Sáurio

Alex Colville, Pacific, 1967

Alex Colville, Pacific, 1967

O que aqui podia comunicar pôs-se antes à conversa.

Foi tudo o que Antónia disse antes de fechar a janela. O snapp rápido dos caixilhos quando ela trancou o ferrolho e eu estava para me pôr a andar outra vez que nem havia volta a dar-lhe. Estávamos à conversa e ela foi-me cortando todas as linhas. Atirou-me umas palavrinhas afinadas, humilhantemente simpáticas e educadas e desligou-se de mim como se nunca tivéssemos estado enleados. O pequeno dinossauro de plástico repousava sobre a mesa de vidro, os dois olhos pintados de verde brilhavam opacos, demasiado para fora de todo o resto do corpo, verde também, verde t-rex. Eu articulei a palavra sáurio e engoli em seco. Sáurio. Mulher estás a ouvir, queria gritar. Aos vinte sete anos eu sou um homem dramático. A minha comunicação, mole a valer, com o mundo, está interrompida. Eis uma expressão de que me socorro frequentemente, interromper a comunicação com o mundo. Saio e levo a tartaruga a passear presa pelo pescoço com um fio de lã vermelho, como na escola, quando aprendia a escrever e me prendiam a mão esquerda para que não escrevesse com ela. Como me explicaram, com a esquerda Caim matou Abel. Aos seis anos eu não tinha uso para um Abel morto, mas Caim parecia-me homem de actos, palavra ligada à mão. O que quer que matar fosse, parecia promissor. Daí sempre ter sido homem de escrever a duas mãos. Foi quando desdobrava este argumento da minha destreza ambidestra, a minha dualidade ambivalente, afinal, qualquer homem tem qualquer coisa de especial, que ela me atirou com: tu és um Galahad do raio que te parta. Eu embeveci infinitamente. Galahad logo seguido de raio-que-te-parta, absolutamente maravilhoso. A destreza verbal desta mulher, a sua impecável esgrima vernacular, digo-vos, só cava mais fundo o meu amor. Não sei o que lhe faça. Às vezes a ternura é tanta que sinto que devia atirá-la pela janela. Só a custo me reprimo e ponho as minhas merdas em ordem. Como assim Galahad? O príncipe perfeito, diz-me ela de volta, com um risinho malicioso. Tenho vontade de desatar a ronronar desalmadamente. Reprimo-me. Quero saber mais. Fala-me desse Galahad. Reprimo a curiosidade. Sou um reprimido. Não. Não é isso. Há esta tenção entre os pensamentos e as coisas a acontecerem à minha volta. Elas acontecem tão de repente. Eu avanço tão devagar. Eu cá dentro e o real lá fora, não afinamos pelo mesmo compasso. E suspeito que há muito nos pensamentos que seja feito de ritmo, daí Anne ter-me soprado ao ouvido, Reality is a sound, you need to tune into it, not just keep yelling. Eu amo Anne absolutamente, Anne que nunca me amará de volta, que não sabe que eu existo e que, no entanto, de longe envia o seu amor e não quer saber. Mas eu quanto a pensamentos sou um homem de acção. É o meu único brio. Eu continuo a gritar, à espera que antes de mim a realidade se afine. Se alguma coisa nos pensamentos é feita de ritmo, o ritmo é o que está em redor ou é o que pulsa cá dentro? Antónia disse uma vez: é fácil amar tudo o que tem um pulso. Mas Galahad explica-te. Ela toda enigmas: Princípe perfeito, e sorriu. Claramente, o que ela queria dizer, o que talvez não fosse o que ela hoje precisava de dizer, é que nem que fosses o último homem vivo na terra eu te fodia. Se ao menos, era o que Alice costumava dizer, a mente fosse mais exacta e mais eficaz. O que me passa pela cabeça não fica, eu pareço largamente descontinuo, desengonçado, desarticulável. Eu posso ser explicado e imediatamente a palavra que me explica apropria-se de mim, ao género dos mitos que se contam sobre mestres espadachins, samurais, ninjas, que com um só golpe da espada podem desmontar um corpo inteiro nas suas várias partes. Imagina toda a arte posta nisto. Toda essa arte verdadeiramente artesanal, sem cifras, sem comandos electrónicos. Eu hoje vi os dois volumes da concordância de Ovídio, dois livros gigantescos e engoli em seco, atirei os ombros para a frente, pousei a testa sobre as lombadas. Pensa em toda a arte que pode um homem se for deixado sozinho com os seus pensamentos. Alone with the great pressure of your imagination, é um verso de Inger Christensen. É um verso certeiro, inexaurível. Estamos todos postos sob o jugo desse verso. Sente como lado a lado não conseguimos respirar, como a temperatura vai subir, está subindo, como vamos transpirando, como estendemos as mãos, tacteamos as caras uns dos outros, tentamos falar e ainda assim olha para nós sozinhos no meio desta pressão. Destra. Direita. É a única coisa que sei que nenhuma mente é. É por isso que sempre pensei que os anticonformistas, os que metem a cassete do eu sou contracorrente e o resto do mundo é estúpido (n.b., não contracorrente mas “eu sou contracorrente”, o mundo está cheio de burocratas das contra-correntezas), posso estar errado, mas desconfio de que esses são secretamente os mais filhos da puta de todos, os que abrem a porta para que a ordem se sancione. Porque falam, mas são inofensivos e na verdade não há nada que estejam dispostos a fazer se não falar. As palavras às vezes nem chegam para começar. Mas um homem deixado sozinho com toda a pressão da sua imaginação. Para afundar-se completamente, como o puto magrinho e de óculos a quem o puto maior e mais alto levanta em peso pelo colarinho do casaco e ele descobre ao fundo do seu terror ter um corpo que pesa. A sujeição à gravidade. Kafka!, interrompe-me Antónia. E eu devagar transformo-me em sáurio, a fundura de uma sílaba a martelar ao fundo da boca. Noutro lugar qualquer, do outro lado, as minhas palavras de homem acontecem completamente mas nunca me pertenceram, nunca me vão pertencer. A grande pressão continua depois de mim. É lume que chegue para muitas mais revoluções. Já foi.