À beira de uma graça furiosa

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Alguém:

descobrir que não há Deus, que alegria! Põe a gente à vontade. Respira-se de outra maneira
e
deus. se tiverem equipamento. investiguem-no
e

Ainda não se respira como devia ser

I. Alguém dizia: a morte, na tua poesia, vive. Não é mortífera. Primeira impressão em negativo.

II. Num manual de anatomia espanhol de 1556, de um tal de Juan Valverde de Amusco, um écorché segura numa mão a faca, noutra a própria pele. Alguém diz: Apolo e Mársias. Proponho outra legenda: “A certa altura da sua juventude sumptuosa, Kafka pôs de lado a sua cópia bem manuseada de Herberto Helder e experimentou a arte da prestidigitação”. Tome-se a figura como parábola do ofício frio e exangue a que me proponho. A pele és tu. Venho do lado da faca, e não do fogo. É uma espécie de fidelidade.

III. Dizias: insondável entendimento das metamorfoses. Alguém dizia. Dizia: uma arte interna. E pegava em objectos vivos, terríveis. Líricos, vivos. Chegava ao centro. Dizia: placenta. Experimenta esses escafandros. Dizia. Desce aos poços, experimenta um a um ofícios debruçados, move o cuspo de um lado ao outro da boca, por exemplo, como alavanca para as mãos. Experimentei, e desci, e experimentei, e movi. E disse. Bombeei sangue até partes ocultas. Isto em frente a amigos. Que diziam: é bonito, esse jogo de tubos. Vi-os a não verem o prodígio. É também difícil o ofício de ver a ausência de prodígios.

Voltei a ser o mais inepto pirómano de ervas do meu tempo. Dizia: dai-me uma alavanca e eu emperrarei o mundo.

Venho pois falar-te dos meus escafandros avariados. De pedras de isqueiro gastas. Da felicidade da falha nos motores da fosforescência. Dos frutos frios, por fora, por dentro não aquecidos a electricidade. Alguém dizia. De botânica petrificada, de magia exausta. De coisas e palavras encerradas, e não cerradas, em torno do côncavo. Do ponto morto no meio de uma sofreguidão de ímans.

IV Dizias: a inteligência que aparelha o caos em relações sensíveis de elementos. Venho pois falar-te de uma certa estupidez.

V. Que fazer o inventário destes dias é juntar destroços. Colar a cuspo. Não temos o equipamento necessário. Exemplo: mergulhamos em busca das mães e trazemos adaptadores inúteis de uma vida anterior em Londres. Exemplo: pedimos mães e outras máquinas providenciais a crédito e não temos meio de as pagar. A electricidade falta sumptuosamente. Não abriremos uma escolha de mergulho na poesia. Faltam abismos.

Alguém dizia. Graça.

Dizia. Graça. Locomoção. E: a aridez do objecto ocioso. Dos adereços cómicos de vidas com despropositada soltura de membros. A aisance obstinada de uma tábua solta numa ponta que o apanha de lado e desactiva o enigma. Como se um nervo cosesse todas as partes pungentes e selvagens. Disseste. Da carne. Dizias.

Não era o caso. A cara, descosida, não encontrava o nervo. Inerte. Ninguém se comoveu. E alguém lhe pede: canta.

Não posso agora. Estou à beira de uma graça furiosa.

VI. Dizias: não se vê aquilo que esperava ser pegado e visto pelos lados de dentro. Alguém dizia: a nitidez pela nitidez. Dizia: Tati. Ah.

Desenvoltura melancólica.

VII. Dizias. O fôlego, o fôlego, deslumbrando por ali abaixo. Como se roçasse Deus por cima. Dizias. De tudo.

Tem andamento. Como se diz das viaturas, da música e dos processos judiciais. Das máquinas. Têm andamento. O assombro, o esplendor, o êxtase, dizias, o crime. Algo morre e alguém: Diz. Vá.

Então cantarei a exaltante alegria da morte? Porra.

VIII. Queria dizer-te que mantiveste o mundo pela desordem. O que é uma acusação.

São pois as máquinas felizes as que rumorejam. Alguém dizia.

Atravessaste a devastação porventura demasiado depressa. you who think you will get through hell in a hurry.

É que foste colmatador de vazios. Enquanto eu via vídeos de filmes de terror no sotão da minha adolescência com amigos em torno. Fragmentos soldados por pontos magnéticos. Dizias. E nós a praticar a ciência incerta e violenta do comando. A desmagnetizar fitas e rumores.

IX. Por falar em máquinas e sereias, o meu sonho herbertiano mais recorrente é este: eu, Krapp, debruçado sobre a fita rotativa que passa a minha voz a ler o poema contínuo com distinta fulgurância, a frase cosida ao fôlego longo. Ocorre-me amarrar-me a um mastro. Tento acompanhar mas não tenho válvulas para isso. Guelras, rastilho, pólvora, vento, pulso, unhas para isso. Não tenho a carne viva. Não tenho sequer trevas, sangue, interiores, orifícios, segredos para isso. Algo canta em tempos. Mortos. A voz não sai. E pernas para dançar. E digo: isto sim, é um espasmo. Vou à prateleira. I have heard the mermaids singing, each to each. I do not think that they will sing to me. Repito. Engasgo-me a rir. Eis uma faca que corta o fôlego. Era depois do dom. Era depois da vida.

X. Porque. Escorchar a língua viva? Uma oportunidade perdida para cortar os nervos aos pedaços.

XI. Não há cicatriz, se tudo é ferida. Não há segunda vida, se tudo é vivo.

XII. Isto é uma tentativa de deserção em travessia de deserto. Decerto há aqui aquilo a que chamaste o equívoco das reputações e dos ensinos. Mas dizias. Um grande poeta não se furta à degradação interposta. Falo de ir lá onde não há espaço para nós. Dizias. Alguém dizia. Alguém dizia. Um sítio privado de música. Queimar os caminhos de acesso ao canto. E depois nas ruas de Liverpool: I riot because the riot is finally here. Era uma história de barricadas. Punti luminosi. Lugares extintos onde desertar dos dons.

XIII. Tenho sérias dúvidas quanto à alta voltagem do ouro. Vou à feira da ladra. Tendo para o plástico.

XIV. Dizias. O mundo acaba por ser uma matéria residual inactiva, aquilo que não pôde ser integrado na coerência energética do espírito. Então do mundo. É que não é fácil imaginar coisas que te resistam. Procurei. Um rádio morto tem afinal entranhas. Falhei a falhar. Não falo de incoveniências revigorantes. Mas também não falo do cultivo da expressão
           Está podre!
seguido de recitação de manuais de ciência selvagem e gritos de
           tudo está vivo!
para acordar mortos. Falo de tocar na parte inerte dos objectos, na violência de não soprar vida para o interior de uma coisa. De levá-la apagada no bolso para nada, sem prenúncio. De prodígios exaustos. Falo, por exemplo, de transportar um diapasão irreparavelmente mudo. De não entrar na economia da salvação, nem na poesia. Não investir em vertigens para retorno de esplendores. Falo, por exemplo, do cotão baço se não houvesse umbigo, não houvesse pavor do frouxo, não houvesse amor clandestino ao emaranhado. Há. Montar verdadeiros restos.

Essa ferocidade. Click. Ah. Delicadeza suspensa. Falo portanto de sabotagem. Da máquina lírica. Falo de estar a morrer a língua. Define veemente. Define frágil.

Não respiro fundo. Não espero o tempo pleno. Pego em tudo pelos lados de fora. Define desenvoltura. Falta de alma. Define fúria. Graça.

XII. Faltou-me dizer que foste tu que me disseste isto tudo. Estou sem sal para acordar feridas. É uma espécie de infidelidade. Não definas graça. Não definas fim. Click. Ah. Estou à beira.

(O texto contém destroços não identificados de Herberto Helder, Raul Brandão, Nuno Moura, António José Forte, Arthur Rimbaud, Luísa Neto Jorge, André Bazin, Roland Barthes, Ezra Pound, T.S. Eliot, W.H. Auden.)

 

Texto originalmente publicado na Textos & Pretextos 17, dedicada a Herberto Hélder.