe em Inglaterra, September 1, 1939 de Ian Sampson sobre o poema que Auden escreveu no início da Segunda Guerra e sobre a relação do próprio Auden com esse poema e como o poema atravessa o tempo, para lá do seu autor e de nós. É um livro muito particular este. Existe como vizinho de Wasteland: Biography of a Poem de Matthew Hollis, que faz sentido ler em conjunto com este (o primeiro e o segundo modernismo inglês).  

Revisitei algures durante o ano um poeta vitoriano que conheço mal e a sua sequência alucinante de poemas sobre infelicidade conjugal, um poema violentamente belo, triste e ansioso: Modern Love de George Meredith.

A Pediatra de Andrea del Fuego, é uma novela brilhantemente cruel, sobre a relação entre uma inteligência fria e lúcida que é auto-destrutiva e a loucura de uma sociedade brutalmente desigual que passa por normalidade aceitável. Um encontro desastroso. Acho Andrea del Fuego uma narradora brilhante. Los Enamoramientos, Javier Marías morreu em 2022 e a meio de uma noite de insónia em Atenas, quando estava a acabar de ler este livro, dei por mim a googlar qual seria exactamente a altura de Javier Marías. É uma novela tão bem escrita que achei que ele teria de ter sido mais alto do que era na realidade para a ter escrito. Não sei se isto é critério de qualidade literária. Mas nesta novela que é uma observação e descontrucção da felicidade que achamos que há nos outros, e que de alguma forma pode ser real para nós, há uma lucidez irónica sobre os enamoramentos, que vai causando estranhamento e desconforto, e que me fascinou durante vários dias.

História: Rites of Spring a brilhante história da Primeira Guerra Mundial escrita por Modris Eksteins que tem como ponto de partida a escandalosa primeira encenação de A Sagração da Primavera de Stravinsky. É uma história fascinante do modernismo. 

Imagens Imaginadas de Pedro Mexia, uma revisitação despretensiosa de imagens amadas. Um livro agradável, bem escrito e inteligente, sobre quadros, fotografias, apontamentos visuais de coisas que nos assombram.